terça-feira, 30 de junho de 2015

palavras na mesa

De Roberto Prado

sombras se esgueiram
entre vírgulas
separadas por tontas sílabas
que se espantam

nesta mesa, caros amigos,
como em tanta véspera
o que ainda me separa
de minha santa ceia?

MPB4 Amigo é Pra Essas Coisas


O poço

O mistério do poço era o poço. E o balde. E a corda. E tudo desaparecendo naquele buraco. O menino olhava a mãe sair do casebre com a bacia de alumínio, deixá-la no chão, tirar aquela tampa de madeira, destravar a manivela e descer o balde cinza, de metal, cuja alça estava com a corda amarrada bem no meio - e que antes de desaparecer sempre balançava mesmo sem vento, sem nada. Depois tinha aquele barulho que mais tarde ele ouviu na voz de Luiz Gonzaga, mas no caso era a caneca entrando na água quando ele voltou ao nordeste e levou uma chamada de Januário. Tibung! Aí ele via a mãe com a mão esquerda segurando "os quartos", como ela dizia, e enrolando a carretilha grande, fazendo força, até aparecer o balde chorando. Ela o tirava na mira do buraco e depois despejava a água limpa na bacia, que levava pra dentro. Naquele dia o menino reparou que a mãe esqueceu de fechar a tampa do poço. Ele foi lá olhar. Se esticou até conseguir ver tudo - e era escuro, e parecia que um monstro iria sair dali e puxá-lo. Mas ele olhou direito e viu, lá embaixo, no fim do mundo, um pedaço do céu e algumas nuvens que estavam acima dele, pois olhou para verificar. E aí se viu naquele espelho. Era uma cabecinha de alfinete. Quis saber também se podia aparecer  a mãozinha dando tchau. Apareceu. E as duas, daria? Deu. E aí foi sonho ou pesadelo porque sumiu tudo que o amparava. Lembra que escutou um grito. Depois, ainda tonto, um braço segurando seu corpo e ele subindo na corda até os olhos se ofuscarem com a luz do sol. Ouviu gente rindo, chorando, foi abraçado, beijado, tudo mais. Falaram em milagre e ele foi colocado na cama depois de tomar banho quente. Foi assim que o mistério do poço aumentou muito mais para ele.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

vazia

De Alice Ruiz

A gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia

Ultraje a Rigor Ciúme


Animal!

Queria ser famoso, celebridade, essas coisas de agora. Quinze anos. Entrou numa academia. Como era pobre de subúrbio da caixa prego, teve de ir para uma que se chamava Hércules. Os pesos estavam enferrujados. O dono tinha sido mister Carapicuíba em 1953. Estava entrevado e babava por um canto da boca. Mas os exercícios estavam lá. Ele puxou ferro durante três anos, cinco horas por dia - e ainda tomou umas bombas feitas para encorpar jegues a fim do abate para exportação de carne a países asiáticos. Um dia viu um cartaz escrito à mão num poste da vila. Teste para atores de novela. Ele foi. Tirou a roupa, mostrou o corpão dentro de uma cuequinha que comprou numa liquidação no supermercado, onde pagou R$ 6,60 por três e levou quatro. Disseram que foi aprovado e que no dia seguinte ele começaria as gravações. Estava lá. Era num quarto de motel vagabundo, tipo Iglu Inn. Tinha um cineasta com uma câmera na mão e uma mulher de 40 anos que só podia ficar com os braços esticados para cima para que mantivesse a altivez mamária. Ele encarou a missão. Recebeu elogio do diretor pelo desempenho. Da mulher, não - ela preferiu sair para fumar. Ele voltou para casa feliz. Lhe disseram que grandes atores de Hollywood começaram assim. Da Globo não conhecia nenhum, mas a emissora não deixa divulgar um treco desses. No dia seguinte tinha outro capítulo. Lhe informaram que ia ser sexo animal.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Sem nome

Ficou na dúvida se tinha ou não perdido a memória. Não completamente, mas para as coisas que vinham de repente - e nada. O nadador do filme "Enigma de uma vida", por exemplo. Foi assim que ficou preocupado. Lembrava dele atravessando várias piscinas dos vizinhos e também entrando no mundo das drogas por acaso, já velhinho, em "Atlantic City", ou ainda aquele beijo famoso na areia da praia em "A um passo da eternidade", ou, mais ainda, o caminhoneiro apaixonado por Anna Magnani em "A rosa Tatuada". Mas... cadê o nome? Não quis ir ao Google, apesar de saber entrar e se perder ali. Queria lembrar pelas próprias pernas, se é que elas têm a ver com isso. Os dias se passaram e ele ali com as cenas, o rosto, o corpo, o sorriso do ator na cabeça - e nada. Fez esforço para esquecer o esquecimento. Esqueceu. Mas aí vieram outros apagamentos, sempre com ator ou atriz da tela grande. Achou melhor procurar um médico. Foi. Este deu risada quando ouviu o drama. Disse que passava por isso também. Ele contou o primeiro caso. O doutor também conhecia todos os filmes daquele ator, mas não recordava o nome.

Voos

De Sérgio Rubens Sossélla

um passarinho
e uma borboleta
o que eles são?
dois vôos.

