quarta-feira, 27 de julho de 2016

O primeiro

Tinha um caderninho fechado com um elástico. Pequeno. Guardava longe da vista dos familiares. Mas alguns tinham notado e, com o tempo, foi crescendo o mistério sobre o que estava escrito naquelas páginas - que não eram muitas. De vez em quando ele olhava para o objeto. Mas não abria. Deixava da mesma maneira que trouxe de uma longa viagem além oceano. Era um observador, uma espécie de retratista de cenas, situações, locais. Talvez ali tivesse anotado o que mais lhe falou à alma na longa travessia que fez sozinho pela primeira vez por aqueles países distantes - e que ele só conhecia por flashes em filmes. Ficou velho, doente - e ninguém se atrevia a perguntar o que estava escrito nas pequenas páginas e o que queria fazer com ele. Perto da morte, pediu a um dos filhos que o caderno fosse cremado junto. Determinou até o bolso em que fosse colocado. O herdeiro então se atreveu a questionar o que havia naquelas páginas. O velho respondeu que era seu primeiro livro.

CAÇADOR E VÍTIMA

De Miguel Sanches Neto



Escrever é caçar caranguejos
à maneira do guaximim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja  o crustáceo,
ele espera que este o morda
como suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
— a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaximim chora,
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca.
Contorcendo-se nesta emboscada,
o sabor e a cicatriz ele preliba
— a água na boca é a mesma das lágrimas.

Roberto Carlos Nossa Senhora


terça-feira, 26 de julho de 2016

No açougue

Um dia fizeram a pergunta tradicional: o que você quer ser quando crescer? O menino não pestanejou e respondeu na bucha: açougueiro. De onde tinha tirado aquilo, os pais nem imaginavam. Mas ele, sim, porque ficava encantado com tudo o que acontecia no açougue onde a mãe comprava o bife nosso de cada dia. Via alguns parrudos descarregando dos caminhões frigoríficos peças enormes nas costas, camisetas manchadas de sangue e o pedaço do bicho com uma pata só apontando para o céu. E quando o açougueiro cortava a peça de coxão mole com a destreza de um cirurgião... Ele entrava em êxtase acompanhando o fio da faca partindo a carne - e os bifes descansando uns sobre os outros antes da hora inesquecível de o profissional pegá-los com a mão para pesar e embrulhar. Ele relembrava tudo na hora de comer - e, claro, sempre pedia o seu pedaço de carne mal passado. Outra lembrança era a carne sendo moída e saindo dilacerada pelos orifícios da máquina trituradora. Assim cresceu. Bem que tentou transformar em realidade o sonho. Não deu. Trabalha numa floricultura. Cuida das orquídeas. As mais lindas da cidade.

Aviso aos náufragos

De Paulo Leminski


Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Henrique Cazes Brincando com Cavaquinho


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Acaba?

De Paulo Leminski

Amor, então, 
também, acaba? 
Não, que eu saiba. 
O que eu sei 
é que se transforma 
numa matéria-prima 
que a vida se encarrega 
de transformar em raiva. 
Ou em rima.

Elza Soares Mulher do Fim do Mundo


No pântano

O pântano fétido. Nada perto. Atolado até a cintura ele tentava caminhar. Bichos comiam o que de pele estava exposto. O olhar duro mirava algo adiante – e ele seguia adiante, com uma determinação pouco comum para alguém mimado e criado em cidade grande. Lá estava ela, agora mais perto. Uma única flor branca naquele pedaço feio, fantasmagórico. Chegou lá depois de muitos e muitos dias. Nem lembrava mais porque entrou ali, sozinho. Lhe veio a expressão “sozinho e Deus”. Sentiu o perfume, inebriante. Foi tocar uma pétala – estancou. Embaixo havia uma caixa de madeira bem trabalhada. Pegou e abriu. Um pergaminho bem conservado lhe fez a revelação. Ele começou a chorar ao mesmo tempo que uma chuva forte começou a cair. Todo o esforço para aquilo? Como voltar para a cidade? Tentou rasgar o documento. Não conseguiu. Então, leu de novo: “O homem criou os deuses para ser filho deles e esconder a verdadeira imagem destrutiva e maligna”. Ficou por lá mesmo. Ninguém foi procurá-lo.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

arrepio lancinante

De Dalton Trevisan

Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder — o arrepio lancinante no céu da boca.

