terça-feira, 31 de maio de 2016

Lupicínio

Lupicínio não escreveria mais "ah, se soubessem o que sei". Esses moços não amam, não sofrem, não perdem, não dançam bolero, nem sabem o que é isso. Ficam por aí, feito animais onde até o cio é plastificado. Se encontram em telas, acham que sabem sobre política, abraçam o primeiro bandido de fala fácil e sabedoria enganadora. E vão atrás, para quebrar a cara do outro, para depredar, para invadir, arrebentar, pela democracia da ditadura dos idiotas. Um banco de praça não é mais local de encontro tímido. É ponto de tráfico, é arma, é fogo - e salve-se quem puder. Ouvi o próprio a cantar na minha vitrolinha portátil. Não saio mais de casa, perdi o encanto, sou um bicho velho quase ermitão. Sofri como o grande gaúcho da dor de cotovelo - e não me conformo com a ideologia da cotovelada como forma de afirmação. De que? Ainda bem que a hora da partida está chegando e não verei mais essas coisas todas. Esses moços, pobres moços, ah se soubessem o que sei...

Oswaldinho do Acordeon


segunda-feira, 30 de maio de 2016

Furta-cor

O carro velho anda na velocidade perfeita. A dele e a minha. Motor cansado, 450 mil quilômetros rodados em tudo quanto é tipo de rua e estrada. Já foi do Sul Maravilha ao Nordeste. Também cruzou o cerrado para navegar numa balsa no Rio Madeira lá nos confins do Norte. Nunca me deixou na mão. Está comigo há 20 anos - desde quando nos enamoramos numa negociação onde o irmão dele, mais velho, capotado, foi substituído. Quando me perguntam qual a cor da máquina, respondo rápido que é furta-cor, porque de dia é berinjela e à noite, dependendo da luz, pode ser preto ou azul bem escuro. João Donato começa a tocar o piano na batida que é única, me estico para abrir o quebra-vento do lado do passageiro - é o meu ar condicionado. O ventinho bom entra, estico o braço e coloco a palma da mão direita no caminho dele. Fico assim um tempão. Nunca fiz isso nos 20 anos. Sensação boa que só é interrompida assim que avisto uma viatura do policiamento do trânsito. Mãos no volante. O som continua. Lembro então que na última vez em que ele foi ao mecânico, alguém deixou um papelzinho na chave onde escreveu que ele era roxo. Aquilo roxo. É meu.

superfície

De Paulo Leminski


viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície

João Gilberto Wave


quarta-feira, 25 de maio de 2016

Guarda-roupa no tempo

Ele nunca comprou fiado. Nunca teve conta em banco. Nunca teve teve telefone ou carro. Mesmo sem saber, talvez seu maior tesouro, além dos filhos, era o primeiro guarda-roupa. Operário, juntou o dinheirinho que sobrava do salário. Isso durou meses. Comprou o tal que olhou um dia na loja de móveis do bairro - e decidiu. É bonito o três portas com espelho e três gavetas. Suas linhas são arredondadas, os pegadores têm estilo, a madeira maciça resistente. Este móvel guarda os segredos do quarto do dono com a sua única companheira durante anos. Só saiu do lugar duas vezes. A primeira para ir da meia-água dos fundos, alugada, para a casa própria. A segunda para dali  viajar milhares de quilômetros no retorno dos dois à cidade de origem. Eles morreram faz tempo. O guarda-roupa continua lá, depois de sessenta anos. Dentro, algumas roupas do casal, que um dos filhos não quis se desfazer. Mas o móvel está morrendo. Comido. Logo será destruído, queimado. Durou muito, serviu muito bem a quem o comprou e, no fim, ainda alimentou gerações de cupins.

sem cura

De Paulo Leminski

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Nação Zumbi Samba de Lado


terça-feira, 24 de maio de 2016

Valentina

Ele telefonou e eu nem sabia direito quem era. Fazia tempo que não ouvia a voz. Fiquei naquela de tentar adivinhar, dando corda na conversa. Mas logo no início do papo ele disse que descobriu agora que era pai de uma menina. Estranhei. Ele explicou. Um caso daqueles relâmpagos e o sumiço de ambos os lados. Agora, a notícia, o exame e o presente de Deus vindo para os braços dele com um ano e meio de idade. O coração do velho aqui ficou descompassado de amor, mesmo porque a espera por netos se prolonga - e os três filhos não atendem às súplicas de alguém que, por motivos vários, não pode acompanhar o momento mágico dos primeiros anos deles. Passa um tempo e, ao abrir o email, a foto da princesinha. Em preto e branco, porque ela merece o melhor. Linda! Os olhos enormes tomando conta de tudo - dentro e fora da imagem. E o nome? Valentina! Abri correndo as imagens da heroína de Guido Crepax. Claro que vi semelhanças nos traços dos rostos. Mas essa de hoje, que veio através do telefonema... ah, essa é vida pura.

