quinta-feira, 29 de maio de 2014

Psicológica

O texto mais lido do Luis Fernando Veríssimo, que não é do Luis Fernando Veríssimo, é o da caganeira. O grande escritor jamais escreveria isso, mas a merda se espalhou. Muita gente riu - e muita gente chorou  porque passou por situação semelhante. Como aquele menino que, entusiasmado, foi conhecer uma chácara de ricos onde trabalhava como caseiro o irmão do vizinho. Viajou de trem na ida. Voltou de ônibus. Viveu aventura na ida por problema simples: perderam a conexão e os dois acabaram pegando carona no meio da madrugada num trem de carga. No retorno, o horror. Entrou, sentou na poltrona lá no fundo e assim que o motorista embicou na estrada, atacou-lhe aquela dor de barriga que o Veríssimo falso descreveu. Não havia banheiro no veículo. O menino era tímido demais para pedir que o motorista parasse e ele fosse... no mato ou em qualquer boteco de beira de estrada. Não falou nada para o amigo. Suou frio, rezou para que a viagem fosse curta. Com aquela idade, pra que se preocupar com distância? Conseguiu segurar tudo até que o ônibus encostou na plataforma da grande rodoviária. Saiu em disparada sem saber onde ficava o banheiro. Lhe disseram que era no andar de cima. Subiu correndo e, ao chegar na porta... havia uma roleta. Descobriu que era preciso pagar para cagar. Ele não tinha um puto de tostão no bolso. Ofereceu os óculos como garantia. O senhor que tomava conta do banheiro percebeu que o garoto estava apurado pois estava pálido e suava frio. Deixou ele entrar. Uma privada estava livre. Ele baixou as calças - e nada. Imaginou que iria entupir a fossa em várias etapas, mas... nada. A dor foi passando enquanto alguns flatos, puns, peidos, foram saindo timidamente. Ele ergueu as calças, e já ia saindo e, aí, aconteceu. Quando acordou, estava sentado no trono e várias pessoas o olhavam.  O menino criou coragem e perguntou o que se passara desde que perdera os sentidos. Ninguém respondeu. Ele levantou e percebeu que estava com a cueca e as calça no lugar. Examinou e viu que não tinha se sujado. Saiu e encontrou o companheiro de viagem, que, preocupado com o sumiço, perguntou o que tinha acontecido. Ele respondeu: "Caganeira psicológica".

é muito

De Roberto Prado

Tempo ruim não foi
e o agora não quer ir.

Tudo precisa de dois.
Isso, no momento,
é muita gente.
Fica pra depois

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Fardas e fardados

Ela sempre teve atração por fardas. Desde criança. Olhava os escoteiros como se estes tivessem vencido uma Guerra Mundial. Depois foram os guarda-mirins e, mais tarde, na adolescência, os soldados do quartel do Tiro de Guerra que ficava próximo à sua casa. Não, não assistia ao desfile de 7 de Setembro na cidade onde morava porque tinha medo de ter um treco, um ataque do coração, trombose cerebral ou algo assim. Nunca namorou homem algum - com farda ou paisano. Aquilo era um mistério na família, mas ninguém questionava. Estudou, fez curso de datilografia, trabalhou um tempo como secretária de um escritório de advocacia, mas um dia resolveu largar tudo e ficou em casa curtindo um gato, um cachorro, um papagaio e as blusinhas de crochê que fazia para doar a entidades beneficentes. Envelheceu. Até que um dia, quando ainda estava lúcida, ouviu alguém perguntar sobre a paixão antiga. Ela começou a chorar e, quando se refez, disse que era a maior frustração da vida dela. Qual? Queria ser alfaiate só de uniformes militares.

Elis Regina Atrás da Porta


terça-feira, 27 de maio de 2014

A procura

Não aguentou e resolveu procurar. Nem que, para isso, tivesse de fazer o pacto de Robert Johnson na encruzilhada. Desde "batatinha quando nasce" se apaixonou por poesia e, ao longo da vida, percorreu milhares de quilômetros de rimas rimadas e não rimadas dos grandes, dos pequenos, dos médios, dos nem tanto poetas. Guardava tudo e, quando achava que estava passando por algum momento similar ao que imaginava ter lido em algumas linhas, ou entrelinhas, procurava e sempre dizia: "Não é que o filho da puta tinha razão?" Claro que nas dores, nas alegrias, nos momentos nada, nos tormentos, tentou escrever, mas nunca conseguia colocar na folha de papel ou na tela do computador uma única sílaba, quanto mais uma linha ou um verso inteiro. Por isso resolveu procurar de onde os poetas conseguiam tirar ou receber aquilo que passavam adiante e que faziam algum sentido, mesmo sem sentido, aos leitores. Acabou sendo preso com olhar no nada. Segurava um coração sangrando de um corpo jamais encontrado.

