quarta-feira, 18 de dezembro de 2013

Perdido

Perdi o trem, o rumo, o prumo, o sumo, o trilho, a trilha, a mira, a ira, o sono, o encanto, o canto. Perdi sem achar. Amanhã pode ser.

terça-feira, 17 de dezembro de 2013

Severino Araújo e a Orquestra Tabajara


tic tac

De Paulo Leminski

  relógio parado
o ouvido ouve
  o tic tac passado

Coisa de bêbado

Um bar escolhido por quem bebe até atravessar as porteiras da razão e ingressar no universo paralelo precisa ser especial. Especial para o delírio. Normalmente é sórdido, mas não como aquele descrito pelo L.F. Veríssimo onde os cães sarnentos eram colocados para dentro e Jesus Cristo pregado na cruz tinha um tapa-olho, que era uma barata esmagada. O bar do bêbado que respira álcool é aquele que é como alma gêmea e onde a bebida, seja ela etanol misturado com água ou uísque 18 anos, tem sabor especial. Ele tinha um assim, perto da casa. Era rico, poderia conhecer o mundo viajando de primeira classe, mas não fazia isso e explicava: "Lá não tem meu bar". Às vezes era obrigado a viajar com a mulher que o aturava há anos. E sempre o carrão tinha problema na estrada. Ele parava o veículo no acostamento, levantava o capô, abria o compartimento destinado à água, tirava um canudinho do bolso e tomava goles e goles de vodka, uma das suas preferidas. Um dia parou de beber, com mais de 70 anos, porque estava com um pé na cova e outro na casca de banana. Se transformou num grande filósofo da vida, viajou o mundo e toda vez que passava em frente ao "seu" bar, apenas balançava a cabeça negativamente, reforçando a certeza de que tudo aquilo não tinha passado de coisa de bêbado.

sexta-feira, 13 de dezembro de 2013

quinta-feira, 12 de dezembro de 2013

Boca no trombone

Boca no trombone. Mão na vara. Ele viu sem ouvir. Era uma televisão grande. Preto e branco. Estava pendurada no teto de uma padaria da praça principal da vila. Do outro lado, a torre da igreja protegia tudo. O que seria aquilo? O músico não parava com a cabeça. E a vara ia e voltava. A boca sempre colada. Os olhos, às vezes, ficavam totalmente brancos, como se ele estivesse em êxtase ou morrendo. De prazer, certamente. Que som teria aquele instrumento? Pediu para o portuga aumentar o volume. Ele disse que a tv estava estragada. O pão quentinho saiu. Meia dúzia, por favor! E a música muda comia solta ali enquanto alguém servia ao santo uma dose de Tatuzinho lá no canto do balcão. À noite sonhou com uma banda só de trombones, mas o som não veio. Acordou e foi até a loja de discos. Explicou. O dono colocou uma bolacha no toca-discos. Ele ouviu Raul de Barros. Olhou a foto na capa do LP. Era o mesmo músico da tv. Ele tinha ouvido o som sem ouvir. Nunca mais deixou de acompanhar os trombonistas. Até chegar a Trombone Short. Que felicidade!

de tudo

De Paulo Leminski


  vazio agudo


ando meio



  cheio de tudo

A Cidade Chico Science e Nação Zumbi


quarta-feira, 11 de dezembro de 2013

Costeleta que avoa

O avô foi o responsável. Porque falou que voou de "Costeleta". O menino ficou sem entender porque o pai usava costeleta, dos dois lados do rosto - e o avô, não. Mais tarde se apaixonou pela Panair, sentimento que aumentou muito nas asas da voz de Milton Nascimento. Com a empresa revelou-se o Constallation, o rei dos ares antes da era a jato. A seleção brasileira campeã mundial em 1958 voou nele como canarinho. Ele então sonhou em bater asas com os quatro motores e hélices a toda. E pensou nas lindas aeromoças desfilando no corredor e pilotos infalíveis de quepe e impecáveis uniformes. Quando se deu conta, o avião tinha sumido no tempo. Até que o encontrou numa vitrine em loja de aeroporto. Não era da Panair, mas da Real. Comprou. Deixou num lugar de destaque no escritório. Um dia um garoto de cinco anos entrou ali e se encantou com o brinquedo. O dono disse: este é o famoso "Costeleta". O piá olhou sem entender. Mesmo porque hoje pouca gente deixa isso no rosto.