Antigamente

De Paulo Leminski

Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.

Zezé Motta Magrelinha


segunda-feira, 23 de maio de 2016

Moleques

Gonzaguinha cantava "Moleque" na beira do lago - e dois perdidos na grama do parque procuravam a bagana que caiu. Havia polícia ali, mas ninguém incomodava ninguém - só o cheiro para os que, naquela época, eram rotulados como "caretas". O resto da chibaba não foi encontrado, mas os meninos estavam tão chapados que não sabiam que estavam chapados. Foram a uma lanchonete. Comeram o melhor hambúrguer do planeta. A larica era grande. Depois, na casa de um deles, colocaram a vaca do Pink Floyd na vitrola. Só então lembraram que tinham acabado de voltar de um show do filho do Lua. Desligaram o som e começaram a cantar:
Ah! Moleque se um dia eu te pego/ Erva daninha, estrepe/ De ripa, marmelo te esfrego/ Moleque vem cá moleque/ Moleque vem cá moleque... Não, não eu não vou lá/Vem me pegar, eu quero ver.
Aí apareceu o dono da casa. Olhou da porta do quarto, abriu um sorriso - e não pegou.

Ivan Lins Madalena


LIÇÃO

De Helena Kolody


A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.

quinta-feira, 19 de maio de 2016

Augusto dos Anjos

Mantenho em cativeiro um verme que se chama Augusto dos Anjos. Encontrei-o por acaso em uma de minhas peregrinações por cemitérios. Gosto do ambiente. Me dá paz interior saber que um dia a escuridão chega e tudo acaba. Volto a ser como antes de nascer. O problema é quando essa hora vai chegando para quem se arrasta pelos anos e vai definhando. Por isso, ao ver o bichinho se arrastando para fora daquele túmulo esquecido, sem identificação, por uma rachadura, resolvi tomar conta dele. Alimento-o com carne podre, mas não humana. Por enquanto. Teve um dia que, juro, percebi que ele sorriu satisfeito depois da refeição. Ainda não sei porque mantenho o tal. Talvez seja sinal da insanidade chegando com a idade e esta minha convicção de que a vida é uma enganação dos diabos. Apenas uma pessoa sabe sobre essa criatura que me faz companhia na solidão. Estava numa dessas praias de cartão postal e, no dourado do final da tarde, ouvi a frase: "O crepúsculo da vida não tem cor - tem dor". Aí contei sobre o Augusto dos Anjos. O outro achou o máximo, mas insistiu em conhecer meu bichinho. Desconversei. Ele tinha dono até aparecer para mim. Agora é o meu começo do fim. 

alquimia

De Marcos e Roberto Prado

cadela vira gata

alquimia

vira lata


Maysa Ouça


quarta-feira, 18 de maio de 2016

Sem vento e sem movimento

Na esquina das duas estradinhas de chão tem uma árvore. Está dentro do cercado onde há alguns pés de jaca e de manga. Está florida e parece um buquê. Não sei o nome dela. Não sei o que estou fazendo aqui parado. Tudo parado. Momento sem vento e sem movimento. Não consigo dar um passo adiante. O céu está  azul e as nuvens brancas parecem pintadas. É um mistério como vim parar aqui. Até onde me lembro, olhava  a tela de um computador no trabalho da empresa multinacional. Minha roupa é a mesma. Nunca usei terno. Camiseta, calça jeans e tênis. Alguma coisa aconteceu. Não lembro. Nem as vacas que vejo em outro cercado se mexem. O tempo estacionou até no relógio. Duas da tarde. No horizonte tem uma montanha. Acho que a conheço. De foto, provavelmente. Isso! A imagem chegou, abri e a árvore, esta aqui ao lado, estava lá. Não sei quem mandou. O que vai acontecer, também não sei. Consigo pensar. Mas será que tudo isso é pensamento? Momento sem vento e sem movimento. Inércia.

