segunda-feira, 29 de fevereiro de 2016

Fardos

O sonho dele não era ter dinheiro, mas ver dinheiro. Muito. Era pobre, claro, mas tinha o defeito de não dar a mínima para o tal, ao contrário da maioria que colocava o valor do papel fedido como prioritário. De alguma maneira ele juntou a imagem que tinha da infância, a de um monte de tijolos empilhados esperando a hora de entrar na construção do casebre da família, e o que queria presenciar. Um dia, já adulto, conheceu alguém que lidava com grandes quantias. Primeiro ele perguntou quanto cabia numa mochila das grandes. Em dólares. Quinhentos mil foi a resposta. Então contou seu desejo de ver fardos de notas amontoadas. Foi chamado numa madrugada pelo amigo. Entrou na mansão e, no sótão, que mais parecia um loft do tamanho de um campo de futebol, viu a montoeira encostada num canto. Ficou admirando de longe. Não pediu para saber quanto tinha ali - e se era limpo ou sujo. Foi para casa, acordou a mulher e disse que no dia seguinte iria começar a comprar tijolos para fazer o puxadinho dos sonhos. Aquele que aumentaria a cozinha e caberia o fogão de cinco bocas que ela tanto sonhava.

O SOL

                  Marcos Prado
                     
                       
                  o sol 
                  do outro lado 
                  da cidade parecia 
                  iluminar 
                  a china
                  simples: 
                  abri 
                  a cortina
                 

Wanderléia Foi Assim


quinta-feira, 25 de fevereiro de 2016

Derrubadas

A menina enlouqueceu de vez e ocupou a casa centenária que ficava sob a sombra de uma mangueira mais antiga. A mãe de criação não aguentava mais tanta loucura no meio daquele mundão longe de tudo. Doença da gota serena, dizia. Não adiantaram as rezas, a promessa, a viagem a Juazeiro do Norte, a beberagem em garrafadas, nada. O prato de comida era colocado no batente de uma janela. Ninguém via quando ela o recolhia para comer feijão de corda, farinha e um naco de carne seca. Foi depois de um tempo, entretanto, que os homens começaram a rondar a casa. Sempre à noite. E entraram. E gemidos se espalharam no ar. E a notícia também. Mais homens vieram. Então a mãe fez o que achou certo: derrubou a casa e depois cortou a árvore. A menina sumiu. Um dia foi encontrada ao lado do açude de água salobra. No rosto, inerte, um sorriso doido.

Não gosto

De Dalton Trevisan

Não gosto de você, amor. Mas não fique triste: não gosto de ninguém. Nem de minha mãe eu gosto.

Dircinha Batista


quarta-feira, 24 de fevereiro de 2016

janela fechada

De Sérgio Rubens Sossélla

a noite
essa janela fechada
*
os sinos
só dizem sim
*
as pinturas
os retratos nos olham
com saudade
*
no escuro
os livro são outros

O som da floresta


Madeira

O rio Madeira é marrom. O rio Madeira atrai pelo nome. Fui lá. Queria embarcar em Porto Velho e chegar a Manaus. Minha bunda ficou quadrada antes, porque entrei num toco-duro na rodoviária de São Paulo e rasguei um pedaço do Brasil na estrada. Tinha lido num guia que havia barco todo dia para o que sonhava. Informação errada. Sem dinheiro, procurei um padre e dormi num prédio antigo que tinha sido seminário. Coisa de filme. No dia seguinte, barco, mas só até um vilarejo perdido na mata. Um sargento ofereceu a delegacia do lugar para acomodação. Na rede de uma cela vazia eu apaguei depois de ouvir o som da floresta. Havia uma capela e o povo mais bonito que já vi, principalmente por causa da cor - um marrom que realçava mais no contraste com a mata e por causa dos dentes, brancos de doer. Tomei banho no Madeira. Vi um barco ancorado e a imagem dele de dentro da água era o resumo de tudo. Simples e absurdo. Fiquei ali. Talvez para sempre, mesmo navegando pelo resto da vida.