portão aberto

De Sérgio Rubens Sossélla

abri o portão da fazenda
as estrelas passaram
a noite permaneceu


Alvarenga e Ranchinho e o Drama da Angélica


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Próstata

Descobriu muito tempo depois que histórias sobre bêbados eram engraçadas somente muito tempo depois e se contadas por quem as viveu e conseguiu sobreviver.Aquele senhor alto e sábio, por exemplo, dizia que, mesmo milionário, nunca tinha viajado para o exterior porque sabia que não encontraria um bar como aquele em que entornava na esquina perto de casa. A história mais louca era das viagens que fazia com a mulher no carrão, sempre importado e do ano. O trajeto poderia ser o mais curto possível, mas o motor invariavelmente pifava de tempos em tempos. Ele descia, abria o capô e, sem que a santa companheira visse, tirava um canudo do bolso para sugar o líquido que tinha colocado no lugar destinado à água. Alma de vodka, seguia em frente até dar vontade de novo. Lembrou disso enquanto tomava mais um copo de água para fazer exame na bexiga. Então riu - e quase fez xixi na calça, porque seu problema atual era a próstat,  inchada além da conta.

é muito

De Roberto Prado


Tempo ruim não foi
e o agora não quer ir.

Tudo precisa de dois.
Isso, no momento,
é muita gente.
Fica pra depois

Itamar Assumpção Prezadíssimos Ouvintes


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Na rosca

 "Preciso achar um macho para fazer uma rosca". Ele passava distraído, se desviando dos cocôs de cachorros na calçada, quando ouviu a frase que saía do fundo de uma oficina. Ficou tão atrapalhado com aquilo que pisou num monte. Teve de raspar o solado do tênis numa guia e depois esfregar o pisante na grama mais próxima. Quem viu a cena achou que ele era um gato tentando cobrir o que tinha feito. Macho e rosca. O som das duas palavras era forte, mas ele limou o macho e ficou com a rosca porque ela entrava mais de leve, apesar do ruído. Na lembrança mastigou uma, a da avó querida lá de Minas Gerais. Também machucou o dedo com a chave de fenda ao tentar encaixar o parafuso num lugar em que só os profissionais mantêm a paciência para arrochar depois. Rosca de enroscar, pensou. E aí pisou de novo. Que bosta!

cuidado, período fértil

De Roberto Prado

Você lança qualquer coisa
sem saber que qualquer coisa pega.

Nem precisa ser semente
e já uma raiz me agarra
ergue-se um tronco
uma folha me escreve.

Não chego a dizer:
- coma, já que matou.
Tampouco digo:
- toma que o filho é teu.

Mas já que nasceu
sinta este perfume
coisa de Deus
que você plantou.

Vicente Celestino e a Porta Aberta


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Chama e lama

Estava lá. Era o que importava. O primeiro festival de rock da vida. Fugiu de casa com a mochila velha nas costas e sem um puto no bolso. De carona em carona chegou à fazenda um dia antes de o som das guitarras começarem a cortar aquele céu, aquela mata e o coração dos ouvintes. Havia muita segurança protegendo a propriedade. Ele esperou a noite cair. Uma chuva despencou junto com a escuridão. Lama. Lembrou de Woodstock, a inspiração para toda uma geração. Procurou um rio. Achou um córrego, entrou nele, passou por debaixo de uma cerca de arame farpado. Rasgou a camiseta e um corte fez o sangue escorrer. Não ligou. Estava ligado. Foi se ajeitando bem em frente ao palco. Estava cansado, molhado e sujo, mas feliz. No dia seguinte, mais chuva e aquele mundo de gente de todos os cantos. Alegres, olhos brilhantes ou injetados. Na paz. Até que o primeiro acorde explodiu. Ele fechou os olhos, levantou e começou a dançar como um alucinado. Na coreografia dos passos, que só parariam na madrugada do dia seguinte, uma frase entrava entre as berradas das letras das músicas. Criação própria: "Rock na lama também sai chama". A dele era a da vida que decolaria a partir dali.