penúltima

De Marcos Prado

    Como posso agora estar alegre? 
    era de se esperar que eu desesperasse 
    talvez mais tarde eu desintegre 
    entre o penúltimo gole do último porre 
    e leve ao meu lado os que me seguem sim, 
    perdi a razão do que eu achava e do que eu acho, 
    mas aprendi que o céu é mais embaixo 
    ainda não sei o quanto dei 
    a tantas quantas amei 
    ainda não sei ao certo se eu errei 

Fagner Jura Secreta


terça-feira, 17 de maio de 2016

Dois escutadores

Tenho dois aparelhos de escuta. Entraram nos meus ouvidos há bastante tempo - e eu coloco a culpa na geração Woodstock, que me fez ouvir durante anos e anos os bolachões com o som no volume máximo. O otorrino professor doutor disse que poderia tentar uma cirurgia corretiva, mas o mais sensato seria colocar os escutadores. Comprei suiços. Cada um vale o dobro do carro que me espera no tempo. Prefiro eles, apesar dos perigos que corro de perder, deixar cair no buraco da pia, no ralo, na privada, ou de mergulhar, tomar banho com eles, etc. Controlo o som e o tipo de escuta num relógio. Pareço o James Bond dos pobres em algumas ocasiões. Já estraçalhei um pisando em cima. Ainda bem que o mecanismo, que deve ser um micro-computador, não foi afetado. Agora inventaram um aparelho que é colocado como um chip dentro da zoreia, como dizia meu tio. Coisa pra rico. Fico com os meus, mesmo porque eles dão para o gasto e faço propaganda contra o preconceito que existe em relação a quem usa, como se os tais afetassem o desempenho sexual ou mudassem a preferência com a introjecção. Difícil é ficar sem ou se acaba a pilha e você não tem uma para repor na hora. Aí o cérebro não responde de imediato a ausência dos amplificadores e a gente fica mais surdo ainda. Dependendo da ocasião, no entanto, é melhor. Durante a propaganda eleitoral, por exemplo.

Luiz Ayrão, Diogo Nogueira Porta Aberta


ultimato est

De Roberto Prado



sobe!

crosta terrestre

desce!

abóbada celeste

segunda-feira, 16 de maio de 2016

Garimpo

Tenho todos os dentes de ouro. Mais nada. Quando morrer, sei que vão profanar o meu túmulo para arrancá-los com alicate. O que me importa? Cremação, não! O metal precioso nas arcadas foi o que me restou do tempo em que vivi metido no grande buraco. Serra Pelada. Vida de bicho na lama. Lei do cão. Mulher só em puteiro - e de vez em quando. Uma grande pepita por uma trepada. Fila de gente fedida. Era escravo do dono do pedaço de terra. Tentei roubar uma coisa grande. Foi o começo do meu fim. Antes vi o show de uma chacrete que nem lembro o nome. Rabo pra cá, rabo pra lá. Foi a melhor coisa naquele inferno. Agora padeço num barraco de subúrbio da grande cidade. Nem foto tenho daquele tempo. O povo daqui só acredita por causa dos dentes. Já ouvi conversa que querem adiantar meu funeral. Mas neste terreiro ninguém entra. Ainda tenho a 12 de cano serrado. A bandidagem sabe disso. Vão esperar a morte natural. Ela não vai demorar. Enquanto isso, sorrio para mim mesmo no espelhinho vagabundo do banheiro. É o que me resta.

Sem número

De Dalton Trevisan

Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.

Sergio Sampaio Eu Quero é Botar Meu Bloco na Rua


quinta-feira, 12 de maio de 2016

Cavalo azul

Meu cavalo é azul. Ele é paciente. Me espera há muito tempo sem reclamar. Está alimentado. Fica no tempo, mas é protegido por uma manta. Quando faz sol, ela é retirada. Meu cavalo, quando montado, pode empinar, se não for bem controlado. Ele não precisa ser cutucado ou receber incentivos tipo “eia” ou “aiô Silver”. Basta um bem decidido toque com a palma da mão direita e ele sai comendo espaços e cortando o tempo. Meu cavalo nunca viu Marlon Brando em Asfalto Selvagem, mas se considera descendente direto da raça Indian. Não é puro sangue, mesmo porque sua origem é japonesa. O azul da pele dele é forte – e quando o sol bate parece um céu fotografado com filtro para esquentar a cor. Ainda não batizei-o e, na verdade, ele é feminino. Meu cavalo saiu da fábrica com denominação XT. Cavalo de Aço foi uma telenovela do tempo da televisão em preto e branco. O dono do meu cavalo, que sou eu mesmo, lembra disso, mas prefere o filme Sem Destino por causa da cena do relógio jogado fora e da trilha sonora. Meu cavalo sonha com longas viagens e já ouviu a história do motociclista que ia conhecer os lugares que via nas telas do cinema. A local onde está a pedra de Zabriski Point foi um deles, no meio do deserto. Isto obrigou o destemido pilotar com pedras de gelo dentro do capacete. Meu cavalo azul é sonhador. Pegou a doença daquele que sempre está olhando-o com carinho. Por isso espera a hora de tudo se tornar realidade.