Criolo Bogotá


Aurora

Fui ao planetário, fiquei olhando para o teto e mostraram lá a aurora boreal. Explicaram o fenômeno, mas nem liguei. Fiquei encantado e com vontade de ver ao vivo, lá nos confins, onde a Terra faz a curva. Saí dali crente que conseguiria realizar o sonho de menino, 12 anos, a vida sendo ainda um mistério de fantasia. Esqueci, fui sendo atropelado pela realidade, trabalho em caixa de banco, dinheiro contado, nada - nem de viagem até a praia dos farofeiros. Até que um dia a Aurora veio até meu guichê. Alta, tranquila, vestido estampado mostrando cintura de pilão. Ela abriu um sorriso tão esplendoroso ao dizer que queria depositar dez reais na conta, que eu perdi o rebolado. Fiquei pasmo. Só então perguntei o nome e ela disse Aurora, não Orora, como na música. Era mais que boreal, era o próprio universo concentrado naqueles olhos, no tom da voz. Perguntei o sobrenome e veio um Silva como se fosse da mais nobre das famílias europeias. Gamei. Ela deu o número de telefone e nunca mais nos desgrudamos. Aurora. Não preciso ir atrás. Durmo com uma toda noite.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Cansei

Pisquei e descobri que estava trabalhando há 45 anos. Sem parar. Feito um autômato que se alimentava do prazer do próprio ato do trabalho. Não vou dizer o que faço, apenas que é extenuante física e mentalmente. Pisquei de novo e me perguntei o que foi feito de minha vida durante todo esse tempo. Sim, tenho família, os filhos criados, casa de alto padrão, um apartamento na praia, um sítio, boa reserva financeira, essas coisas. Nunca curti. Quase não fui a estes lugares - e muito menos viajei.  O trabalho. Pra que tudo isso? Meu corpo está em frangalhos. Outro dia que tive um piripaque no coracebo. Desmaiei. Bati com a cabeça na quina da mesa de trabalho. Sangue escorreu e melou o tapete. Quando acordei, a visão estava vermelha. Foi aí que pensei em tudo, assim, num piscar de olhos. Parei. Fui pra casa, tomei um banho bem quente, coloquei pijama limpinho e não o tirei mais. Cansei de cansar. Eu não tinha noção disso. Vou viver mais. Flanando.

Cruel

De Marcos Prado


Curitiba é uma cidade tão cruel com as pessoas que criam que não basta você ir para São Paulo e pro Rio e as pessoas te reconhecerem não...Você precisa morrer para as pessoas te reconhecerem!

Céu Perfume Invisível


terça-feira, 19 de julho de 2016

Templo

Guardei aquela folhinha. Faz muitos e muitos anos. Eu tinha acabado de pedir um bolinho de carne no boteco que era boteco, não essas imitações que só enganam os trouxas que pagam pela decoração retrô. Depois da primeira mordida, o molho de pimenta penetrando no interior do salgado, um gole de cerveja e... Estava ali, entre algumas garrafas empoeiradas. O templo, sem identificação, parecia todo feito em ouro. Pelo horário em que a foto foi feita, no final de uma tarde luminosa, só poderia mesmo hipnotizar. Chamei o dono do bar, pedi mais um bolinho, outra cerveja - e aquela imagem. Era antiga e, imaginei, não tinha ido para o lixo por causa da beleza. Guardei em casa no baú onde estão as coisas que marcaram minha retina. Outro dia tirei de lá. A parte de cima da foto estava rasgada, mas nada que comprometesse o templo. Olhei tudo com carinho, verifiquei se havia uma identificação. Não havia mesmo. Agora procuro na internet todos os monumentos indianos para ver se encontro este local de adoração. Se achar, assim que puder, vou pra lá. Porque assim é.

espelho

De Sérgio Rubens Sossélla


sim
eu no espelho
vim

Sivuca Quando me Lembro


segunda-feira, 18 de julho de 2016

O vento e a curva

Hoje todo mundo fala. Todo mundo sabe tudo. Paga-se para centenas de imbecis ficarem cagando regras, por exemplo, sobre futebol. Se jogarem uma bola na direção deles, saem correndo na direção oposta. Mas sabem tudo e, de vez em quando, recebem um contravapor de um boleiro para deixar de falar besteira. Em economia, política, sexo, etc., há os especialistas. A moda agora gira em torno dos chefs de cozinha - e todo mundo virou cozinheiro de chapelão e uniforme. Qualquer hora vai aparecer aquele que vai analisar a personalidade da pessoa através do cocô, bolo fecal, troço, tolete, produto interno bruto. Foi por tudo isso que zarpei e não quero saber de nada - mesmo porque não sei de nada. Simplesmente cansei dessa palhaçada toda. Para quem insiste em me dizer que leu não sei o quê ou viu não sei onde, tenho uma resposta pronta para calar a boca de quem quer me incomodar: "Onde o vento faz a curva eu passo reto".