Cada Macaco No Seu Galho Richão


ferida

De Paulo Leminski

   essa a vida que eu quero,
querida

   encostar na minha
a tua ferida

terça-feira, 10 de dezembro de 2013

num buraco

De Paulo Leminski

debruçado num buraco
vendo o vazio
                      ir e vir

Rafael Rabelo Lamentos do Morro


Palmito e queijo a quente

Ele gostava de pastel de palmito e pastel de queijo. Gostava também do molhinho que colocava ali dentro. Mas o que mais intrigava o pasteleiro da feira de sábado era a mania um tanto quanto masoquista daquele cliente. É que ele só comia logo depois de os pasteis terem sidos tirados do tacho com óleo fervente. E também fazia isso ali ao lado, praticamente com a cara no bafo fervente que subia. No começo o comerciante não entendeu, mas como o rapaz tinha boa aparência, usava roupas decentes, etc, permitiu. Há anos o ritual se repetia - e sempre na mesma hora. Ele não bebia nada e engolia os dois pasteis muito rapidamente. Quase não conversava, pagava e dava sempre uma gorjeta maior que o valor da conta. Ninguém ousava perguntar o por que daquilo. Até que um funcionário novo quis matar a curiosidade. Ele respondeu sem pensar muito: "Como o pastel fervendo porque quero ter a goela ladrilhada como minha mãe. Fico com a cara no vapor porque pretendo ter a pele enrugada como a textura dele". Todo mundo fez que entendeu - e a feira continuou.

segunda-feira, 9 de dezembro de 2013

Maringá Gastão Formenti


cor de fruta

De Paulo Leminski

   furta a flor
ao crepúsculo cor de fruta
   pássaro tecnicólor

O outro lado

Caiu a noite feito a noite de todos os temores. Havia lâminas afiadas a nos fazer lembrar que ainda estávamos vivos. Até quando? Não era para ser perguntado. Não se podia olhar para trás porque o passado condenava. Para frente eram trevas. O agora eram cortes profundos a cada respiração e as dores eram muito mais lancinantes do que se imaginava. Não havia sangue. O que existia era uma vida sem sentido desde antes do nascer. O que havia era a incapacidade de compreender. O que havia era o açoite dos pensamentos. Eram os gritos da tortura. Eram as entranhas sendo corroídas. Era o cérebro tocando a mesma música. Era o pavor, o terror. Ninguém reclamava. E o silêncio fazia aumentar a dor de cada um naquele nada. Também se rezava. Para o deus imaginado. As orações eram para que a morte chegasse. E ela não chegava, porque tudo aquilo era ela. O outro lado. O desconhecido. O pra sempre.

quinta-feira, 5 de dezembro de 2013

Dei de cara com a jia

O sapo canta na lagoa, Tião, mas eu gosto da jia. Mais sonora a palavra, mais esguia - e rima. Com sua licença, Jackson, mas a música aqui é outra. Nem letra tem, mas tem a cena real de o tiroteio ter começado no salão e eu saí rastejando pela escuridão. Só ouvia o zunir das balas. O que é que eu fui fazer naquele forró nas quebradas? Queria ouvir os reis do baião e do ritmo, arrastar o pé, ver a poeira levantar e o bicho também porque as meninas todas são fogosas e gostam de se atracar para relar o imbigo. Então fui assim, colado no chão, chegar perto do açude. Foi aí que dei de cara com a jia. Estava a um palmo do meu nariz e nem se mexeu. Achei que era cegueta. Mas ela estava imóvel como estátua e pude ver como são belas as coxas que muitas vezes comi sem pensar no bicho dono delas. Ela então coaxou. Ouvi uma voz ordenando para eu entrar na água e ficar quieto. Foi o que fiz. A jia fiou ali, como sentinela. Eu com água até a boca. Ficamos nos olhando por toda a noite. Quando clareou, saí e fui caminhando para casa. A jia veio atrás. Coloquei ela dentro de uma panela com água fria. Ela ficou quieta. Acendi o fogo. Ela não saiu de lá.

hexagrama 65

De Paulo Leminski

   Nenhuma dor pelo dano.
Todo dano é bendito.
   Do ano mais maligno;
nasce o dia mais bonito.

1 dia,
   1 mês, 1
      ano.