agora depois

De Roberto Prado


o poeta
quando morre
pra onde vai?

irá para a lua
onde não há ninguém
para olhá-lo?

ou para a China
chorar cantando
entre seus iguais?

sumir ou sofrer?
ninguém ou bilhões?
melhor não morrer

Renato e seus Blue Caps


terça-feira, 20 de maio de 2014

No penhasco

Disseram que ela estava lelé da cuca, fora da casinha, maluca, louca de pedra. Ele pegou um avião e se mandou para o lugar que ela foi muitos anos anos antes. Até chegar lá viajou mais um tanto de ônibus, barco e mula. A casa ficava no alto de um penhasco e só tinha uma porta. Ele bateu. Ela abriu. Os olhos continuavam luminosos, mar azul no rosto agora enrugado. Ele olhou lá no fundo e ela abriu um sorriso. Abraçou-o e disse que naquela manhã tinha pensado nele quando comeu uma esperança que apareceu no canto da mesa. Ele entrou. Só havia a mesa ali. Ela contou que também dormia em cima dela desde que teve uma visão. Ele perguntou qual. Um anjo entrou pela porta e abençoou-a dizendo que era enviado dos céus. Ele fez de conta que acreditou. Ela contou que o anjo tinha deixado uma espada para que ninguém duvidasse dela. Ele pediu para ver. Ela mostrou. Ele então fechou a porta e nunca mais saiu do lado da mãe.

na captura

De Roberto Prado

falei
até a letra
ficar grande

fiz de tudo
até figura

já me entende agora
ou ainda falta
mulher nua?

Saudosa Maloca dos Demonios da Garoa


segunda-feira, 19 de maio de 2014

Mais uma dose... de lactose

Foi a empregada quem lhe deu a triste notícia. O neto dela não dormia mais, a barriga crescia como a de menino nordestino que come barro com calango - e a criança não parava de peidar. Foram ao médico. Ele matou a charada na hora: lactose. A receita: um mês sem tomar leite e, principalmente, sem comer queijo. Essa era a perdição do guri. Se pudesse, comeria uma barra inteira de queijo prato de uma só vez. Sete dias depois, cadê os peidos, cadê o barrigão? Desapareceram. Ele ouviu a história e olhou a pança. Também era viciado no produto. Leite? Só duas gotas no balde de café da tarde. Teria de fazer a experiência, afinal, mesmo que diminuísse de peso a custa de exercícios, nada de o bucho murchar. Também peidava feito doido, mas conseguia se controlar em locais públicos. Resolveu fazer a saideira. Comprou todos os tipos possíveis. Começou a comer na sexta à noite e só parou no domingo. Depois, não saiu mais dali. Os vizinhos desconfiaram. Chamaram a polícia. Foi encontrado em estado de decomposição, caído no meio daquela montanha de produtos de origem francesa. Os ratos de assustaram com os intrusos. Tiveram de chispar do banquete.

descascando cebola

De Roberto Prado

dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minhalma doutro mundo

Wilson Simonal Meu limão, Meu limoeiro


quinta-feira, 15 de maio de 2014

O último pastelão

De Roberto Prado

você perdeu meu antigo prazer simples
a diversão tola dos troços aéreos que falava
de ver a graça pura das velhas boas trapalhadas
de sentar pra rir daqueles meus bobos tropeços
pensando bem/ninguém perdeu nada

Do lado de cá estarei lá

Tem certeza que ouviu a voz no meio da madrugada. Acendeu o candeeiro e a primeira coisa que viu foi a Winchester 44, cano sextavado, encostada ao lado da cama daquele barraco no meio do nada. "Do lado de cá estarei lá". Enrolou o fumo de corda na paia, como dizia, tragou e começou a pensar naquelas palavras. Muito sábias, concordou consigo mesmo. Ele mesmo, ali, naquele chão pisado só por Antonio das Mortes num passado que ficou apenas na lembrança dos moradores mais distantes. Ele mesmo era temido em toda a região - e não via motivos para tanto. Tá certo que não deixava ninguém chegar perto da sua choupana e quem fizesse isso teria um dos joelhos estraçalhados por um tiro certeiro. Não lembra quantas vezes isso tinha acontecido, mas com pena mesmo ele ficava do susto que tomavam o bode e as cabras que criava ali ao lado, no cercado de terra batida. Concordou então que, de fato, do lado de cá com certeza estaria do lado de lá, no medo do que pensavam nele. Então apagou o cigarro num copo com água e o candeeiro com um soprão - e foi dormir sossegado.