terça-feira, 23 de fevereiro de 2016

cigarra

De Dalton Trevisan

a cigarra anuncia
o incêndio de uma rosa
vermelhíssima

Belchior, Fagner Na Hora do Almoço


Pesadelo

Acordou assustado com o pesadelo. Tinha sido sequestrado e obrigado a engolir uma fortuna em notas de cem dólares - uma por uma. Quem o obrigou ria com a cara mais debochada do mundo. Para cada nota mastigada e ingerida, o algoz queimava outra, só para que a vítima tivesse certeza do quanto ele dava valor a dinheiro. Com a barriga estufada, não sentia dor, apenas lamentava o fato de ver o desperdício daquela fortuna. Quando foi solto, saiu correndo para o banheiro. Foi aí que o despertador tocou, cedinho. A suíte gigantesca do apartamento o aliviou. Estava sozinho, porque não gostava de compartilhar nada. Levantou e sentiu o pijama de seda grudado no corpo. No banheiro, se despiu, abriu o registro da ducha, entrou e, quando estava regulando a temperatura da água, sentiu a dor forte. Caiu. Horas mais tarde a empregada o encontrou no box. Afogado. O que intrigou a polícia foi um pedaço de cédula encontrada nos excrementos.

segunda-feira, 22 de fevereiro de 2016

Dente de ouro

Enfiaram uma faca na minha boca. Arrancaram um dente. Tudo a sangue frio. Não fiz nada. Não sou culpado. Mas é assim mesmo na vida. Um dia você sorri e no outro dia tem que que se trancar em casa para não mostrar o buraco dentro do buraco da boca. Lembrei da história do amigo que, num hotel nos Estados Unidos, foi escovar os dentes e um deles caiu e sumiu no encanamento da pia do banheiro. Ele desmontou tudo na esperança de achar o tal. Achou. E colou. Mas o estrago no banheiro resultou numa inundação no apartamento de baixo. Parece história do Hunter Thompson chapado. Fui ao dentista. Ele primeiro falou do preço do dente postiço. Pedi um de ouro. Ele disse que não se faz mais isso. Dobrei o valor. Depois de colocado, vou pegar quem me enfiou a outra faca. 

cadente

De Paulo Leminski


a estrela cadente 
me caiu ainda quente 
na palma da mão 

Wilson Simonal Meu Limão meu Limoeiro


quinta-feira, 18 de fevereiro de 2016

Milton Nascimento Travessia


Céu e vermes

Há sangue no céu. E manchas negras e cinzas. Raios cortam tudo como lâminas dos deuses. O que aconteceria se este planetinha habitado por vermes recebesse na cara toda essa, assim, de repente? Sufocados, talvez conseguíssemos sair deste estado de quase putrefação consentida, dessa enganação que agora tem o brilho tecnológico, irmão da imagem refletida nos espelhinhos que tanto encantou os índios quando os portugueses cá chegaram. Depois, eles, os silvícolas, como ensinaram nos livros, se foderam de véu e grinalda. O que acontecerá com a geração que não tira a cara da telinha do celular para saber das futilidades da hora? O sangue foi embora, ficou tudo cinza. Para que todos saibam que o purgatório é aqui mesmo. Ainda bem que amanhã vem o sol. Se pelo menos ele queimasse os canalhas...

quarta-feira, 17 de fevereiro de 2016

Dois cineastas

Dois meninos querendo cinema é um acontecimento. Encontrá-los por acaso vale um filme. Cineastas já são. Falta a câmera na mão. Falei a um deles, de 13 anos, sobre os fotógrafos que trabalham ou trabalharam com os grandes diretores. Pedi para pesquisar e olhar. Ao outro, praticamente com a mesma idade, contei como me perdi para o bem na vida ao ver, já adulto, Teorema, do Pasolini. Terence Stamp me tirou do gueto da pobreza cultural e nunca mais parei de olhar o mundo com outros filtros. Dois meninos num mundo tão imbecilizado pela internet... Tudo está aí, para ver e fazer. Orson Welles entrou numa caixa com os filmes shakespeareanos, assim como Samuel Fuller saiu com a violência poderosa de suas imagens e histórias. Preto e Branco. Preto no Branco. Os meninos têm muito o que beber, mas descobriram a fonte. E lá estava um velho ainda não saciado. Porque é assim mesmo.

no muro

De Dalton Trevisan

no muro o caracol
se derrete nos rabiscos
da assinatura prateada

Os Incríveis Era um Garoto que como Eu amava os Beatles e os Rolling Stones


terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

A voz

Minha voz gravada não é a minha - quando a ouço. Nem o que vejo no espelho sou eu. Hoje tive de fugir da alguém que queria porque queria que eu escutasse o que tinha numa fita cassete. Lembrei de quando a gravação aconteceu, há muito tempo. Fiquei tão triste que me refugiei embaixo da cama no apartamento onde morava sozinho. Que coisa horrível! Como as pessoas ainda conversavam  comigo sem demonstrar desprezo? Será que disfarçavam para rir depois? Voz tinha o Heron Domingues, tem o Ferreira Martins... Mas a minha, anasalada, arrastada, molenga... E o rosto? Parece um pandeiro cheio de manchas. Tem também a barriga que toma conta do tronco, onde estão espetados os braços e as pernas finas. Outro dia, porém, me convidaram para gravar um comercial radiofônico. A grana era alta. Fui. Explicaram que era uma experiência para manter guardas noturnos e sentinelas acordados durante a madrugada. Não gostei disso. Minha voz tem outra destinação. Talvez para curar porre ou ressaca brava. Mesmo assim, gravei. Para guardar. Quero que tudo seja ouvido no meu velório. Para aumentar o repertório tradicional de piadas. 

vida curta

De Dalton Trevisan

Para escrever o menor dos contos a vida inteira é curta.

