sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Angela Maria Babalu


torre

De Paulo Leminski

tão
alta
a
torre

até
seu
tombo
virou
lenda

Meleca

Se o Papa pode... Ele viu a imagem do santo Francisco. Como um criança, sem se importar com a multidão, tirou meleca do nariz, como se fosse um cirurgião meticuloso, olhou o produto e depois comeu. Salgado? O ato rendeu comentário em jornal, mas o que importava para ele o que alguém comentava sobre este ato do Papa? Na memória não lembrava ter feito aquilo no tempo em que brincava com os pés na terra. Resgatou, sim, a imagem de um moleque da turminha que tinha inovado o consumo da iguaria ao colocar amendoim na cavidade nasal - de onde tirava, com precisão, um produto caramelizado para consumo próprio. Pensou tudo isso enquanto se olhava no espelho e pensava se a produção própria de meleca com consistência média tornava-se perigosa para um senhor com mais setenta anos. Tomou coragem e tentou. O dedinho, inchado pelo peso dos anos, só conseguiu penetrar até o limite da unha. Tentou achar algo. Não conseguiu. Ficou triste. Tirou. Lavou as mãos. Olhou-se de novo. Um fio transparente estava pendurado desde a narina esquerda. Tocou com a ponta da língua. Sentiu o gosto. Não sabia se era a mesma coisa.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

da hora

De Paulo Leminski

  em cima
 da hora
tudo
      piora

Galopeira Chitãozinho e Xororó


A barba

O psiquiatra espetou: "Está querendo se esconder de você atrás dessa barba?" Estava internado ali há mais de um mês. A suspeita era a de que tinha saído da casinha, espanado a rosca, pirado, enfim. No pátio gigante ele já tinha contado mais de duzentos perambulando sob o sol. Não estava bem, mas a confusão mental que o levava ao poço escuro foi esquecida com a pergunta. Lembrou então que cultivava aqueles pelos no rosto desde que deu baixa do Exército. Odiava fazer a barba todo dia. Ainda mais porque se feria sempre. Medo. Sim, tinha medo de tudo, mas não tinha se tocado que... Medo dele mesmo? Passaram-se 20 anos e ele lembrava apenas que não gostara de uma foto feita dele comendo caranguejo com a barbicha toda melada. Na primeira licença foi ao barbeiro. Pediu para ficar de costas para o grande espelho. Passou máquina no cabelo, navalha na cara. Quando se viu, viu que não era aquele. Era ele. Achou que não tinha se estragado tanto assim nos 20 anos de labirintos. Sorriu. Saiu. Sentiu o sol. Voltou a falar com o doutor. Recebeu elogio. Progrediu rápido na direção da normalidade - que é verdadeiramente absurda. Hoje, de vez em quando, abre uma caixa e olha os pelos que recolheu naquele salão. Ali ficou o passado sombrio.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Eduardo Araújo em Rodeio


sol e lua

De Paulo Leminski

SOL
LUA
POR QUE SÓ UM
DE CADA
              NO CÉU
              FLUTUA

O bode

O bode veio por causa do bode. Vi o bode através da cortina de renda. Fiquei ali no silêncio do campo. Ele pastava na beira do lago. Era preto. De repente, empinou. E ficou durante muito tempo apoiado nas duas patas traseiras. Depois pulou no lago e nadou de costas. Eu olhei aquilo e achei que era delírio. Fui lá perto. Não era. O bode agora nadava de peito. No fim da tarde, estrelinhas brilhavam na água. Verifiquei o lugar onde o bode pastava. Tinha o resto de uma planta. Peguei, coloquei na boca e comi. Não demorou muito e vi um pote trilhar o arco-iris. A paisagem em volta sumiu sob meus pés. Ficou a água flutuando na minha frente. Com o bode. Ou melhor, as pernas do bode. Entrei na água. Não me molhei. O bode enfiou a cabeça dentro da água e falou. Mandou eu ir dormir. Fechei os olhos. Acordei no dia seguinte deitado embaixo da cortina de renda. Levantei. Olhei para fora. O bode estava pastando naquele mesmo lugar de não sei quando. Senti uma dor de cabeça violenta. O corpo moído. Estava de bode.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Relógio do mar

