sábado, 29 de novembro de 2014
sexta-feira, 28 de novembro de 2014
Doença noticiosa
Não sabe como começou a ficar doente. Não sentia dor, mas a cada dia tudo ia perdendo a cor, interesse, brilho. Foi a todos os médicos possíveis e fez os exames. Nada! Psiquiatras, psicólogos, pais de santo, padres, pastores, ninguém conseguia identificar a origem daquilo. Um dia, descobriu. Foi por acaso. Tinha o costume de acompanhar o noticiário do Brasil e do mundo nos jornais impressos que assinava, nos sites, nos informativos de rádios e televisões. Por esquecimento, deixou de ler as páginas que chegavam de madrugada no jardim acondicionadas num saco plástico transparente. Quando se deu conta, estava mais esperto. Não ligou o computador, manteve o rádio mudo e a televisão como um quadro negro na parede da sala – para testar. Se sentiu tão bem, tão vivo, tão radiante, que foi dar uma volta na quadra e viu o quanto estavam belos os jardins dos vizinhos e as árvores das ruas. Sorriu e decidiu que nunca mais iria acompanhar as desgraças do mundo em forma de notícias. Só não contava com o telefone. No dia seguinte, logo cedo, um amigo ligou: “Viu que foi preso?”
quarta-feira, 26 de novembro de 2014
A voz
Foi um técnico em computação que deu para ele o fone de ouvido zero bala. Dentro da caixa. Coisa simples, falou o sabichão, depois de limpar a máquina e lhe cobrar uma dinheirama pela visita. Ele esperou o malaco sair, enfiou os plugs nos buracos e, quando quis ouvir Vicente Celestino cantando Noite Cheia de Estrelas e Silvio Caldas interpretando Velho Realejo, surgiu uma voz que era mais doce do que a da Iris Letieri nos aeroportos. Não distinguiu as palavras saíam da boca de uma mulher ou homem - e isso não importava. É que eram ordens: para que procurasse certos endereços na internet, se comunicasse com algumas pessoas, enfim, eram determinações que ele obedecia mesmo sem querer, porque seus dedos trabalhavam automaticamente a Remington, como ele chamava o seu PC. Não havia nenhuma conexão entre tudo o que via, ouvia e escrevia. Até o dia em que a voz ficou um tempo sem falar através dos fones. Ele se preocupou. Estava acostumado. Então, depois de um longo silêncio, ouviu:"É isso" - e nunca mais a escutou.
terça-feira, 25 de novembro de 2014
A procura
Deu um treco nele. Na verdade, o treco foi aparecendo lentamente, como em ondas de flashes de lembranças do tempo em que era adolescente e não sabia qual o rumo na vida ia tomar. Foi nessa época que, forçado pelo pai que sonhava em ver a carteira de trabalho dele assinada, foi a uma dessas agências oficiais de emprego. Preencheu uma ficha enorme onde a única experiência que colocou foi a de ajudante num boteco de bairro, onde servia mais cachaça do que refrigerante. Claro que nunca foi chamado para nada, mas aquilo começou a tomar conta dele cinquenta anos depois. A sensação da inutilidade, da névoa a impedir que visse ou sentisse alguma coisa que o levasse a uma profissão ou trabalho qualquer. E o lugar colaborava - era estranho, um prédio velho com funcionários que pareciam múmias pedindo descanso. Depois disso ele se perdeu na vida, mas encontrou um caminho profissional que nunca imaginou - e só soube que era aquilo mesmo depois de velho, coisa que hoje o faz rir. Mas aquela sensação do começo, da procura pelo que não sabia... ainda dói muito no seu peito.
Ó, céus
De Roberto Prado
nenhum pio
nada de nuvens
não há azul
ó, céus!, que são tantos,
que cada um tem o seu
e ainda tem quem não veja
quando a gente cai do céu
segunda-feira, 24 de novembro de 2014
Na frente do cemitério
O soldado enfiou o cano da metralhadora pela janela do carro e a ponta ficou perto da têmpora dele. Minutos antes, no meio da madrugada, tinha feito uma lambança com o carro onde aprendia a dirigir. Quase bateu de frente num táxi - que teve de subir na calçada em frente a um cemitério. Ele pisou fundo porque sabia que o taxista poderia vir atrás. A mulher que estava ao lado apoiou. Não contavam com a barca negra lotada de meganhas vestidos de preto que estava logo atrás e imediatamente ligou a sirene. Ele parou para não ser metralhado. Não tinha habilitação, dirigia de sandália, mas também não bebia. Pediu para o soldado chamar o comandante da tropa. Veio o sargento. Ele mostrou uma carteirinha de oficial. De verdade. O sargento bateu continência, mas recomendou à mocinha que assumisse o volante. Ela fez isso. Mais tarde, já em casa ele tirou de dentro da cueca uma pacoteira de cannabis que carregava por ter comprado antes da aula - e foi dormir aliviado. Naquela noite ele não fumou.
sábado, 22 de novembro de 2014
quinta-feira, 20 de novembro de 2014
LSD
Nunca lhe saiu da cabeça o sonho da geração que se dizia de paz e amor. Um sonho não concretizado porque os que estavam prontos para executar o projeto foram presos. Eles queriam que toda uma cidade viajasse com eles. Viagem de LSD, que seria colocado em grande quantidade no reservatório de água que abastecia São Francisco, na Califórnia. A única Califórnia que ele conhecia era uma vila na Zona Leste de São Paulo. Mas a droga sintética... ah, essa ele conhecia sim. Mas nunca tinha experimentado - porque tinha medo de alucinógenos. Contradição? Não pensava nisso. Lembrava apenas da história dos anos 60 e, por isso, começou a juntar pontos, micropontos e selos da droga sintética. Quando achou que tinha quantidade suficiente de pirar toda a cidade careta, foi ao reservatório. No meio de uma madrugada fria. Antes de jogar a droga, levou um tiro na nuca. Caiu na água. O LSD se espalhou. Nos dias seguintes não houve nenhuma alteração no comportamento dos moradores da metrópole. Eles já estavam alucinados há muito tempo.
quarta-feira, 19 de novembro de 2014
Penúltima
De Marcos Prado
- Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
Herói
Fez esforço para colocar o nome no diminutivo porque sabia que seria quase um anão. Os pais eram assim. O que não sabia é que também teria um caráter de rodapé, mesmo porque era inseguro e achava que se prestando a bandalheiras poderia ganhar respeito. Antes se enveredou pelos caminhos da política. Aproveitou a ingenuidade aloprada para tentar derrubar o regime dos gorilas. Nem chegou a ser preso. Foi logo dedurar os companheiros que falavam em camponeses ao tratar de seres perdidos que viviam no mato. Não sofreu ao saber das torturas e dos assassinatos nos porões. Estava já no estágio de rato de esgoto - por isso usava salto alto para crescer alguns centímetros. O tempo passou, ele foi se esgueirando pela vida, enganando aqui e ali até se tornar funcionário público. Vagabundo, claro, mas dedicado. Ia todo dia à repartição, sentava a bunda na cadeira, não fazia nada e voltava para casa a fim de tomar sopa de lata, que gostava fria. Durante o expediente reclamava do governo da hora e do salário. Contava os dias para aposentadoria. Ela chegou. No mesmo dia ele esticou as canelas. Foi saudado como herói da resistência.
terça-feira, 18 de novembro de 2014
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