Fifi

De Dalton Trevisan

O inimigo de futebol:

— O meu amor pela Fifi é maior que o amor pelo Brasil.

A doce pequinesa que sofre dos nervos com a guerra da buzina, corneta, bombinha, foguete.

Dalva de Oliveira Bandeira Branca


terça-feira, 10 de maio de 2016

Verniz

De onde veio este verniz de tristeza que desligou as turbinas da minha anormalidade? De repente me vejo sensível apenas para as coisas que me afetam, mas não tanto como antes, quando eu chutava o balde e logo depois me arrependia e o sol voltava a raiar no horizonte do Brasil. Liberdade, liberdade é o caralho! Acorrentados somos a nós mesmos e não há controle, apenas disfarces, performances, ilusões, cabeçadas, tentativas, uivos, dentes arreganhados, lágrimas escondidas. Verniz? Poderia ser um manto, não o sagrado, mas a mortalha que um dia vai cobrir tudo como a pálpebra fechada para sempre - e a merda é que não vamos ouvir as mentiras ditas pelos outros. Textos editados e a verdade jogada num lixo - para não ofender o defunto. Vivinho da Silva e perdido no labirinto, disparo sinalizadores à procura dos deuses. Os livros, contudo, não se abrem, mesmo porque sem saco para ler. Aperto o botão que liga a tela. Pasolini me faz rever Salò ou os 120 Dias de Sodoma. Cortam a língua de alguém. Durmo. Acordo com um passarinho na janela. Respiro e sigo.

Ligação

De Miguel Sanches Neto


Súbito me lembro de um antigo telefone.
Seu número irrompe em minha memória
e não sei de quem é, nem quando nem onde,
sei apenas que é um endereço que dói.

Disco sem esperança estes dígitos antigos
e então ouço chamar numa casa no tempo
à qual me prendo pelo cordão do umbigo
que não pôde ser cortado a contento.

Através de um fio imaterial me religo
às ruínas de uma infância só mito.
Do outro lado, alguém atende o telefone

e a voz que me chega por este conduto
é a da criança que tem o meu nome,
é a que perdi quando me tornei adulto.

Clementina de Jesus Marinheiro Só


segunda-feira, 9 de maio de 2016

Boné grego

Aconteceu como encantamento. Comprei chapéus de vários tipos por aí, ou seja, Brasil e mundão. Acho que a foto do pai, jaquetão seis botões, chapelão de aba caída sobre os olhos azuis, anos 40, Rio de Janeiro, influenciou. Mas só uma vez tive coragem de usar um, tradicional, combinando com terno e gravata. Liguei o botão do "não estou vendo ninguém" e fui para a tal repartição. Vários dias num inverno mais ou menos. Apenas um elogio. No mais, imagino, estranhamento. Pendurei todos os exemplares na parede do escritório e esqueci. Até que ela apareceu, magrinha - e se encantou. Começou a experimentar todos e, milagre!, a maioria serviu mais que perfeitamente, compondo com o rosto e o corpo esguios. O que mais a encantou é um de pescador grego. Não pediu, apenas disse para eu colocar no testamento em nome dela. Melhor levá-la a dar um passeio pelas ilhas daquele mar absurdamente lindo. Para comprar o boné e cantar "Marinheiro Só". 