O costume de sempre. O primeiro mergulho no mar era demorado. Abria os olhos lá embaixo e conversava com Iemanjá. Fez isso novamente e descobriu depois que o relógio não era tão à prova d'água como até então parecia ser. Todo em aço, mostrador branco, estava parecendo uma piscina redonda com ponteiros e números no fundo. Amava aquela máquina. Tinha vários botões, mas ele nunca utilizou nenhum, nem sabia para que serviam. Levou para casa e o deixou na mesa de trabalho, ao lado do telefone. Todo dia dava uma olhada para acompanhar os efeitos da água do mar. O líquido sumiu. A ferrugem apareceu e foi tomando conta de tudo. Ele passou a usar o relógio que não marcava mais horas, mas mostrava aos amigos como se fosse uma peça rara. Nunca lhe perguntaram porque os ponteiros eram imóveis. Onze horas e dezoito minutos. Foi numa quinta-feira que, exatamente nessa hora, ela apareceu na tela do computador. E tudo parou. E ele ouviu a ordem na rainha. Depois que as coisas voltaram ao normal, inclusive o reloginho da internet, ele saiu de casa, entrou no carro e percorreu alguns quilômetros para jogar o relógio no mar.

Silvana e Rinaldo Calheiros



litogravura

De Paulo Leminski

   Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco do Triunfo.
   Mil duzentos e cinquenta.
Qualquer pedra na Europa
   é suspeita de ser
mais do que aparenta.

   Felizes as pedras da minha terra
que nunca foram senão pedras.
   Pedras, a lua esfria
e o sol esquenta.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Alaíde Costa na Estrada do Sertão


poesia: 1970

De Paulo Leminski

Tudo o que eu faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o máximo.

Mal rabisco,
não dá mais para mudar nada.
Já é um clássico.

Lenço na cabeça

De repente, na paisagem árida da rua com asfalto esburacado e casas sem jardins ou árvores, o lenço colorido na cabeça daquela mulher chamou atenção. Tinha estampas indefinidas, mas de cores com uma combinação tão forte que era impossível não olhar. Então, para ele, o resto sumiu e o lenço ficou, mas cada vez se distanciando mais. Mastigou o último pedaço de pão, limpou a boca com as costas da mão direita e saiu correndo na direção dele. Não sabia o motivo, mas foi. A dona do lenço apertou o passo. Ele, mais ainda. Quando estava a cinco metros do objetivo, inebriado pelas cores, sentiu um pingo de chuva no rosto. Logo depois, o temporal desabou. Por um instante ele perdeu de vista o lenço. Quando conseguiu ver a mulher... nada na cabeça dela, apenas cabelos molhados. Ele a alcançou. Era muito bonita. Tinha olhos verdes, boca carnuda. Ele perguntou sobre o lenço. Ela disse que a chuva tinha desmanchado. Era de papel.

sábado, 24 de agosto de 2013

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

saudosa amnésia

De Paulo Leminski

a um amigo que perdeu a memória

   Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
   A coisa veio antes,
ou, antes, foi a palavra?
   Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde.
   Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.

Jaqueira

O pé de pau estava lá, a uns 40 metros. Penduradas, algumas jacas. Ele ficou olhando aquilo durante algum tempo, embaixo de uma sombra, e então decidiu: "Manda derrubá". Quem estava do lado pareceu ouvir o estampido de um tiro, igual aquele que um outro parente deu ali mesmo, tentando acertar uma manga rosa ainda verde. O cenário não era de alegria como na Mangueira. E o som remeteu ao passado, quando ali naquele quase descampado havia mata e agora era só um pé de pau com plantações de mandioca em volta. Então saiu um "não" sem querer querendo da boca dele. Quem estava ao seu lado era o pai, o dono da terra, o herdeiro cuja ordem era sagrada. O olhar que recebeu era forte, daquele que lhe dava medo quando criança, mas ele segurou, porque também tinha esse olhar. Ouviu então o pai recuar, pela primeira vez na vida. A jaqueira seria mantida. Antes de partir lhe foi servida a fruta. Era mole.

Jacinto Silva Vontade de Comer Goiaba e homenagem a Jackson do Pandeiro




quinta-feira, 22 de agosto de 2013

a lei do quão

De Paulo Leminski

   Deve ocorrer em breve
uma brisa que leve
   um jeito de chuva
à última branca de neve

    Até lá, observe-se
a mais estrita disciplina.
    A sombra máxima
pode vir da luz mínima.

