quarta-feira, 30 de abril de 2014

Penúltima

      De Marcos Prado 
       
    Como posso agora estar alegre?
    era de se esperar que eu desesperasse
    talvez mais tarde eu desintegre
    entre o penúltimo gole do último porre
    e leve ao meu lado os que me seguem 
    sim,
    perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
    mas aprendi que o céu é mais embaixo
    ainda não sei o quanto dei
    a tantas quantas amei
    ainda não sei ao certo se eu errei 

Carrossel

Na cidade milenar e moderna ele viu um carrossel girando como num filme antigo ou sonho. Havia os cavalos, enormes, multicoloridos. Cada um espetado por aquela haste metálica que o sustentava e o fazia subir e descer, enquanto percorria a pista em círculo, para encanto da criança que o montava. Mas ele gostou mesmo de outro quatro patas, o que estava acima do teto -e que também girava, mas sobre o próprio eixo. Era um puro-sangue da raça dos carrosséis. Branco, como o do grande herói daquelas terras, um general baixinho e conquistador. Ele ficou olhando admirado o cavalinho e só voltou à realidade quando um menino lhe puxou a blusa para chamar atenção. Não era conhecido. Ele olhou em volta e não viu ninguém que identificasse como parente. O menino disse que queria subir no cavalinho. Ele perguntou em qual deles. O menino apontou o que pairava acima de todos.

Banda de Pífanos de Caruaru


terça-feira, 29 de abril de 2014

Bola

De Marcos Prado


Não se afobe com essa menina,
é preciso classe para dominá-la.
Calma, ela é que o ensina
onde se deve ou não tocá-la.
 
Por ter as formas perfeitas,
e os macios, simétricos gomos,
é mais carinhosa com quem a ajeita
do que quem a persegue como gnomos.
 
Apesar de ser o centro das atenções,
e ter poder sobre o mundo todo,
ela rola, humilde, entre as paixões,
exposta ao sol, à chuva, ao lodo.
 
Não se incomoda que a matem no peito,
que a chutem, que a dividam, que a isolem,
que a levem no bico, e, com efeito,
ela procura o ângulo que lhe escolhem.
 
Carente, ela também busca o abraço
daquele que melhor a encaixe,
do que a tem ao alcance do braço,
dona absoluta do seu passe.
 
Com o tempo, seus parceiros mudam.
Alguns, com ela, conseguem glória e dinheiro
e pensam que a dominam. Mas não se iludam:
ela sempre comemora o gol primeiro.
 
Esta é a bola, genial, feminina,
fascínio de quem defende e ataca.
Aos grossos, ela, cruel, fulmina.
Aos artistas, ela brinda o gol de placa.
 

Milagre na catedral

Entrou na catedral milenar e se sentiu como o arquiteto humano achou que o arquiteto de tudo recomendou. Um ponto minúsculo visto por algum marciano lá da casa dele. Fez o sinal da cruz e, assim que beijou a própria mão, foi invadido por uma luz que entrou pelo lado esquerdo. Na parede havia um vitral gigantesco, mas em meio aos desenhos e cores e santos uma janelinha se abriu. E ele viu o telhado de uma construção ao lado. Era o contato com ele mesmo, ou seja, o real. Ficou ali parado, hipnotizado. As pessoas que passavam começaram a parar e olhar na mesma direção. Também pararam. Também se imobilizaram. Bastou um se ajoelhar e os outros fizeram o mesmo. Foi então que alguém disse que aquilo era um milagre, que um anjo tinha por ali entrado para abençoar a todos e ao templo. Ele então viu uma pomba pousar no telhado vizinho e, logo em seguida, um macho. Este rodopiou, se achegou e subiu na fêmea.

Toninho Ferragutti Forró Classudo


segunda-feira, 28 de abril de 2014

Raul Seixas Caubói Fora da Lei


Esporte porreta

O porrete estava na vitrine de uma loja de antiguidades. Trancado a chave. Ele entrou e nem perguntou o preço. Comprou, para espanto do comerciante. De madeira, datado do início do século passado. Ele lembrou de alguns filmes do Chaplin, com o policial sempre manuseando o cassetete à espera de um erro alheio. O primeiro a quem mostrou a peça sacou logo a ironia e foi atirando: "Muito sangue deve ter banhado a sua compra". Ele riu e pensou: se não fosse isso este animal não estaria aqui no bem bom usufruindo as benesses de uma nação civilizada. Levou então o porrete para o lugar onde coleciona armamentos. Colocou-o ao lado de uma borduna e de uma bimba de boi. Agora procura um taco de beisebol utilizado pelos italianos do Bronx. Ele gosta deste esporte.

sábado, 26 de abril de 2014

Boemia

Eu voltei, como Nelson Gonçalves na boate da avenida São João - mas sem brilho, sem álcool, só com a boemia e o radar limpo para ver as almas tristes, alegres, atormentadas, esfuziantes... enfim, se ver.

Aquarela do Brasil João Gilberto