deito

De Paulo Leminski

tudo dito,
nada feito,
fito e deito

Amelinha Foi Deus quem fez Você


quinta-feira, 14 de julho de 2016

Jardim encantado

Eles me levaram porque estava falando com a parede - há um bom tempo. Começou porque ali havia um jardim muito florido e o natural encantamento de quem nasceu no mato. Quando viemos para a cidade, a sorte foi achar aquela casa bonita, ensolarada e com um quintal enorme, sem muros, que se estendia para os lados até perder de vista. As folhagens e as flores nasceram porque plantadas com amor. Muita gente pedia mudas - ninguém se atrevia a entrar e roubar. Ganhavam apenas aquelas que eu achava que mereciam. Foi então que veio o muro - erguido exatamente por alguém que tinha ganho as mais lindas flores. Não houve conversa. De um dia para o outro o paredão estava lá. O pior é que tudo do lado de cá começou a murchar, a morrer - e uma tristeza invadiu a casa e o coração de quem morava nela. Fui falar com o muro, tentando convencê-lo do quanto seria bom para todos se ele caísse, sumisse, para que tudo voltasse a ser como antes. Tentei em vão. Me levaram enrolado. Me deixaram dentro de uma sala com paredes acolchoadas. Não vou tentar me matar. Mesmo porque consigo ver e sentir aquele jardim encantado.

saudade

De Sérgio Rubens Sossélla

as pinturas
os retratos nos olham
com saudade


Tom Zé Só (Solidão)


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Confissão

Na calçada da avenida movimentada. Dia de semana. Trânsito intenso. Do outro lado, uma igreja antiga e um padre velhinho na porta. Deu o estalo. Há séculos sem uma confissão. Pecados? Quase todos. Esperei uma brecha, atravessei e fui falar com o sacerdote. Sim, ele poderia me confessar, mas perguntou antes meu estado civil. Nunca sei direito o que falar, mas oficialmente sou divorciado. O padre então disse que era impossível atender meu pedido, pois divorciados não podem confessar, pagar a penitência e comungar. Eu disse então que poderia ter mentido para ele, revelando que era solteiro ou viúvo e que, lá dentro, no confessionário, contaria mentira. Ele fez de conta que não ouviu e entrou pela porta enorme. Fiquei ali parado. Fiz o sinal da cruz e pensei tantas coisas que, só elas, me acarretariam uns dez terços para me livrar dos pecados. Amém.

No mundo da lua

De Helena Kolody

Não ando na rua.
Ando no mundo da lua,
falando às estrelas.

Martinha Eu te amo mesmo assim


terça-feira, 12 de julho de 2016

Branca

Sempre esteve aqui ao lado, mas nunca pensei que ali estava a explicação que nunca consegui. Xangô com seus dois machados empunhados. Saravá! Bati forte no peito, como vi a mãe de santo fazer no terreiro, e com a ponta do dedo indicador alisei a lâmina. O corte, a dor, o pingo de sangue - mata, cachoeira e pedreira eu senti. Soube então porque desde sempre fui juntando todo tipo de arma branca: faca, punhal, navalha, foice, canivete, bisturi. Juntos numa gaveta pouco abaixo do meu santo, o silêncio metálico à espera de algo, talvez nada, talvez a justiça. Quando abri o local, a gota de sangue batizou a peixeira. Ela veio lá de cima, onde andava enfiada na cintura da calça bem no meio das costas de um homem sereno que nunca precisou furar o bucho de ninguém, mas que sempre estava atento. Olhei Xangô. Ao lado, uma imagem do mesmo tamanho de Nossa Senhora Aparecida parecia dar equilíbrio a tudo. Arma branca também é paz.

epitáfio para o corpo

De Paulo Leminski


Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

Clara Nunes Canto de Areia


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Delírio

Fiquei cego no orquidário. Depois de anos voltei a ver os mesmos monstros e bichos iguais àqueles dias em que estive amarrado na cama. Delírio. Urrava tão alto, com medo de ser devorado pelo medo, que os outros pacientes reclamaram com a direção do hospício. Décadas depois sem beber uma gota de álcool, aconteceu. Primeiro olhei com carinho uma orquídea branca que veio dos confins do mundo. Fechei os olhos naquela estufa para sentir o perfume inebriante e, quando olhei de novo aquele paraíso, lá estavam eles - e ceifando todas as plantas. Como num pesadelo acordado, fiquei imobilizado. Não podia gritar dessa vez. Não sabia o que fazer. Pensei então em todas as coisas bonitas que aquelas plantas poderiam proporcionar. Quantas declarações de amor e de amizade? Então tudo voltou ao normal - e só então vi quantos brotos estavam para nascer em todas elas. Era o futuro, como no presente e passado.