Zanzibar A Cor do Som


Planador

Subiu de planador e teve duas visagens lá em cima, depois que a corda se soltou do teco-teco rebocador. Os urubus como guia de correntes quentes eram o sonho de vida de qualquer um. Urubu morto nunca tinha visto. E são lindos voando. Em terra é outro filme. O piloto sentado à sua frente mostrava a paisagem. Dava explicações técnicas desnecessárias. Mas foi bonito quando disse que preferia aquele tipo de voo do que no Jumbo que pilotava como profissão. Ali era a essência de tudo. Estava, de fato, no comando. O passageiro, então, pensou na vida que não decolava. No urubu pousando para limpar terreno. Pensou, pensou, pensou... E pediu para continuar voando até nunca mais.

quarta-feira, 21 de agosto de 2013

O Nosso Amor Cris Dellano e Roberto Menescal


carnaval

De Paulo Leminski

   o carnaval passa
guardada na mala
   a tua meia máscara

O carro

Tinha o carro há dez anos. Há dez anos não pagava IPVA, multas, etc. Nunca foi parado em blitz. O automóvel andava por obra de milagres diários. Um dos vidros voou numa curva. Ele colocou um plástico preto. Um dia a direção saiu do local e ficou em sua mão - com o carro andando. Uma das portas ficava fechada porque amarrada com arame. Isso foi até o dia em que comprou um novo. O velho era um caso de amor inexplicável. Ele foi dar uma volta para se despedir. Caiu numa megaoperação policial. Foi saindo do carro e dizendo que poderiam levar. O policial mandou ele ter paciência pois precisava anotar as multas de todos os itens fora da lei. Um mês depois foi buscar seu amor no pátio do Detran. Antes, pagou tudo de uma vez. O triplo do valor daquela lata com motor doente e pneus carecas. Para isso teve de vender o novo. Ficou mais um tempo com o velho. Depois o repassou a um pedreiro. Comprou uma bicicleta. Ela ficou parada no quintal. Serve como varal. Ele tem saudade daqueles tempos.

terça-feira, 20 de agosto de 2013

Rildo Hora


flauta

De Paulo Leminski

a flauta índia
diz sempre
                  não ainda

Perto do coração

Abriu o alçapão do velho casarão que se mantinha digno no bairro todo modernizado. Estava visitando uma tia e naquela tarde de calor infernal ficou sozinho naquela imensidão de cômodos com portas que rangiam. Era uma criança e o pé direito com 10 metros o tornava ainda menor. Mas xereta. Ele desceu as escadas para um outro mundo, só visto em alguns filmes soturnos. Havia muitos móveis empoeirados, livros comidos por traças, algumas roupas espalhadas por cima de tudo. Abriu uma gaveta e se encantou com o estojo de metal contendo seringa e agulhas. Encontrou num nicho de parede algumas garrafas de vinho. Mas o que lhe chamou a atenção foi um uniforme militar que vestia um manequim cujo nariz tinha desaparecido. Procurou na cintura uma arma - de fogo ou branca. Não havia nada. Vasculhou os bolsos. No interno da jaqueta, em cima do coração, achou uma carta fechada. Sem nome do destinatário ou do remetente. Abriu. As letras eram desenhadas de forma perfeita. Era uma declaração de amor em forma de alegria e lamento. Havia descrição de encontros, mas de forma discreta. No final, a impossibilidade de se continuar o romance. Os dois eram casados. As respectivas mulheres jamais entenderiam.

segunda-feira, 19 de agosto de 2013

Cazuza Exagerado



De Paulo Leminski

tudo dito
nada feito
deito e fito

Limpeza

O piso do box do banheiro estava inundado. O banheiro também. Havia sujeira retirada por um desentupidor destes de cabo comprido e ventosa de borracha preta. Não tinha adiantado nada. O telefone tocou e eu fui atender. É minha profissão. Faço o serviço sujo. O pior é limpar fossas. O mais leve é como este, ainda mais numa mansão assim. Condomínio de bacanas, construções enormes, quintais pequenos, pisos aquecidos, mármore até no piso da entrada, decoração cara, mas duvidosa. Liguei a sonda. Enfiei no buraco. Ele penetrou fundo. Quando tirei, a água começou a escoar. Notei, entretanto, na ponta da coisa que entrou no escuro, algo estranho. Era uma joia. Um anel com um grande diamante. Chamei a dona da casa. Lavei antes a peça. Ela não quis receber. Primeiro disse que não era dela. Mas começou a chorar. Era como se algo ruim tivesse saído daquele buraco. Então, ela perguntou: "E o dedo? Achou o dedo?"