Erasmo Carlos Sentado à Beira do Caminho


quarta-feira, 14 de maio de 2014

radical livre

De Roberto Prado

morri de vivo
porque menos mal assim

mas antes de luto
meu estúpido estudo
sobre o valor nutritivo
da raiz do capim


Profissional

Primeiro queria ser motorista da Viação Cometa por causa do boné que os motoristas usavam quando ele, criança, viajava no Flecha Azul. Depois sonhou ser astronauta porque queria saber como eles faziam cocô e xixi dentro daquelas roupas e daquelas cápsulas espaciais do tempo do Yuri Gagarin. Aí começou a perceber que um salto como esse seria alto demais partindo do subúrbio da grande cidades. Fez testes para entrar em bancos, mas não foi aproado porque era um cata-milho juramentado na datilografia. O pai olhava torto e o obrigou tirar a carteira de trabalho ainda na adolescência. Foi vender fundos de investimento, mas era tão tímido que engasgava na hora da enganação. Polícia Federal e Polícia Militar foram as tentativas seguintes. Reprovado por inanição. Aí fez um vestibular para o curso de letras numa faculdade caça-níquel. Passou, mas o pai teve de pagar as mensalidades achando que poderia ser reembolsado no futuro. O canudo ele deu de presente para a mãe antes de meter o pé na estrada com uma mochila nas costas. Hoje é borracheiro ao lado de um posto de gasolina na entrada de Santarém, no Pará. Está feliz porque acorda e vê da sua janela o rio Amazonas.

Palhaço Nelson Cavaquinho


terça-feira, 13 de maio de 2014

mentira

De Marcos Prado

a mentira é a melhor é a melhor amiga das artes
nela, gelatinosa, as glosas seculares
minúcias de paisagens inexistentes
um coração onde cabe um milhão diferentes

dondoca de agora, amanhã de coturno
segue sempre os passos de um antigo perjuro
a arte imita a arte que imita tudo
e é profunda, é verdade, bem no fundo

mas somos piores que os pintores de florença
ridículos comparados aos poetas de provença
michelângelo cagaria em cima de nossas estátuas
bethoven se limparia com as nossas pautas

que é a nossa dança diante de um delírio índio?
que é um soco nosso perto de um clay vindo?
por que, se finda é a arte, continuar mentindo?
repetir o que se repetiu de novo se repetindo?

Ouro Verde F.C.

A Copa do Mundo era disputada todo domingo no campinho descaído do terreno baldio da vila, perto da encruzilhada. O adversário era sempre o mesmo, a turma da rua Central, que ficava a duas quadras dali. O horário do jogo também não mudava, para aproveitar o fim da missa das 10h na igreja da praça. O povo que voltava livre dos pecados parava atrás do gol para assistir a disputa. O time tinha nome e técnico. Era o Ouro Verde Futebol Clube, dirigido pelo Foguinho, um ruivo que não podia fazer parte do escrete porque era perna-de-pau e mais velho que todos os jogadores. O vestiário ficava nos fundos da casa do Lupe, ao lado do campo de terra batida. Ele era baixinho e canhoteiro, ou seja, nosso craque. A gente se trocava ali, num barracão onde o pai dele guardava ferramentas e outras tranqueiras. Um dia resolveram construir uma casa no nosso templo de jogo. O campo se foi e não dava para fazer outro- os terrenos que sobraram eram pequenos demais para para traçar as quatro linhas. Tentou-se passar para o futebol de salão, mas não deu certo porque a turma da Central não quis mudar para este esporte. Ele lembrou disso tudo quando voltou lá quarenta anos depois. Jogava de lateral direito, era um jogador regular, mas gostava tanto daquilo que guardou para sempre a camisa do Ouro Verde e pediu aos filhos para que a colocassem no caixão quando partisse para sempre.