Criolo Não Existe Amor em São Paulo


segunda-feira, 15 de fevereiro de 2016

Erros

De Paulo Leminski

Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez.

Elomar O Violêro


Marcas

Fiz a foto sem a câmera, como ensinou mestre Cartier Bresson. Coloquei as minhas mãos sobre as dela, que estavam entrelaçadas. As marcas eram idênticas - de vitiligo, principalmente nos dedos, brancos, como se estivessem descascados. Depois olhei o vestido preto e, acima da gola, o rosto tranquilo, da missão cumprida. Grande costureira, foi ela mesmo quem fez recentemente, quando sentiu que a hora da despedida final estava chegando. Também disse a alguém próximo que sentia muito não ter podido fazer tudo, que ainda faltavam coisas. Ah! Esse buraco na alma só existe aos que realizaram demais - e assim foi com ela. Então pensei que, além de tudo que me deu, estava ali a prova, que nunca tinha visto antes, mas que agora, no último instante, apareceu, como um legado passado para que nunca pare, nunca desista, ainda mais porque as uso assim, datilografando, como ela as usava com agulha e linha, por exemplo. Por isso, fotografei e guardei aqui comigo. Então, o caixão foi fechado e colocado dentro da terra. Para sempre.

quinta-feira, 11 de fevereiro de 2016

Se

De Paulo Leminski

se 
nem 
for 
terra 

se 
trans 
for 
mar 

Esponja

Tem uma esponja tirando minhas forças, empalidecendo minhas cores, querendo sequestrar minha alma. Não sei onde está, talvez aqui dentro, parecida com aquela que incomodava Fernando Pessoa, mas ele sabia descrever e nunca usou esponja para descrever o desassossego. Já estive nas catacumbas, embaixo de cobertor sujo, com medo de olhar por qualquer fresta. Agora não é assim, mesmo porque consigo pensar um pouco, andar, falar, até me entusiasmar em períodos curtos. No mais, olha ela me drenando! O melhor de tudo é que sei que vai sumir, que é preciso ter paciência, mas a danada absorveu isso também. Me mandaram ao supermercado. Fui, obediente. Ainda bem que não pediram o produto, mas eu dei de cara com uma pilha enorme, em duas cores. Tive vontade de ir a outros corredores para trazer os infalíveis álcool e fósforo. Seria uma boa fogueira, mas acho que iria preso como piromaníaco - e a minha esponja particular continuaria firme, me definhando dentro da cela. Agora senti no meu peito a maldita. Vou ficar quietinho. Quem sabe ela se dê conta de que já tirou tudo o que eu tinha e me abandone?

Zeca Pagodinho Maneiras


quarta-feira, 10 de fevereiro de 2016

No fundo da caverna

No fundo da caverna havia uma poça de água. Era luminosa, apesar da escuridão daquele canto. Eu ouvia o barulho do mar lá fora - e não sabia o quanto tinha andado até chegar ali. O paredão que ia até o teto era muito alto. Aquilo parecia uma catedral. Fiz das duas mãos uma concha e peguei a luz. Não vi mais nada. Imediatamente estava em outro lugar, como num livro do Stephen King onde uma escada dentro do trailer levava o curioso para uma outra dimensão. Vi um espelho. Um, não, vários. Minha imagem era em preto e branco, bem contrastada, como num filme fotografado pelos mestres que foram para Hollywood antes de meados do século passado. Os olhos permaneciam coloridos, verdes - e havia uma lágrima imobilizada abaixo do direito. Ela brilhava. Não tive medo. Uma paz tomou conta de tudo. Não tive vontade de voltar, nem de explorar o ambiente, mas toquei no espelho mais próximo. Minha mão atravessou. Aí segui em frente. Estava de novo na caverna, só que saindo e sentindo a brisa que vinha do oceano. Ele era verde. Como meus olhos. Chorei de emoção. Uma lágrima que saiu do olho esquerdo entrou pelo canto da boca. Me senti alimentado.

