segunda-feira, 30 de setembro de 2013

Jorge Goulart O Último


do vento

De Paulo Leminski

   coisas do vento
a rede balança
   sem ninguém dentro

Por dentro

O doutor apertou um botão do aparelho celular super-turbo-intercooler e na tela apareceu a coisa. Olhei, olhei - e não identifiquei. Ele contou que era um dedão do pé decepado e preso ao corpo só por uma parte da pele. A vítima tinha sido atingida por uma barra de ferro. O doutor mostrava aquilo com a impassibilidade dos médicos. Na foto seguinte o dedão estava reimplantado, costurado e roxo. Pedi para ver de novo a foto anterior. Lembrei de que o mesmo médico tinha feito uma minha. Quem caiu fui eu. Rompi o tendão acima do joelho direito. Ele mesmo operou e quando abriu a avenida da rótula ao meio da coxa e escancarou tudo para fazer o serviço de religação, clicou. De vez em quando olho aquela imagem para me ver por dentro. Chego à conclusão que tem relação com todas as neuras e dúvidas da existência. Olho sangue, carne, nervos e ossos agredindo o que resta de bom senso em mim, tal a complicação daquele emaranhado. Sou eu por dentro.

domingo, 29 de setembro de 2013

sexta-feira, 27 de setembro de 2013

meu eu brasileiro

De Paulo Leminski

   quisera poder pensar
como se faz no velho mundo
   eles me querem espelho
como se não tivesse mistério
   essa minha falta de assunto

Toni Tornado e Trio Ternura na BR 3


Tiros certeiros

Cuspi porque não havia outro jeito. Venci todos os medos e o fato de nunca ter brigado na vida. Cuspi com força e acertei bem entre os pés do fulano. No meio. Vi até uma poeirinha levantar, como se fosse numa cena em câmera lenta do Sam Peckinpah. Ohei nos olhos dele. Impassível. A frase todo mundo conhece, mas... vamos lá: quando este cuspe secar, eu vou te matar. Ele riu com a segurança que eu jamais tive. Ficamos ali parados. O sol estava forte. Começo da tarde. Ele deu um passo para trás. Não queria fazer sombra para aquela poça de cuspe. Então me preparei para o desfecho. Ou eu ou ele ia para a casa do chapéu, como a gente dizia. O mundo em volta não existia. Ouvi um latido de cachorro, mas era tão distante que parecia vindo de outro planeta. Secou! Ele puxou a arma. Eu puxei a minha, prateada, cabo vermelho. O gatilho mais rápido foi o meu. E a espoleta funcionou. A dele, não. Logo depois do estampido ele levou a mão ao peito e caiu. Andei devagar. Cheguei perto e disse: ganhei. Ele tirou o cinturão e me deu com a cartucheira vazia. Peguei o revolver preto de cabo branco da mão dele. Era da marca Estrela, como o meu. Olhei o lugar onde tinha cuspido. Tinha uma marca. Tiros certeiros, pensei.


quinta-feira, 26 de setembro de 2013

vivo ou morto

De Paulo Leminski

   pedaço de prazer
perdido
   num canto do quarto escuro
inferno paraíso
   vivo ou morto
te procuro

Dircinha Batista Entrei de Gaiato


Coelho

Sou um coelho. Gigante. Mas coelho. Meu nariz é frio e tem antenas. Ando pelas ruas de uma cidade grande qualquer. Não, não é Páscoa. Sou um coelho cujo calendário não é de chocolate e nem bolinho. Foi o que restou na minha vida. Me acostumei. Faço propaganda. Os meus pelos estão encardidos. Minha alma também. Outros entraram aqui dentro, mas desistiram. Estou fazendo isso há mais de ano. Sou um coelho velho e sem coelhinhas. Impotente. De tudo. Olho a paisagem por um pequeno buraco. Algumas crianças me adoram. Outras têm medo. Por causa do tamanho. Não sei se sou macho ou fêmea. Vai ver sou um coelho anjo. Hoje aconteceu uma coisa estranha. Vi outro coelho no calçadão. Eu indo, ele vindo. Paramos. Olhamo-nos. Buraco no buraco. Lá dentro tinha uma mulher. Eu fiquei com vontade de conhecê-la. Marcamos encontro. Fui lá no endereço que ela me deu. Nas quebradas. Casa simples. Limpinha. Ela sozinha. Eu sozinho. Rostos sofridos. De coelhos sobreviventes. Ela disse que tinha uma surpresa. Era um bolo. Comi um pedação. Delicioso. Bolo de cenoura.