sexta-feira, 16 de agosto de 2013

Agnaldo Rayol O Princípio e o Fim


o peso da lua

De Paulo Leminski

   Carrego o peso da lua,
Três paixões mal curadas,
   Um saara de páginas,
Essa infinita madrugada.

   Viver de noite
Me fez senhor do fogo.
   A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não.
   Esse, eu mesmo carrego.

A cadeira

Comprou a cadeira numa liquidação de loja de móveis usados. Parecia novíssima. Era para o trabalho. Espaldar alto, braços acolchoados, giratória e rodinhas para deslizar pelo escritório. Macia. Muito macia. Couro marrom. Sentou e encaixou. Pagou. Levou. Descobriu então que era preciso ficar imóvel nela. Justo ele que tinha mania de se remexer tdo, como se precisasse se adaptar a alguma coisa. Fazia isso principalmente quando escrevia. E esse era seu ofício. Um dia, em transe de criação, ela, a cadeira, rangeu tanto, mas tanto, que começou a falar, gritar, xingar. Ele não ouvia. Estava em outros mundos. Até que ela o cuspiu pra fora e saiu em disparada pela porta. Não sabia, contudo, que havia uma íngreme escada logo depois. Despencou e se arrebentou toda. Ficou lá embaixo, imóvel. Ele desceu e presenciou o que foi o último suspiro dela. Uma das rodinhas caiu. Ele não quis jogá-la no lixo. Fez a última homenagem queimando-a na churrasqueira.

quarta-feira, 14 de agosto de 2013

Rua Augusta de Ronnie Cord


no vazio

De Paulo Leminski


debruçado num buraco
vendo o vazio
                     ir e vir

Socorro!

O dedão do pé direito pegou de jeito e vi estrelas. Uma topada. A sandália de dedo facilitou. Estava distraído com o olhar de uma vaca pintada num muro. Era muito real e me acalmou. Um pouco antes tinha brigado com o dono da venda por causa de um pão que ele não queria me dar. Eu disse que estava com fome. Estou com fome. Não como nada há dois dias porque saí de casa para comprar fósforos. Foi há cinco dias. Saí e fui pensando na vida. Dormi num beco pensando na vida. Acordei pensando na vida. Fiz xixi pensando na vida. Decidi que não queria mais voltar para aquela vida. Qual? Não sei. Esqueci. Me deu fome e pedi o pão. Não precisava manteiga. O pão de Jesus Cristo, o salvador. Ele tirou um porrete debaixo do balcão. Fui embora e vi a vaca. Mas na calçada brotou um bloco de concreto. Só vi depois. Entre as estrelas. A unha levantou como o capô de um carro. Não olhei embaixo. Olhei para cima. Estava em transe. De dor. Lembrei que no armário do banheiro de casa tinha uma caixa de primeiros socorros. Socorro!

terça-feira, 13 de agosto de 2013

Cauby Peixoto A Deusa da Minha Rua


impasse

De Paulo Leminski

Parece coisa de pedra
alguma pedra preciosa,
vidro capaz de treva,
névoa capaz de prosa.
Pela pele, é lírio,
aquela pura delícia.
Mas, por ela, a vida,
a mancha horrível, desliza.