Zeca Baleiro Lenha


quarta-feira, 24 de junho de 2015

Filosofia

Achou a filosofia bem filha da puta. No bom sentido, se é que poderia ser classificada assim. A frase veio do nada, mas o fez pensar em quantos seres filhos da puta, no mau sentido, tinha conhecido em tantos anos de existência. Não, não tinha a ver com as mães dos tais, porque elas nunca merecem, mas com o caráter filho da puta dos crápulas que, do nada, demonstraram porque eram filhos da puta. Teve um que, do nada, foi pedir sua cabeça ao chefe do local onde trabalhava. Teve outro que ficou lhe devendo uma fortuna por trabalho feito e certa vez, ao ser cobrado, resmungou: "Você só pensa em dinheiro!" Cortou dos pensamentos as revelações dos descasamentos, porque estas eram clichês conhecidos em todas as Varas de Família. Lembrou de um amigo empresário de jogador que, no meio de uma madrugada, ao saber que sua estrela tinha caído com o carro dentro de um rio canalizado, e às vésperas de ser vendido por milhões, gritou: "Este filho da puta quer me foder!!" Não era o caso de caráter, apenas de bebedeira. Então ele se debruçou de novo sobre a frase que desencadeou tudo rapidinho, e repetiu em voz alta, olhando nos próprios olhos diante do espelho: "Ser filho da puta não é um ideal a ser alcançado. É, sim, uma grande filhadaputice".

querer

De Paulo Leminski

isso de querer
ser exatamente
aquilo que a gente é
ainda vai nos levar
além

Demetrius Ritmo da Chuva


terça-feira, 23 de junho de 2015

Lembra

De Alice Ruiz


Lembra o tempo em que você sentia
e sentir era a forma mais sábia de saber 
e você nem sabia?


Carmem Miranda Rebola a Bola


Branca

Quando a endorfina bateu ele estava vendo um documentário sobre uma expedição ao K2 que deu merda. Morreram vários alpinistas e os que se salvaram pareciam ter pirado, além de perderem dedos dos pés e das mãos. Um dos guias virou capa da National Geographic, mas não quis falar sobre o que aconteceu. Andando e correndo há mais de duas horas na esteira, velocidade oito, ele ficou vendo aquela imensidão branca e as histórias de alguns heróis sobreviventes ficaram futucando a mente. Dois dias depois esqueceu tudo porque conheceu um grande homem, destes anônimos, que estão ali do lado, menino ainda atrapalhado com a turbulência da alma, perdido por um tempo na procura de algo que fizesse sentido, mas que só o afundou no mundo das drogas. Agora estava dando os primeiros passos depois de um longo tempo de internação, algo parecido como o do jogador Casagrande, até que numa noite, por estes encontros na encruzilhada da vida, alguém entrou trincado na cozinha de uma casa e jogou um pacote com algo  branco e muito perigoso - e não era neve. Os olhos do menino se arregalaram. Ele viu as pupilas dilatadas do cheirado, olhou de novo aquele pó branco, sentiu dor imediata no estômago, relembrou os tempos em que se afundava nas carreiras e trafegava só no universo paralelo, temeu por não aguentar aquilo - mas saiu dali com o coração apertado e aos pulos. Ficou assim por um tempo, trancado no quarto e com uma sensação ruim e boa ao mesmo tempo. Até que falou com gente do seu time, gente que já tinha passado por isso e ali, no relato, recebeu dele a carga reveladora da força da vida que aconteceu no instante mágico da hora da decisão, aquela entre ir por um caminho ou pelo outro, já conhecido e sofrido. E o menino soube então que tinha conseguido chegar ao ponto fundamental de ter o domínio para a escolha.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Necessidade de morrer

De Miguel Sanches Neto

Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra

Tonico e Tinoco Moreninha Linda


O bichinho

Entrou no consultório do oncologista como se estivesse adentrando a sala de cinema para ver um filme musical dos velhos tempos. Ouviu toda a explicação do doutor sobre os perigos do câncer na próstata - e a dele estava dando todos os sinais de ter o bichinho do ham-ham, como ele costumava brincar. O médico disse que o perigo são os tipos mais agressivos, que em seis meses saem do casulo - e aí é só resta encomendar o caixão. Ele riu. Em caso de detecção a tempo, dá para fazer tratamento com raios que o partam ou cirurgia para extirpação. Nos dois casos perde-se um pouco a virilidade. Ele riu mais ainda. O especialista contou então que todos os homens que sentam naquela cadeira sempre ficam apavorados - e perguntou por que ele não. Durante 40 anos, explicou o paciente, flertou com a morte sem saber - e conseguiu sobreviver. Não tinha medo porque estava diante de um doutor que aparentava saber tudo e explicava de forma simples e direta, ao contrário dos candidatos a deus que encontrou na vida. No caso da virilidade, ele disse que, se ficasse totalmente brocha, não se incomodaria pois há muito tempo não funcionava. Nessa o homem de jaleco branco também riu. Depois de todos os exames feitos, inclusive com biópsia sofisticada, comprovou-se que o bichinho ainda não tinha aparecido. Mas ele estava preparado para a chegada. Rindo.