quarta-feira, 25 de setembro de 2013

terça-feira, 24 de setembro de 2013

Elza Soares O Neguinho e a Senhorita


cinco bares, dez conhaques

De Paulo Leminski

cinco bares, dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro do taxi

Tosse

Ouviu alguém tossir e acordou. Morava numa cabana no meio do nada. Sozinho. Tinha decidido assim. Assim estava decidido. Foi há anos. Conseguia sobreviver com o mínimo. O máximo eram os livros empilhados na estante. Lia, relia. Aprendia cada vez mais. Para que, não sabia. Importava o prazer de adentrar aos mundos abertos pelos escritores da preferência. Por ali não passava ninguém. O lugar ficava na margem de um pântano. Mas ele sabia os caminhos dos paraísos locais. Não contava para ninguém. A tosse. Levantou. Saiu com a lamparina na mão. Seguiu o som. Viu o vulto vestido de branco. Parecia uma mulher. Era. Chegou perto. Perguntou se estava tudo bem. Ela disse que sim. Ele quis saber o que estava fazendo tão longe de tudo. Ela mostrou um cigarro aceso. Tinha saído de uma festa. Nervosa por ter brigado com o marido. Se perdeu. Saiu de carro, pegou estrada, parou longe no breu da noite e andou até cansar. Chegou ali. Ficou a pensar. E a fumar. Então, deu mais uma tragada e disse que voltaria para o lugar de onde saíra. Estava mais calma. Enquanto falava, não tossiu. Só fez isso quando ele se virou e voltou para a cama e seus pensamentos.

segunda-feira, 23 de setembro de 2013

Mistérios da Meia-Noite Zé Ramalho


CARA FEIA

de Paulo Leminski

PRA QUE CARA FEIA?
NA VIDA
NINGUÉM PAGA MEIA

Canalhas

Todo canalha é magro. Discordo. No Brasil quem não é canalha na véspera é canalha no dia seguinte. Concordo. Nelson Rodrigues atirava bem. Reacionário, com muito orgulho. Brasileiro a despir o espírito vira-latas do brasileiro. Adorava a palavra canalha, por ser mais forte que o barulho do tapa dado na cara no meio do povo. Conheci um canalha sem conhecer. Deduzi. Pelas informações. Agora é canalha no mau sentido - e não quero nem saber. Canalha no bom sentido há vários. Um, por exemplo, colocou uma placa enorme no escritório em que trabalhava. Acima da cabeça dele estava escrito: "Todo homem é canalha". Esse era um bom canalha, pois já avisava sobre o defeito de caráter generalizado do ser masculino. As mulheres gostam deste tipo de canalha. Outras gostam do outro tipo, os maus canalhas, os que exploram a ingenuidade, os enganadores de plantão. O canalha que não conheci é assim. Por ser amado e não amar, não corta, estica a novela para ter o domínio da presa. Que canalhice!! Um dia, contudo, encontrará a canalha que fará a mesma coisa com ele. Isso se, em vez da canalha, não lhe aparecer uma navalha - só para rimar e lembrar Plinio Marcos.