O que quer dizer

De Paulo Leminski


O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

Maysa Alguém me Disse


quinta-feira, 7 de julho de 2016

O poeta e o campeão

Na casa do poeta fui. Missão profissional. Ele aceitou a encomenda - e escreveu. Era sobre um time - inimigo do dele. Poeta é rubro e negro, mas o campeão vestia verde e branco. Vi um jardim na casa de madeira. Ele escreveu sobre como a cidade amanheceu pela primeira vez com um campeão do país. Foi lido no Brasil inteiro, dentro de um espaço onde a moldura era apenas o registro do momento. Depois, o poeta foi embora - e quando resolveram homenagear aquele campeão no século de vida, lá estava a poesia. Mas por erro ou má fé de algum ignorante, era ele quem assinava todo o texto - e não só sua obra. Quem escreveu o feijão com arroz se sentiu gratificado, mas o povo foi enganado.

um dia vai ser

De Paulo Leminski

pelos caminhos que ando
 um dia vai ser
   só não sei quando

Rildo e Misael Hora Sampa


quarta-feira, 6 de julho de 2016

Gelo

O retrato da minha alma aparece por inteiro nos dias de geada forte. Eu não sabia disso porque na minha terra não tem disso não. No dia em que a temperatura baixar dos dez graus, morre toda a população da região. Quando desembarquei no sul, que não é tão maravilha, fui morar em casa de madeira que parecia coisa de filme. Tinha um gramado enorme na frente e um pomar atrás. Diziam que o bairro era nobre. Mas quando o inverno chegou... Dentro da casa, marrom com detalhes em branco, fazia mais frio que fora. Acostumei. Foi ali que um dia me descobri no tanque. A água acumulada ficou com uma fina camada de gelo durante a madrugada. Coloquei o dedo e ele se desintegrou. Aquilo era - e é, meu retrato interior. Daí a preocupação em me proteger o máximo possível, com medo de que alguém aponte o dedo, mesmo sem cutucar qualquer ferida - e eu logo desapareça pelo buraco da insegurança. 

Insensatez

De Nelson Capucho


o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia

do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
                 dos dias

Raul Seixas


terça-feira, 5 de julho de 2016

Pediu!

Ouvi. Sem querer, mas ouvi. O adolescente de queixo erguido diante de uma mãe já meio carcomida pelo tempo, gritou: "Eu não pedi para nascer!" O barulho do tapa na cara foi muito maior que o de uma bomba atômica no meio do deserto. Depois, tudo parou. O silêncio podia ser cortado em fatias. O garoto ficou com o corpo todo roxo. Menos a face esquerda, onde estalou a palma da mão da mãe. Olhei para o rosto dela. Parecia rejuvenescido. Agora era bonita e iluminada. Imaginei que aquilo estava entalado na sua alma. O que tinha suportado daquele fedelho de calça caída, mostrando a cueca colorida e o início do rego da bunda? As roupas e o tênis eram de grife, provavelmente comprados com muito sacrifício pela doce senhora. E o que mais? Será que ele já era da turma do tubão, da maconha e etc? Se ele não tinha pedido para nascer, depois daquele tabefe, se fosse decente, iria encontrar o motivo para caminhar e respeitar aquela mulher. A que virou o corpo e saiu caminhando pelo corredor do shopping como se estivesse flutuando nas nuvens. Ela tinha acabado de renascer.

Cinco e dez

De Paulo Leminski

Cinco bares,
dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro de um táxi

Germano Mathias


segunda-feira, 4 de julho de 2016

Goleiro

Nosso campinho ficava num terreno entre duas casas. Não sabíamos quem era o dono. Limpamos tudo, deixamos só na terra, fizemos as marcas com cal, as traves com uns caibros de um depósito de material de construção que ficava perto de um morro que tinha ali perto - e, claro, desafiamos a turma da outra rua para a batalha. Na verdade, para as batalhas, pois enquanto durou aquele espaço, todo santo domingo de manhã, para pegar o público que voltava da missa, os inimigos da avenida Central eram nossos adversários. O campo era uma desafio para a lógica futebolística, pois totalmente descaído, ou seja, um ponta esquerda poderia ver o da direita como se este estivesse em outra dimensão, tal a desproporção que havia entre as laterais do terreno. Um estava no céu - o outro, no inferno. A bola tentava nos obedecer. Nosso time não tinha camisa oficial, mas o nome era sonoro e colorido: Ouro Verde. De onde veio isso? Acho que foi ideia do técnico, um adulto que a gente chamava de vermelho por motivos óbvios. Um dia nosso goleiro enfiou o quengo no poste, desmaiou e saiu ainda no primeiro tempo. Ele gostava da posição, por isso a gente achava que lhe faltava um parafuso na cachola. Como não havia reserva, passaram a função para o perna de pau mais próximo - no caso, eu mesmo, lateral direito de dar bicuda até na sombra. Fui e me dei bem. Só tomei um frango e quatro gols inapeláveis, como diziam os locutores da época. Anos mais tarde arrisquei voltar para a posição. Não durou muito. Mas sempre no meu time, ou seja, dos amigos do peito. Tenho as luvas até hoje. Não alugo para ninguém.

PARADA CARDÍACA

De Paulo Leminski


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.

Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Benjor