Duas rodas na estrada

A luz verde nunca foi a dos semáforos. A luz verde sempre foi aquela do painel a acender toda vez que virava a chave da ignição. O botãozinho a ligar tudo para, em dois tempos, subir no lombo da interminável serpente cinza de asfalto. Com e sem destino. O corpo franzino recebendo o espírito dos Hells na estrada. Mas ele sozinho, furando vento, neblina, chuva, coxas amando o tanque azul, mão direita acelerando o coração para fugir das trevas da mesmice. Viu o lobo da estepe cantar um dia e se encantou. Derrubou muros, portões, todos de verdade, mas os principais estavam querendo cercar para sempre a alma. Foram-se, assim como milhares de quilômetros a descortinar paisagens da vida real, pulsantes, com cheiro e a cor que só os olhos do espírito conseguem fotografar e guardar para sempre no álbum das lembranças. Duas rodas. Vivas. A girar para que o piloto ligado respire e não pire.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

Mulheres de Martinho da Vila


perda de tempo

De Paulo Leminski

quatro dias sem te ver
e não mudaste nada

falta açúcar na limonada

me perdi de minha namorada

nadei nadei e não dei em nada

sempre o mesmo poeta de bosta
perdendo tempo com a humanidade

Vida marvada

Não havia um morcego na porta principal. Havia um urubu. Morto. Mas ele dividia o dentro e o fora. O fora era o horror apocalíptico do Coppola. O dentro era como se fosse um bairro de classe média alta americana, com ruas largas, limpas, tudo arborizado, sem muros, jardins imaculados, casas muito boas, famílias perfeitas como os dentes. Eu estava embaixo do urubu. Um pé pra dentro, outro para fora. Descobri então que o urubu estava se fingindo de morto, feito o papagaio da piada que queria comê-lo. Ele bateu asas e voou. Então, tudo se misturou. O céu e o inferno dos filmes que eu via no pulgueiro. Era a vida. Marvada. Como na canção do Boldrin.

domingo, 11 de agosto de 2013

sexta-feira, 9 de agosto de 2013

Jackson do Pandeiro


Colt 45

Mineirinho e Cara de Cavalo apareceram. Crivados de balas. Sangue no jornal da memória. Pistolas Colt 45 pipocando nas vielas do morro. O detetive Le Coq levou um balaço e o buraco abriu caminho para todos os esquadrões da morte. Ele tinha atração por isso. A transgressão total, o viver no limite, a viela da vida que sobe ao céu e desce ao inferno. Estava no tempo do hoje, mas vivendo em outro lugar e nos anos em que não sabia de nada. Pena Branca apareceu e relatou os fatos no linguajar característico. Malandramente encantador. Todos se foram. Ele ficou. Nem a Colt consguiu comprar para uma futura coleção. Sem balas. Porque a morte não manda recado.

pedra e mar

De Paulo Leminski

aqui

nesta pedra

alguém sentou
olhando o mar

o mar
não parou
pra ser olhado

foi mar
pra tudo quanto é lado

quinta-feira, 8 de agosto de 2013

planeta na dobra

De Paulo Leminski

existe um planeta
perdido numa dobra
do sistema solar

aí é fácil confundir
sorrir com chorar

difícil é distinguir
esse planeta de sonhar

Vibrações de Jacob do Bandolim


Acordes

Rabeca, banjo, viola caipira. A ponte do Sul do Mundo até os grotões do Império. Cego Aderaldo e o menino do filme Deliverance. Enfia-se no meio o bandolim do Jacob Bittencourt e está feito o arco-iris para se cavalgar, com os olhos fechados, por pétalas, poeira, espinhos, romances, rupturas, epopeias, combates, embates. Tudo sem machucar, porque cerdas nas cordas, flechas certeiras. Ouvir para viver. Tocar para sentir. Acordes. Acordo.

quarta-feira, 7 de agosto de 2013

eremita

De Paulo Leminski

   Esta vida de eremita
é, às vezes, bem vazia.
   Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

Pedro Luis e a Parede no Rap do Real


No consultório

O médico lhe relatou, de forma simples e direta, tudo o que poderia acontecer se o câncer fosse constatado. O paciente não mexeu um músculo do rosto como sinal de preocupação. Riu e contou uma piada. Disse que se ficasse impotente com tratamento ou cirurgia não haveria problema nenhum, pois não funcionava há muito tempo. O doutor também riu. Disse então que a maioria dos que ali se consultavam chegavam e saíam literalmente com o cu na mão, temendo pelo pior. O que estava ali na sua frente contou então que tinha passado uns 30 anos arriscando a vida sem saber. Não era o caso de agora, pois estava sendo informado de como poderia se tratar caso o bichinho tivesse dentro do seu corpo. Fez os exames. Não tinha câncer, mas a próstata estava esculhambada e inchada. O doutor perguntou se ele queria tomar um medicamento para desinchar e evitar as cinco mil idas ao banheiro para fazer xixi. O único problema era que a libido despencaria. Ele disse que não. Preferia se mijar todo.