sexta-feira, 20 de setembro de 2013

Disparada de Hamilton de Holanda


epitáfio para a alma

De Paulo Leminski

aqui jazz um artista
mestre em desastres

viver
com a intensidade da arte
levou-o ao enfarte

eu tenha pena
dos seus disfarces

Careca na neve

O trauma provavelmente era hereditário. Desde que prestou serviço militar, as entradas na cabeça começaram a aparecer. Ele morria de medo de ficar careca. Talvez por ter sido um dos maiores gozadores dos "pouca-telha" durante a infância e adolescência. Talvez por ter visto seu pai sofrer com a calvície e tê-lo visto pintar a cocuruto de preto porque não tinha dinheiro para comprar uma peruca. Então fez de tudo para, pelo menos, parar a progressão daqueles caminhos. Todos os remédios e unguentos foram passados. Até xixi de porco e merda de galinha passou - tentativas que faziam sua mulher ficar cada vez mais nervosa. Ela achava que o marido deveria, sim, é ir para ao divã de um psicólogo ou psiquiatra. Ficaria mais barato fazer a cabeça de uma outra forma, dizia ela. Nada. Peruca, implante, ele jamais usaria. Não gostava de ver outras pessoas que adotavam essas medidas paliativas. Ficou careca. Sobrou o rodapé. Ele usava um boné que não tirava nem para tomar banho. No emprego novo  pouca gente sabia do problema. Até que um dia um moça muito bonita e delicada, que ele admirava, fez a pergunta fatal: "Nevou lá no seu bairro?" Ele não entendeu até que se olhou no espelho e viu a quantidade de caspa que tomava conta dos ombros de seu paletó.

quarta-feira, 18 de setembro de 2013

Jorge Ben e Trio Mocotó


voláteis

De Paulo Leminski

Anos andando no mato,
nunca vi um passarinho morto,
como vi um passarinho nato.

Onde acabam esses voos?
Dissolvem-se no ar, na brisa, no ato?
São solúveis em água ou em vinho?

Quem sabe, uma doença dos olhos
Ou serão eternos os passarinhos?

Eu só quero chocolate

Ele tinha visto o filme do Woody Allen e sabia que não poderia tentar fazer uma arma da barra de sabão. Não era um Assaltante bem Trapalhão. Mas pensou em algo parecido quando recebeu aquela barra enorme de chocolate ao leite. Era um artista com a ponta da estilete. Fez uma Luger que só faltava cuspir balas toffee. Planejou a fuga nos mínimos detalhes. Combinou até que carro queria para esperá-lo do lado de fora da prisão. Deu tudo certo até pouco depois de ele render o último guarda. Estava respirando o ar da liberdade quando aconteceu o imprevisto. Não, não choveu como no filme do grande comediante. Nem estava calor de derreter tudo. Apareceu uma cadela. Pequena. Branca com manchas pretas. De longe já vinha farejando o ar. Estava acompanhada de um senhor de cabelos brancos. Ao chegar perto do fugitivo, nhac, só deixou o cabo da 9 mm na mão do bandido. Os guardas chegaram. Ele estava sem saber o que fazer, parado, com aquele resto de chocolate na mão. A cadela queria mais. Ele deu. E voltou para a cela. O velhinho riu. Foi ele quem viciou o animal.

terça-feira, 17 de setembro de 2013

por um lindésimo de segundo

De Paulo Leminski

   tudo em mim
anda a mil
   tudo assim
tudo por um fio
   tudo feito
tudo estivesse no cio]
   tudo pisando macio
tudo psiu

   tudo em minha volta
anda às tontas
   como se as coisas
fossem todas
   afinal de contas

Boca do estômago

Na boca do estômago o soco é como receber a visita indesejada de um furador de gelo. Pensei nisso quando entrei no consultório do pronto-socorro do hospital. Só que a dor não vinha de fora. Estava dentro, me corroendo tanto que eu andava curvado feito um velho de 200 anos para tentar aliviá-la. Gastrite. O médico então perguntou se eu bebia. Eu disse que comia. Perguntou se eu usava drogas. Perguntei se ele tinha alguma novidade. Perguntou se eu cheirava cocaína. Eu disse que colocava pasta base no pão para fazer sanduíche. Como todo médico, o doutor não ergueu nem uma sobrancelha de preocupação. Me aplicou uma injeção que fez sumir a maldita queimação nas entranhas. Pedi algumas ampolas para levar para casa. Ele riu. Aí fez a recomendação: antes de usar qualquer coisa, coma gelatina. Perguntei se ele tinha alguma pronta ali. O do jaleco branco deu risada. Passei no supermercado e enchi um carrinho. A moça do caixa perguntou se ia ter festa de criança na minha casa. Eu disse que sim.