Orquestra Tabajara


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Revolta divina

Zumbis estavam reunidos na porta lateral da igreja em reforma. Ele viu isso depois de ter jantado numa mesa ao ar livre numa viela ali perto. Voltava para casa, um estúdio na cobertura de um prédio velho. Parou e entrou no meio deles. O templo estava aberto. Ninguém barrou sua entrada - e ele viu. Mais zumbis à meia luz naquela imensidão de espaço. Cristo olhava lá do altar. Se pudesse, taparia os olhos com uma ou as duas mãos. Um palco tinha sido improvisado embaixo da cruz. Música experimental, disseram, foi tocada ali. Muitos dos seres presentes sob aquele teto altíssimo estavam bêbados e drogados. Numa das laterais, um bar improvisado, com propaganda de cerveja e tudo mais. Vários barris de chopp se amontoavam sob duas telas grandes da Via Sacra. Ele fez o sinal de cruz credo e foi dormir. Sonhou com uma revoada de anjos armados atacando os zumbis. Era a revolta do Céu.

Manezinho Araujo Pra onde vai Valente


quinta-feira, 8 de maio de 2014

Reclamação

No balcão de atendimento, nem esperou a funcionária perguntar o motivo da presença - foi logo despejando tudo. Não aguentava mais o tormento diário. Todo santo dia precisava chamar um guincho para levantar da cama. Era assim desde que se entende por gente. Nunca se divertiu quando criança, foi obrigado a frequentar a igreja e odiava as rezas, cânticos e achava que um dia a hóstia seria consagrada e servida com arsênico. A escola sempre foi uma câmara de tortura - e ler Rosinha Minha Canoa quase deflagra um surto psicótico. Obrigado a trabalhar num banco, achou que queriam que se suicidasse ao ser escalado para o caixa. Um dia foi mandado embora porque tentou esganar um cliente que insistia em receber um centavo a mais de troco. Nunca namorou, não se definiu sexualmente, ou melhor, se achava uma ameba sem tesão. Teve de trabalhar para não morrer de fome, apesar de achar qualquer tipo de comida um entrave para a vida, uma perda de tempo - ainda mais porque depois tinha que defecar a parte ruim, apesar de achar que não existia uma boa. A atendente ficou atônita. Ele disse que estava ali para reclamar dele mesmo. Chamaram os seguranças. Foi arrastado para fora. Voltou para casa e dormiu. No dia seguinte tinha um guincho a chamar.

Supremacia da fórmula

De Roberto Prado

com a ajuda do meu céu
de nuvens esparsas fiz uma você
agora que eu passei para o papel
não está mais aqui quem te vê

Sabiá Cynara e Cybele


quarta-feira, 7 de maio de 2014

Se o corpo abandonar minha alma

De Marcos Prado

se o corpo abandonar minha alma 
não tenha de mim uma idéia falsa 
não chore,mantenha a calma 
estou morto por minha causa 
cuidado:assim como sua mala 
o meu caixão não terá alça 


Não se Vá Jane & Herondy


Nascido para voltar

Cinquenta anos depois ele voltou para a encruzilhada onde nasceu. Asfaltaram tudo, não havia mais terrenos baldios e desapareceu o morrote onde, com sua turma da rua, várias guerras foram deflagradas, lancinantes cavalgados, bólidos de papelão pilotados. Algumas casas teimavam em se manter como velhos retratos num álbum guardado no fundo de uma gaveta esquecida. No lugar onde morava, o casarãoda frente deu lugar a um caixote horrível de três andares. Ele chegou mais perto e viu que havia um corredor numa das laterais. Lembrou dele, agora bem mais estreito, onde certa vez quase perde o saco num carrinho de rolimã. Então notou que lá no fundo ainda estava em pé a meia-água onde passou os primeiros anos de vida. Caminhou até lá. Um cachorro latiu. Só parou diante de uma grade que separava os fundos do prédio do quintal da casinha. O telhado tradicional tinha sido substituído por amianto. Não havia mais o poço onde um dia pensaram que ele tinha caído. Nem o minúsculo banheiro onde tomava banho de água gelada saída de um cano sem chuveiro. Era tudo muito pequeno. Ele chorou e teve certeza do quanto tinha crescido por ter começado a aventura ali.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Linchamento

Por que será que começaram a me linchar neste terreno baldio? Entrei aqui para descansar um pouco nesta longa caminhada sem rumo. Me perdi porque perdi o gosto de viver e nunca tive coragem de me matar. Nasci de uma mãe e um pai que nunca conheci. A primeira lembrança que tenho é o cheiro do lixão onde um dia acordei. Sobrevivi comendo restos. Tomei poucos banhos na vida. Os trapos que me cobrem achei por aí. Nunca roubei, nunca matei, nunca feri, nunca entrei numa igreja, mas já segui de longe uma procissão. Cristo não salva. Não entendo o ser humano. Me olham com dó, me olham com raiva. A primeira pancada que levei foi na boca. Quase engoli os restos dos meus dentes podres. Vi quando chegou o primeiro gritando que eu era o tarado do bairro. Não sei o que é sexo. Nunca tive vontade. Depois vieram os outros. Me furaram, cortaram o meu pinto e um cachorro vira-lata saiu com ele na boca, o sangue deixando um rastro. Agora tem um garoto com cara de anjo erguendo uma barra de ferro. Ele e outros me chutaram e me arrastaram antes. Vai acertar minha cabeça. Que bom. Finalmente vou descansar. E nem pedi este favor. Obrigado.