terça-feira, 6 de agosto de 2013

varia

De Paulo Leminski

a vida varia
o que valia menos
passa a valer mais
quando desvaria

Abismo de Rosas de Dilermando Reis


Sim

Sim. Gravou no Panasonic de teclas e fita cassete. Não era um sim. Eram muitos. Durante os 60 minutos disse sim para a máquina. Tirou a fita. Colocou a fita. Aperte o play, sua cuca mandou. Sim. Deitou e ficou ouvindo e olhando para o teto no quarto pequeno. Tinha outra cama ao lado. No meio, uma pequena escrivaninha. No teto, uma foto de Hendrix flutuava como um verdadeiro anjo. Sim. Na parede acima da escrivaninha, onde um rádio do tempo do onça sempre tocava a voz de Ferreira Martins no Programa da Tarde, um desenho de Alan Voss que mostrava a cena de um minotauro cavalgando sexualmente uma freira. Sim. Sim. Sim. Sim. Aquilo era como uma sinfonia mais importante que toda obra de Beethoven. O problema era quando ele desligava a máquina. O não aparecia. E ele estava dentro.

segunda-feira, 5 de agosto de 2013

Orlando Silva Lábios que Beijei


dois loucos

De Paulo Leminski

dois loucos no bairro

um passa os dias
chutando postes para ver se acendem

o outro as noites
apagando palavras
contra um papel branco

todo bairro tem um louco
que o bairro trata bem
só falta mais um pouco
pra eu ser tratado também

Na São Clemente

Olhou para um lado da rua e viu o Cristo Redentor. Do outro, o Pão de Açúcar. Em Botafogo a Rua São Clemente ainda tem a Casa de Rui Barbosa para completar a paisagem. Mas ele ficou ali parado por outro motivo. Procurou duas portas de aço onde um dia havia um boteco de português. Achou. Tinha uma entrada lateral, para o andar de cima. Entrou. No passado, era uma pensão. Subiu as escadas. Tudo abandonado. Verificou todos os quartos à procura de um sinal deixado há meio século. Poeira, teias de aranha, alguns móveis estragados. Olhou todas paredes. Minuciosamente. Viu algo escrito. Na caligrafia que conhecia. Encontrei, diziam as letras. O que? Ele sabia. Foi por isso que nasceu. Era do pai para a mãe em união abençoada pelos braços abertos.

sexta-feira, 2 de agosto de 2013

Sumiço

Vou sumir. Aparecendo. No mar. Para Iemanjá. Lavarei minha alma. Bombearei o coração. Abrirei poros. Depois eu volto pro meu lugar.

quinta-feira, 1 de agosto de 2013

Bob Nelson


erra uma vez

De Paulo Leminski

   nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
   já cometo duas três
quatro cinco seis
    até esse erro aprender
que só o erro tem vez

O encontro

Saiu com Philip Marolwe e Sam Spade para tomar umas e muitas outras na mesma mesa com Raymond Chandler e Dashiell Hammet. Tinha os cabelos longos, barba desgrenhada, usava bolsa colorida e acabara de entrar numa faculdade vagabunda apenas para dizer que seria o primeiro diplomado da família. Os quatro nem te ligo porque estavam acostumados com coisas muito mais delirantes e escabrosas. Havia nele um ar de admiração para os quatro que o olhavam, bebiam e fumavam. Mas não de babação, porque ele sabia que aqueles ídolos eram durões, como os olhares que faziam e descreviam. No quinto rabo-de-galo, entremeados com gim tônica e lavados com cerveja, muita cerveja, ele saiu sem se despedir. Olhou a rua. Era uma ladeira. Encostou na parede e desceu a pirambeira se encostando, adernado, para não cair. O ponto do ônibus era bem distante. Chegou lá. Estava sozinho no meio da noite. Sentou no meio-fio enquanto aguardava o transporte. Os quatro companheiros continuavam com ele. Solidários. Nas páginas dos dois livros agarrados junto ao corpo.