Mas que Nada Sergio Mendes e Brasil 66


segunda-feira, 16 de setembro de 2013

O amor é meu País Ivan Lins




jardim de amiga

De Paulo Leminski

   jardim da minha amiga
todo mundo feliz
   até a formiga

Um barco na noite

Todos fomos acordados no meio da madrugada. Amarrotados que estávamos da viagem de Belém a São Luis. Era preciso atravessar o rio num barco fechado. A luz era mínima. Entramos e nos sentamos em dois bancos que nos deixavam uns de frente para os outros. Ninguém se olhava. Quando o motor a diesel acelerou e começamos a navegar, parecia que a escuridão do infinito tinha tomado conta de tudo. A quilha cortava a água e a maioria fechava os olhos. A margem que deixamos se elevou até o céu - e a que nos esperava estava abaixo da linha da água. Era como um daqueles precipícios de pesadelo, onde caímos até acordar. Um solavanco tirou todo mundo daquele pavor. Saímos. Esperamos mais um pouco o ônibus que continuaria a viagem. Entramos. O dia começou a clarear e a floresta que ladeava a estrada era de um silêncio que remetia aos deuses. Mas o barco e aqueles longos minutos sobre a correnteza do rio ficaram marcados a ferro e fogo em todos aqueles corações.

sábado, 14 de setembro de 2013

sexta-feira, 13 de setembro de 2013

Claudette Soares De Tanto Amor


sacro lavoro

De Paulo Leminski   

   as mãos que escrevem isto
um dia iam ser de sacerdote
   transformando o pão e o vinho forte
na carne e sangue de cristo

   hoje transformam palavras
num misto entre o óbvio e o nunca visto

Bife a cavalo

A primeira coisa que chamou atenção quando ele desembarcou feito um trapo de gente na cidade grande foi o cartaz de um restaurante meia-boca que anunciava o prato do dia: bife a cavalo. Nunca tinha ouvido falar lá no seu canto do mundo, que ficava bem distante e perdido na poeira do mapa de um estado tão pobre quanto ele. Saiu meio brigado com pai e mãe, porque não aguentava mais aquilo de levantar e ficar cavocando terra seca o dia inteiro, para depois rezar pela chuva que nunca vinha. Como podem servir bife a cavalo? matutava. Ficou com aquilo na cabeça durante muito tempo e não perguntava pra ninguém porque era bicho bruto e tímido. Tinha medo de passar vergonha. Arrumou trabalho pesado, mas isso ele estava acostumado. Comprou uma muda de roupa, guardou um dinheirinho, criou coragem e foi lá descobrir o que era aquilo. Serviram o bife com o ovo em cima e perguntaram se queria arroz ou fritas. Arroz ele conhecia. Veio a batata. Ele ficou olhando a composição, linda - e quase deixou esfriar tudo. Comeu e se apaixonou. Voltava ali uma vez por mês. Nem precisava pedir, pois o garçom já sabia o que queria. De repente, depois de muito tempo, sumiu dali. Estava indo em outro endereço. Tinha descoberto o filé a cavalo. Com fritas. Sempre.

quinta-feira, 12 de setembro de 2013

Lâmpada

A mochila era dessas vagabundas, cor do exército - qualquer exército. Um gorro na cabeça segurava um pouco os cabelos, caídos até o meio das costas. Barbudo, magro, alto, ele não aguentava mais aquele calor insuportável da cidade do Norte brasileiro. Tinha viajado três dias de ônibus com o propósito de chegar a Manaus via Rio Madeira. Dali, iria para Belém num daqueles barquinhos que volta e meia se transformam em notícia porque afundam. Estava a algumas centenas de quilômetros do primeiro barco. Procurou um abrigo barato. Indicaram um quarto num posto de gasolina de beira de estrada. Foi. Pagou. Entrou. Fechou a porta. Acendeu a luz. O espaço era todo pintado de marrom - e não tinha janela. Muito menos um ventilador. Ele tirou a roupa, tomou um banho e logo depois de se enxugar estava suando em bicas. Deitou. Olhou para o teto. A lâmpada era amarela. Ele ficou olhando e o calor foi aumentando. Achou que estava delirando pois sentiu uma brisa, viu o sorriso branco como pérola de uma menina da cor das paredes e do teto, sentiu água do rio nos pés, viu a floresta de cima, a lua fazer um facho de luz na água do rio durante a madrugada. No dia seguinte foi em busca do que procurou. Levou a lâmpada e a luz com ele.