Tristes homens azuis

      de Marcos Prado 
       
    não é blues,tristes,não é mesmo 
    a tristeza não faz um homem azul 
    o branco é branco,o negro é negro 
    ninguém é triste,não há blues 
    só existem,tristes,os tristes homens azuis eles se vestem de branco e de negro 
    e os outros vêem azul 
    porque não são brancos nem negros 
    os tristes homens azuis
    ninguém nasce azul 
    não se põe no mundo 
    alguém azul 
    mas quando a noite baixa 
    se levantam 
    os tristes homens azuis

Baden Pawell Samba em Prelúdio


segunda-feira, 5 de maio de 2014

Passarinhos

      de Marcos Prado  
       
    passarinhos
    piem na minha janela
    façam uma serenata para mim esta noite
    eu preparo as pipocas
    e a mesa com frutas
    vocês cantam e comem
    eu bebo e dançose a canção for triste
    choramos todos juntos
    se for alegre,barulho!
    os vizinhos que se fodam
    caso eles dindon
    eu abro a porta:”entrem”
    se não quiserem
    cagamos na cabeça deles
    e recomeçamos 
    na mesma nota
    quando amanhecer,eu sei,
    vocês tem trabalho
    podem ir,mas já estão convidados
    para a noite que vem
    e podem trazer o resto da turma 

Guinga Que nem Manequim


Em Paquetá, sem Fidel

Decidiu que iria passar o resto da vida em Paquetá. Este destino começou a tomar forma quando leu a famosa frase de Nelson Rodrigues sobre os guerrilheiros malucos dos anos 60 que queriam acabar com a ditadura militar e implantar um regime parecido com o de Fidel Castro no Brasil: "Mas Cuba é do tamanho de Paquetá!", disse o gênio, para dimensionar a sandice no país-continente. Mas também havia Luz del Fuego ali nas imediações e o fato de carros serem praticamente proibidos naquele pedaço de terra e pedra nas águas do mar do Rio de Janeiro. Atravessou dois estados, chegou à estação das barcas, entrou numa delas, desceu na ilha e viu que entre o sonho e a realidade um oceano os separava. Encontrou todos as pessoas com os olhos colados nos respectivos celulares, passando e recebendo mensagens. Veio um charreteiro oferecer o passeio para turistas. Aceitou, mas logo resolveu voltar quando foi deixado numa praia de águas poluídas e lhe sugeriram uma navegada no pedalinho em forma de cisne cor de rosa. "Pô! Se pelo menos fosse um boto!", ele pensou enquanto retornava para o continente e admirava a ponte Rio-Niterói.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O sol

        de Marcos Prado  
           
      o sol 
      do outro lado 
      da cidade parecia 
      iluminar 
      a china
      simples: 
      abri 
      a cortina

Na praia, do lado de dentro

Viu a foto antiga e agora sabe porque tinha tanto medo. Na frente do ônibus que levou os amigos do bairro suburbano para a praia, todos fazendo pose. Ele, menino de cinco, seis anos, não estava lá. Mas ao observar a imagem com atenção, se viu olhando para a câmera por dentro do veículo, exatamente no canto onde o vidro do para-brisa faz uma curva. Cabeça grande, cabelo cortado no modelo "topete de bode". Ali se sentiu protegido, se sentiu em mais um útero - mas continuava só. Não lembrou se o chamaram para se expor. O fato é que só apareceu na sombra, em pleno dia de sol brilhante. Ficou ali até o dia em que tomou coragem de olhar para si mesmo - não para os fantasmas que via na areia, no mar, no mundo. Não pensou que o clique da câmera poderia mudar tudo isso. Machucou-se todo, mas sobreviveu. Aí saiu do ônibus e foi dirigir a própria vida.

Aquarela Toquinho