no apocalipse

De Sérgio Rubens Sossélla

a voz que disse
no princípio era o verbo
transferiu-se do gênesis
e me espera no apocalipse
(minhas mãos vazias que o digam)

Arnaldo Antunes, Titãs O Pulso


terça-feira, 9 de fevereiro de 2016

na mão

De Paulo Leminski


a estrela cadente
me caiu ainda quente
na palma da mão

Camisa de Vênus Eu não Matei Joana D'Arc


O angu e a água

Duas grandes frustrações que me deixaram em crise profunda, dessas de marcar consulta extra com a equipe de consertadores de cabeça. Uma foi recente, depois de ser fritado na calçada da Praça Mauá vendo aquele Museu do Amanhã que a Rede Globo vendeu colocando em toda programação um pano que flutuava por causa de um ventinho embaixo. O envólucro é bonito, mas vi um peixei engolindo gente pela frente e expelindo por trás, em forma de povo, direto para a Ilha Fiscal. Fui ali por causa do Angu do Gomes, que tem mais de meio século de tradição, desde o tempo que o Gomes o inventou e servia no tabuleiro para quem não tinha muito dinheiro para comer no Centro Velho quando a cidade era a capital federal. Não experimentei o tal angu porque angu maior estava o trânsito e tinha compromisso do outro lado do túnel, aquele que leva àquela parte onde os ricos não saem, apesar do noticiário diário de tiroteio, mortes, etc - uma sacada ótima da rede para que forasteiros não se entusiasmem em atrapalhar a vida deles, aquela, do esssscorrega pra dentro. Passei vários dias sem sair do quarto, mesmo porque lá fora o inferno não tinha controle remoto para ligar o ar condicionado. Aí lembrei da água e do bar só com 500 tipos deste produto que existe em Paris e que não me levaram quando passei por lá. Como só falo le pescoço, como Didi Mocó, não arrisquei ir sozinho. Mas o angu e o boteco estão lá, me esperando. O psiquiatra torce para mais uma frustração. Assim fatura mais uns trocos.

segunda-feira, 8 de fevereiro de 2016

homenagem geral

De Roberto Prado



brindo

saúdo

louvo

aleluia

honra e glória

a todos os que ave

e dão vida e graça

a este meu

salve salve


mau hálito

a inveja é uma merda ou o mau hálito da alma como disse alguém que disse e entendia disso porque é assim mesmo por isso espalho e fico olhando a cara de quem ouve e às vezes noto que a pessoa sente o próprio cheiro que não é bom porque olha assim e gostaria de ter essa ideia ou a grana daquele bacana da cobertura do prédio que chamam de a pilha do gato ou então do apresentador que ganha milhão ou o jogador de futebol por causa do carro que é um monte de lata então esquece ou tem medo de olhar o próprio rabo porque sente dor por morar na vila no barraco ou então no condomínio de classe mérdia e aí olha para o vizinho que tem muié bonita e a dele se lorgou no mar de massas bombons e não fazer nada e embagulhou que vida hein e o que havia de mais bonito nunca mais porque ele nunca olhou só para os outros e assim caminha essa humanidade que exacerba tudo isso com o segundo e meio dos famosos olha lá o bigbrother que mostra a idiotice igual na fazenda do outro canal e o do mau hálito também quer aparecer para não sabe o que quem sabe ter dinheiro e fama e trocar de mulher e de homem e de casa e de carro e cadê meus filhos um dia pode pensar e não tem mais jeito porque são iguais salve-se quem puder.

Jorge Goulart A Cabeleira do Zezé

quinta-feira, 4 de fevereiro de 2016

dito

De  Paulo Leminski

tudo dito,
nada feito,
fito e deito

Emilinha Borba Tomara que Chova


Na ponte

Saí no "Nóis Sofre Mas Nóis Goza" logo no primeiro dia. O sol era de derreter os miolos. A largada foi dada na frente de um boteco onde todo mundo esquentou as turbinas. Meio-dia. A banda, onde os metais se destacavam, atacou de frevo e fui atacado por alguma coisa inexplicável que me fez começar a pular - e só parar quatro dias depois. Incorporei Ariano Suassuna, Siba e, principalmente, Chico Science com toda a Nação Zumbi e a força do mangue. Ao passar na ponte entre Recife e Olinda, vi um Galaxie sem portas, sem teto, lotado de gente como uma carruagem do Apocalipse. Pensei que estavam indo, como eu, para o inferno. Errei. Era o céu daquele carnaval onde o povo apenas se diverte e coloca todos os bichos para fora e para longe - em nome da alegria pura e simples. Faz tempo. Quase quatro décadas. A idade de uma das filhas, gerada lá - por isso poeta e princesa da cor negra.