lesma de maio

De Paulo Leminski

   feliz a lesma de maio
um dia de chuva
   como presente de aniversário

Travessia Milton Travessia


quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Balão

Veio balão como um disco voador. Pequeno, multicolorido, proibido. O céu estava azul sem nuvem, fim de tarde, névoa no horizonte. Descontrolado, caindo, se enroscou nos fios perto de um poste com luz. E ardeu nas chamas da tocha. Um pedaço ainda voou e caiu no gramado bem cuidado de uma casa. A bucha ardeu mais um pouco,enroscada num fio. Depois apagou. Um filete de fumaça subiu. A luz da rua se acendeu e iluminou uma fita amarela que veio pendurada e ali ficou. Fita amarela. Lembrou a canção. Lembrou choro. Lembrou vela. Lembrou Noel. E ela balançando ao sabor do vento, formando figuras, letras. Atravessou a noite e, no outro dia, escorreu no fio e ficou mais distante do poste. Um rajada mais forte e ela se partiu. Mas um pedaço ficou, a balançar feito bandeira fincada para comemorar um fato. O do balão caindo na tarde de domingo.

rima rica

De Paulo Leminski

teu riso
reflete no teu canto
rima rica
raio de sol
em dente de ouro

Canhoto da Paraíba Entrando na Bossa


terça-feira, 10 de setembro de 2013

Cascatinha e Inhana Índia


Encontro

Ele encontrou na menina loira os mesmos medos sem explicação. E compartilharam sem trocar uma palavra sobre isso. Ele tem a foto da primeira comunhão dela. Anjo dentro da nave, vela acesa e um rosto iluminado por ser assim mesmo. Inteligência faiscante e muito mais rápida do que o mais rápido dos computadores que ainda não inventaram. Se encontraram através de outro encontro. Ela ficou na dela e ele na dele, mas juntos pelo silêncio do entendimento. Quando trocavam palavras, eram definitivas, porque um sabia o que o outro sabia - e a isso se chama amor. Até pelo mesmo time eram apaixonados. E ele, cansado de tantos jogos na vida, ficava esperando a torcedora voltar dos estádios para lhe resumir em uma linha o que foi a partida. E como ela entendia deste mistério chamado futebol! Quando a arte do jogo jogado pelo time dos dois aparecia, de forma rara, ela não esperava ser procurada para contar. Procurava-o no entusiamo do coração pulsando de alegria pelo melhor do universo. Ele a olhava e tinha mais coragem de enfrentar demônios antigos e novos. Um dia chorou bem baixinho porque ela teria de ir até ali e voltar só um tempo depois. Um oceano de mar azul os separaria. Um infinito de situações e sentimentos os uniriam mais. Ele então abriu as asas do coração e seguiu antes, para aquele canto do outro lado do mundo. Continuou protegendo-a. E não precisou declarar. Porque sabia que ela sabia, pois foram feitos para o encontro no silêncio da vida.

teu riso

De Paulo Leminski

teu riso
diz sim
teu riso
satistaz

enquanto o sol
que imita teu riso
não sai

quinta-feira, 5 de setembro de 2013

Cabaço

Cabaço. Ouviu pela primeira vez enquanto carpia mato na roça. Cabaço. O que seria aquilo? O masculino da cabaça? Essa ele conhecia naquele fim de mundo. Bebia água nela. Tomava banho com ela. Metade dela, aliás. Um dia, com uma inteira, deu na cabeça de um desafeto que ficou falando mal da roupa que ele usava, só por causa dos buracos na calça e porque a camisa que um dia foi branca estava encardida. Pobre ele sabia que era. Só não sabia o que era cabaço. Não perguntou para o pai, que era fechado; nem para a mãe, pois podia ser que aquela palavra sonora fosse de porcaria, como se dizia ali. Cabaço ficou na cabeça. Nas noites estreladas ele ficava sentado no banquinho do lado de fora do casebre, encostado na parede de barro, olhando todo aquele universo, mas achava que o cabaço era muito mais misterioso. Até que um dia, muito tempo depois, soube. Porque a mulher que amava lhe contou. E ele entendeu que era apenas uma palavra com sonoridade suficiente para atravessar séculos fazendo estragos.

