quinta-feira, 31 de março de 2016

Pedras

Fiz, sim - e agora, muitos anos depois, me encanto mais com aquilo. Recolhi pedras nas ruas do bairro, lavei-as e pintei-as de várias cores. Depois distribuí de presente para colegas do trabalho, numa daquelas festas de bebedeira. Amarrei em cada pedra uma cordão e, no bilhete que escrevi, pedi para que o presenteado se comprometesse a levar sua pedra para passear durante toda a vida. Aos 23 anos somos crianças lindas a cometer arroubos de toda espécie, imunes a pensamentos negativos, obstáculos. Provavelmente as pedras se perderam no tempo. Daqueles colegas ainda tenho contato raro com um, famoso, e não me atrevo a perguntar o que ele fez com ela. Lembro que era tímido ao ponto de ter dificuldade de falar ao telefone - mas, pelo menos, sob o efeito do chopp e da cachaça, os amigos demonstraram uma felicidade imensa com aquela manifestação. Era de carinho. Pelas pedras.

viver

De Paulo Leminski


viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície

Tete Spindola Escrito nas Estrelas


quarta-feira, 30 de março de 2016

Vesgo

É vesgo. Tem os dois olhos para dentro. Quando tirou os óculos escuros e vi, pensei logo que enxergava para dentro, para a própria alma. Aí entendi o porquê de tanta sensibilidade, as histórias todas contadas por amigos mais chegados e por ele mesmo. A melhor é a de que lembra quando nasceu porque já queria fazer um som na bacia onde lhe deram o primeiro banho. Foi lá num lugar de nome sonoro, Lagoa da Canoa - e aí veio a imagem da flauta feita com talo de mamona e o som no ar para encantamento e diálogo com os passarinhos. Vixe! O remelexo veio cantado anos depois, em palcos da Europa. Só isso: o remelexo. Até hoje ninguém falou das camisas mais que coloridas, largas, contrastando com o branco dos cabelos e da barba. Albino sim. Nordeste na tradução mais significativa e que chega ao máximo quando ele pega a oito baixos, Hering, e se faz Hermeto, o que me olhou de dentro por enxergar além. 

Nelson Cavaquinho Caminhando


terça-feira, 29 de março de 2016

imperativo da primavera

De Roberto Prado


humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

Sangue

Gosto de sangue e não sou vampiro. Sangue é vida. Sem ele, acabou. Os japas adoram ver o líquido esguichando da carótida cortada pela lâmina perfeita da espada samurai. Tenho coleção de filmes assim. Gosto de sangue limpo. Pode ser do porco furado antes de virar toucinho. Pode ser do pescoço depenado da galinha que me faz lembrar mamãe cortando e aparando na tigela o que a gente iria comer no dia seguinte junto com as outras partes destrinchadas. Drácula com os dentes e a boca manchados depois de dilacerar o pescoço branco da donzela. Que delícia! A carne crua nos churrascos... Sangue temperado com sal grosso, quem há de resistir? Repito, não sou vampiro e não tenho intenção de matar gente ou bicho para ver o lindo líquido escorrer. Mas gosto. Sangue. Vida.

Gal Costa, Zeca Baleiro Flor da Pele


segunda-feira, 28 de março de 2016

Linhas

E se a internet for deus? Apareceu assim apenas para que as pessoas registrem o que pensam. Que horror, não? Mas tem coisa muito boa. Hoje apareceu uma foto enviada lá da Alemanha, de uma cidadezinha perto da divisa com a Áustria – e eu sempre que penso no vilarejo vejo montanhas com manchas de neve. Pois a imagem entrou aqui e foi feita há mais de trinta anos. Um menino cabeludo está num quintal grande e gramado, ao lado de uma única árvore ali existente, e diante de uma torneira de onde sai uma mangueira na direção de quem fez a foto. A mangueira vai, faz uma curva fechada e volta para bem perto de onde está presa. Reconheci o menino. Meu irmão. E vi na frente dele o caminho que fez desde aquela época. Foi ao inferno, deu meia volta e retornou para ele mesmo. Premonição? Não. Uma foto que veio para encantar a tela e passar por cima da quantidade absurda de baboseiras escritas. Deus nas linhas tortas.