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2016

sono e sonho

De Paulo Leminski

A vocês, eu deixo o sono. O sonho, não! Este eu mesmo carrego!

Zé Rodrix Soy Latino Americano


Com Bogart e Bacall

Estava em Assunção, mas imaginava Havana do tempo de Fulgêncio, com cassinos e infestada de americanos e mafiosos. Isso porque ao ver o hotel antigo, estilo casarão, se encantou, entrou com o carro e se hospedou. Na bagagem levava o uísque do Collor, Logan, a garrafa pela metade, tomada no bico, calor abafado de 35 graus. Um banho gelado e foi ao restaurante comer algo para tentar rebater o porre. O teto era um afresco só. Pensou em Michelangelo na Capela Sistina, mas isso depois de entornar a primeira garrafa de vinho. Depois, quem segurava o bicho? Foi incomodar uma mesa de gringos sem falar uma palavra em inglês. Voltou para o quarto e o telefone era do tempo do onça. Pediu ligação para o Brasil e o número que passou era da antiga casa. Chorou ao falar com um dos filhos. Desmaiou sentado numa cadeira antiga. Acordou com o sol iluminando o rosto. Olhou em volta e decidiu trocar de hotel. Foi para um moderno. Aquele outro era como um filme visto anos antes, com Bogart e Bacall. Agora ele era ninguém - e precisava trabalhar para justificar a viagem.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

monstros

De Sérgio Rubens Sossélla

os monstros aterradores saíram dos sonhos
porque também não agüentavam o esquecimento

Veneno

O envelope com veneno de rato era muito atraente. Cores fortes. Vermelho e azul. O ratinho que viram na cozinha se deliciou com as porções que colocaram para ele. Talvez o produto estivesse vencido, não se sabe. Toda noite uma quantidade era colocada num canto perto do móvel da pia da cozinha e, no dia seguinte, nada do veneno e muito menos do rato. Pararam de alimentar o bicho e e colocaram o pacotinho no parapeito da janela da garagem. Olhei aquilo e resolvi fazer um teste. Primeiro misturei no farelo colocado para os passarinhos. Fiquei olhando canários da terra e rolinhas se fartando - e nada deles caírem durinhos e de perninhas esticadas para cima. Depois fiz isso na ração do cachorro. Ele comeu tudo, lambeu os beiços e não apareceu imóvel com os dentes arreganhados pra fora. Tinha alguma coisa errada com aquilo. Resolvei colocar na vitamina matinal. Tomei sozinho um copo grande com o que restava do tal. Fui para cama esperar o resultado. Nada. Para não dizer que continuou tudo normal, juro que vi na tela da tv um político dizer que era, sim, um canalha e ladrão do dinheiro do povo. Mas não era delírio, mesmo porque não aconteceu no Brasil. O vídeo era antigo. Depois do que falou, ele tirou um revólver Colt Magnum 45 de um saco de papel pardo, enfiou o cano na boca e arrancou o tampo da cabeça com o balaço. Liguei para o fabricante e reclamei do veneno. Ficou acertado que mandariam uma caixa com vário envelopes. Vou aumentar a dose para todos.

Secos e Molhados Flores Astrais


segunda-feira, 1 de fevereiro de 2016

Dois andares e uma escada

A distância entre o andar de cima e o de baixo era de milhões de anos luz. Foi num lugar onde entrei para trabalhar e, macaco velho, tirava sarro de quem poderia ser meu patrão - porque ele só pensava em dinheiro. Boa praça. Bem embaixo da sala dele ficava outra, onde a turma que produzia o material para o produto da sua negociação ralava todo dia. Ali estava um guri com pouca noção do que se tratava tudo aquilo; Universitário, morador do subúrbio, vários irmãos de pais diferentes. Enquanto o de cima andava de jatinho, ele se apertava em dois ônibus para ir e voltar de casa para aquele templo de consumo. Não sabia direito o que queria da vida. O outro, de cima, sabia muito bem. E tinha todos os contatos para tal, além  de perseverança. O combustível do de baixo ainda não tinha aparecido, ou seja, a chama, o fogo da paixão pela profissão. Uma escada separava o patrão do talvez futuro empregado. O de baixo nunca subia os degraus. O de cima subia, descia, passava sem prestar muita atenção no garoto. Tímido, este olhava o poderoso desfilando no saguão de pé direito altíssimo e, depois que saía do prédio, se deparava com uma igreja pintada toda de azul. Fazia o sinal da cruz. Ninguém nunca soube para que. Nem ele.

Parada cardíaca

De Paulo Leminski


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Vanusa Manhãs de Setembro