Incenso fosse música

De Paulo Leminski

isso de querer ser
exatamente aquilo
que a gente é
ainda vai
nos levar além

Vitor Ramil Loucos de Cara


quinta-feira, 5 de maio de 2016

Galinhas

Ela jogou o milho para as galinhas e os pintinhos. O disparador da máquina foi acionado e registrou aquela cena eterna. No terreiro da casa do sítio, no final de uma tarde do passado onde está protegida a Senhorinha e seu vestido comprido e estampado. Achei a fotografia numa pasta esquecida no fundo de um armário. Estava amarelecida. Ficou mais bonita, mas a lembrança escorreu para mais longe, anos antes. Naquele mesmo espaço, menino, arremessei uma pedra a metros de distância e acertei o meio do corpo de uma galinha. Pedra pequena. Ela se assustou e tentou proteger ainda mais a ninhada.  Tentei chegar perto. Ela se enfureceu e veio em disparada na minha direção. Nunca corri tanto na vida. De repente, me puxaram para o alto. Era ela, a da foto do futuro, me tirando do perigo para marcar na vida do menino o que é ser avó.

agudo

De Paulo Leminski


vazio agudo 
ando meio 
cheio de tudo

Secos e Molhados Sangue Latino


quarta-feira, 4 de maio de 2016

Por um lindésimo de segundo

De Paulo Leminski


tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se todas as coisas
fossem todas
afinal das contas

Marisa Monte Depois


Ela chegou!

Não, aquela notícia não podia ser verdade. Estávamos em Boa Vista, no bafo do inferno do Norte do Brasil. Família de militar, anos 90 do século passado. Notícia chegava a cavalo manco. A modernidade ali era o novo uniforme do carteiro. Não, quando alguém da família veio nos visitar e, sem querer, na hora de um almoço qualquer, nos contou... Ninguém acreditou porque era impossível acontecer aquilo. Alguém disse que era mais fácil fazer a nado o percurso entre Manaus e Belém pelo rio Amazonas. Outro, que escalaria o Pico da Neblina nu se por acaso fosse verdade. Demorou um tempo, mas quando um parente do Sudeste apareceu em casa e abriu a mala e tirou de lá aquela garrafa, houve um silêncio ensurdecedor. Sim, a coisa existia - e podia ser bebida. Fanta Uva.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Sangue na tela

Começou com as quedas seguidas do aparelho celular. Uma delas trincou um canto da tela. A máquina não deixou de funcionar, mas um dia escorregou do bolso e ficou numa posição no banco do carro - e deflagrou. O peso do corpo estilhaçou. Ao passar o dedo, um estilhaço furou a pele e uma gota de sangue adentrou ao sistema e espalhou. A tela fez lembrar o filme Inverno de Sangue em Veneza, com a lente sendo inundada pelo líquido vermelho. Virou coisa aterrorizante. Todas as pessoas conhecidas se assustaram ao notar a invasão dos glóbulos. Ninguém sabia que era o sangue do meu sangue. Alguns jogaram fora suas máquinas, mas as novas que compraram também eram invadidas assim que o chip era encaixado. Alguém quis sugerir reportagem ao Fantástico. Fiquei quieto. A origem daquilo era um segredo só meu. Troquei o vidro, coloquei uma proteção e passei um tempo tranquilo até o dia em que recebi um telefonema - junto com a mesma invasão. Tinha acontecido com um amigo. Gostei do que vi. Agora faço fotos pensando em como ficarão com tal filtro.

o jorro

De Nelson Capucho

não me xingue
                   não se zangue
                   é só o jorro
                   do meu sangue


Roberta Miranda São Tantas Coisas


segunda-feira, 2 de maio de 2016

Quarenta anos de maconha

Depois de quarenta anos de uso, a maconha lesa. Um fio de baba escorrendo no canto da boca pode ser um sinal. A fala arrastada, em ritmo de câmera lenta, outro. Ele estava com as duas características, além do fato de não achar que aquilo era vício. É da natureza, não faz mal, repetia enquanto enrolava mais um. Sua performance em números de cigarros fumados por dia estacionou nos trinta. Ele dava bola até para fazer cocô, ou seja, achava que sentiria melhor todo o processo - inclusive o cheiro. Acendia o primeiro ainda na cama, para tornar o dia mais interessante. Depois, para tomar o café da manhã, escovar os dentes, etc. Até no banho tragava. O resto, todo maconheiro sabe como é. Não mandava pra dentro a cannabis para o sexo porque não fazia mais. Brochou completamente e achava que isso era um sinal dos deuses e o caminho para o Nirvana - não a banda de rock do suicida. Abobalhado, foi internado pela família porque não conseguia produzir mais nada, só dizer "É isso aí, sacou?" Não sacaram e não tinham mais saco para a coisa. Ele não recusou o internamento. Achou que dentro do hospital iria escrever uma versão atualizada do "Bicho de Sete Cabeças". Não deu tempo. Saiu da casinha antes e nunca mais da cama. 

Não discuto


de Paulo Leminski

não discuto
com  o destino
o que pintar
eu assino


Mario Zan Quarto Centenário