quinta-feira, 24 de março de 2016

Recortes

Recortava revistas de decoração como se estivesse mobiliando, de verdade, a casa dos sonhos. No grande caderno também havia espaço para os projetos de residência do tipo que mais gostava. Linhas retas, pé direito alto, salas, quartos, banheiros, tudo com espaço suficiente para abrigar a grande família que ainda não tinha. Quinze anos. Embaixo dos recortes escrevia poemas e nele sempre o grande amor aparecia, como nos contos de fada, mas pilotando carro de luxo e um sorriso mais branco que o da propaganda da Kolynos. A mãe cansou de pedir para ela parar com aquilo, porque quem nasceu para valeta jamais chegaria à Costa Azul ou ao Caribe. Tudo o que ela via naquelas fotos se transformava em realidade para ela. Até sonhava com algumas coisas -  uma coifa em aço escovado e desenho moderno, por exemplo. Na escola conheceu um garoto tímido. Gostou. Se apaixonou. Fizeram sexo. Ela engravidou. Ele morava num cortiço. Colocaram uma cortina dividindo a sala para inventar um espaço onde cabia a cama do casal. A família dele era grande. Ela teve mais dois filhos naquele ambiente. O caderno ficou guardado. Ela chegou ao 22 anos parecendo uma mulher sofrida de 40. Mas continua sonhando. Um dia viu chegar o mordomo na beira da piscina. Ele trazia um suco. Ela bebeu, mas engasgou e acordou. Viu o sogro espiando numa fresta da cortina. Ficou com medo.

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