Carlos Gonzaga


quarta-feira, 4 de dezembro de 2013

Água fria

Tomou banho de bacia, dentro do balde, no tanque, de caneca quando não cabia mais em lugar nenhum. Água fresca quase gelada tirada do poço furado no meio do quintal. Primeiro foi o pavor, depois o amor. Ficou este. Cresceu e viu chegar água encanada, chuveiro elétrico, depois banheira, água aquecida a gás, assim como o piso todo da casa que comprou por ter se dado bem na vida. Não esquecia, contudo, os primeiros banhos da infância naquela casa de fundos no subúrbio da cidade grande. Até que um dia viu, reluzente, uma bacia enorme pendurada na parte externa de uma armazém que insistia em resistir à modernidade dos supermercados. Parou o carrão, entrou, comprou e levou junto a caneca de alumínio. No banheiro todo marmorizado, encheu com água fria a bacia enorme e sentou bem devagar. Nem lembrava mais a sensação do contato da água gelada com a bunda. Sentou e ficou ali pensando na vida, no pai, na mãe que já tinham ido embora, eles que continuaram tomando banho frio até o fim da vida. Pegou a caneca, encheu e despejou a água no alto da cabeça. Era criança de novo, depois de fugir décadas e não ter encontrado a felicidade.

magnólia

De Paulo Leminski

   Nem tudo envelhece.
O brilho púrpura,
   sob água pura,
ah, se eu pudesse.

   Nem tudo,
sentir fica.
   Fica como fica a magnólia,
magnífica.

Venâncio e Corumba Chuleado da Vovó


terça-feira, 3 de dezembro de 2013

Quem é que faz?

Acordou assustado com o sino da igreja. Estranhou. Sempre ouviu. Morava do outro lado da rua. A catedral às vezes lhe parecia um monstro a lhe chamar para a missa do sétimo dia. A sua. Mas isso só em algumas ocasiões. No mais, olhava o povo entrar ali e sair da mesma maneira. Alma ele tinha descartado há muito tempo. Mais uma badalada. Acendeu a luz do teto apertando a perinha pendurada num fio imundo. Sozinho naquele quarto. Há quantos anos? O colchão no chão fedia a azedo. Não havia mais nada ali, a não ser um amontoado de roupas sujas num canto. Ouviu alguns fogos. Eles acenderam um pouco sua memória. Meia-noite, Natal, nasceu Jesus - se é que ele existiu. Não acreditava em nada, a não ser no que estava demorando para vir. Queria sossego. Lembrou de uma música de Dolores Duran que, na voz de Nana Caymmi, pedia uma noite de paz. Ele não tinha nem noite, nem dia, nem nada. Sempre foi assim. Da janela olhou a torre de onde vinha o som. Sem perceber cantou um trecho de outra música. Noite feliz. Perguntou para escuridão: "Quem é que faz?". Não houve resposta. Voltou para a cama. Apagou a luz. Continuou no tormento.












Manhã de Carnaval Baden Powell


assombra

De Paulo Leminski

   primavera de problemas
a luz das flores grandes
   assombra as flores pequenas

segunda-feira, 2 de dezembro de 2013

Filtro

Filtro de barro. Ela queria um. Leu não lembra onde que a água que sai da torneirinha é a mais pura possível. Acordou o marido no meio da madrugada. Quero um! Ele achou que era um sonho. No dia seguinte, no café da manhã, quero um! Ele foi trabalhar com o filtro na cabeça. Melhor comprar logo essa bagaça, pensou, porque sabia que a amada não ia sossegar enquanto não tivesse o tal na cozinha. Comprou. Nem fez muita pesquisa. Inauguraram com festa regada a água. Depois ela pediu uma caneca de alumínio, daquelas grandes, porque a água ficaria ainda mais fresquinha. Ele comprou duas. Passou um tempo até que ele teve uma ideia que também veio no meio da noite. Bolou um esquema e foi buscar o líquido para colocar nele, o filtro de barro. Ela nunca soube, mas achou uma diferença no gosto da água assim que experimentou o primeiro gole da nova fonte. Gostou. Se sentiu melhor, mais disposta, passou a olhar tudo com mais paciência, etc. Deixou até de ser insistente nos pedidos. Era o que ele queria. Por isso, nunca mais deixou de ir à igreja. Para pegar água benta de todos os recipientes que podia. Amém.

apagar-me

De Paulo Leminski

apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme

Samba da Minha Terra Novos Baianos


Sono

Domingo foi ontem. Esqueci porque dormi.