o sol

Por Marcos Prado
       
      o sol 
      do outro lado 
      da cidade parecia 
      iluminar 
      a china
      simples: 
      abri 
      a cortina

Elizeth Cardoso Naquela Mesa


quinta-feira, 24 de março de 2016

Recortes

Recortava revistas de decoração como se estivesse mobiliando, de verdade, a casa dos sonhos. No grande caderno também havia espaço para os projetos de residência do tipo que mais gostava. Linhas retas, pé direito alto, salas, quartos, banheiros, tudo com espaço suficiente para abrigar a grande família que ainda não tinha. Quinze anos. Embaixo dos recortes escrevia poemas e nele sempre o grande amor aparecia, como nos contos de fada, mas pilotando carro de luxo e um sorriso mais branco que o da propaganda da Kolynos. A mãe cansou de pedir para ela parar com aquilo, porque quem nasceu para valeta jamais chegaria à Costa Azul ou ao Caribe. Tudo o que ela via naquelas fotos se transformava em realidade para ela. Até sonhava com algumas coisas -  uma coifa em aço escovado e desenho moderno, por exemplo. Na escola conheceu um garoto tímido. Gostou. Se apaixonou. Fizeram sexo. Ela engravidou. Ele morava num cortiço. Colocaram uma cortina dividindo a sala para inventar um espaço onde cabia a cama do casal. A família dele era grande. Ela teve mais dois filhos naquele ambiente. O caderno ficou guardado. Ela chegou ao 22 anos parecendo uma mulher sofrida de 40. Mas continua sonhando. Um dia viu chegar o mordomo na beira da piscina. Ele trazia um suco. Ela bebeu, mas engasgou e acordou. Viu o sogro espiando numa fresta da cortina. Ficou com medo.

Agostinho dos Santos Estrada do Sol

quarta-feira, 23 de março de 2016

elo

De Paulo Leminski

amar é um elo
entre o azul
e o amarelo

Elis Regina Atrás da Porta


Para a guerra

Só a preparação para a guerra é que garante a paz. Alguém me falou um dia essa frase que estava pintada na parede de um quartel onde serviu. Mas contou também que, maluquete, uma vez fez uma foto onde ele mesmo aparecia todo relaxado embaixo das palavras. Foi há muito tempo, hoje ele é um velho que gosta de rir muito, mas relata a história em tom de voz baixinho, ainda com medo de pegar uma cana, que era o que aconteceria se o flagrassem assim naquele tempo em que os militares mandavam no país. Só a preparação para a guerra. Lembrei disso porque hoje o país está como uma panela de pressão pronta para se transformar em alguma coisa ruim. Dois grupos distintos se xingam, ameaçam, enquanto os senhores parlamentares e donos atuais do poder estão perdidos e fazem qualquer coisa para permanecer ou tomar o controle. Será que estão preparados para a guerra? Não, não estão. Esse é o medo - e não há paz enquanto ficam assim, neste martírio de incertezas.

terça-feira, 22 de março de 2016

Ayahuasca

Tomei o chá e fiquei me olhando. De fora pra dentro e de dentro pra fora. Ayahuasca. Entrei no ritual por curiosidade. Logo que bebi o líquido, parecido com suco de goiaba, mas com um gosto que dá vontade de vomitar, o que pareceu foi como estar na nave de 2001, Uma Odisseia no Espaço, viajando pelo universo e as luzes riscando tudo e indicando uma velocidade espantosa. Eu ia, mas... para onde? Havia música na sala - o melhor do que já foi produzido no Nordeste. Sanfona, zabumba e triângulo como trilha sonora de uma loucura que não metia medo. Antes daquilo, as drogas alucinógenas estavam fora do cardápio, mesmo porque já tinha visto um amigo não retornar por causa de um ácido. Ali, não, mesmo eu me vendo de cima (do teto?) e me achando do bem, iluminado, havia uma segurança inexplicável. Foi aí que o líder que estava na cabeceira de uma mesa fez algo incrível: com uma palavra, todos os que estavam na sala retornaram ao estado que chamamos de normal. Nunca mais esqueci. Nunca mais voltei lá.

Estilo

De Dalton Trevisan

Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete.

Djavan Samurai