Leny Andrade O mundo é um Moinho


eremita

De Paulo Leminski

   Esta vida de eremita
é, às vezes, bem vazia.
   Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

quarta-feira, 4 de setembro de 2013

Camisa de Vênus Deus me dê Grana


dentro e fora

De Paulo Leminski

   lá dentro
o que é que tem
   que aqui fora
não tem ninguém?

A luz no fim da estrada

No divã ele ouviu a história atentamente. O viajante estava numa daquelas estradas retas como a Belém-Brasília. A noite se aproximava e, de repente, pneu furado. Ele foi trocar e... cadê o macaco? Não estava ali. Olhou para os lados, para frente, para trás e, até perder de vista, nada. Não passava carro e não havia nenhuma construção. Com a escuridão se aproximando, viu o que poderia ser uma luzinha lá na linha do horizonte, ao lado da rodovia. Trancou o carro e foi andando naquela direção. No caminho, porém, péssimos pensamentos tomaram conta. Uma casa no meio do nada? Poderia ser esconderijo de bandidos ou algo parecido. A cada passo, aumentava o pavor, enquanto a luz se definia - e era mesmo de uma casa perdida no nada. O medo não o fez parar. Mas os demônios se apoderaram totalmente da sua cabeça. Tanto que, ao bater na porta e se deparar com uma pessoa que não tinha nada que aparentasse ser do mal, ele desabafou: "E quer saber de uma coisa? Enfia esse macaco no cu!". Ao ouvir o fim da história, sabia do que se tratava, mas, depois de pensar um pouco, perguntou para a terapeuta: "E se a luz estivesse apagada naquela casa?"

terça-feira, 3 de setembro de 2013

Pelo telefone

Vinte anos depois abriu o baú. Ali guardava todos os cartões de visita que recebera durante a vida profissional. Pacientemente começou a tentar entrar em contato com aqueles nomes. Tinha um telefone antigo, preto, pesado, de discar. Mantinha o costume de fazer isso com um lápis ainda a ser apontado. Não lembrava quando começou a colecionar os tais. Mas sabia que nunca havia telefonado antes para seus portadores. Achava-os chatos de galocha. Pessoas que incomodavam e que tinham prazer em passar a coisa como se aquilo aumentasse a própria importância, o status, o poder. Agora ele queria falar algo, mas não sabia o quê. Demorou dias, meses nessa tarefa. Não conseguiu falar com ninguém. No último número, uma secretária eletrônica atendeu. Mas a gravação não dizia a quem pertencia aquele telefone. Ele rasgou o cartão, fechou o baú e chorou sozinho na sala da casa que ficava no alto de uma colina sem árvores.

espelho

De Paulo Leminski

   acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver
   meu sonho virar pesadelo

Prezadíssimo Ouvintes Itamar Assumpção


segunda-feira, 2 de setembro de 2013

Chico Science Banditismo


elo e duelo

De Paulo Leminski

             veloz
como a própria voz
             elo e duelo
        entre eu e ela
virando e revirando nós

Rango

Com o macarrão ele forrou o prato. Bem forrado. Depois jogou o feijão preto em cima e a massa sumiu na escuridão. Aí a abobrinha compareceu dando o tom verde à instalação. O dono do prato segurava-o com a mão esquerda e ia colocando as camadas com a eficiência de um artista. A quirela ele espalhou. Com o arroz ele exagerou e alguns grãos foram ao chão. Ele pisou e esfregou. Nada de salada. Foi para a mesa e ficou esperando o bifão que pousou ali como uma nave, uma coroa de rei. Aí, aconteceu. Com uma técnica absurda, ele conseguiu revirar e misturar tudo sem deixar cair nada. Fez mais! A cada garfada engolida (ele não mastigava), revirava tudo de volta - sempre no mesmo sentido, partindo do lado mais próximo do seu peito e escorando a massaroca com o garfo. O bife aparecia e desaparecia, mas ia diminuindo porque, depois da garfada, ele cortava um pedação e comia. Não bebeu nada. Ao final, limpou a boca com barra da camiseta puída, prato limpinho à frente, e foi ao balcão pagar. Nove reais pelo rango.