quarta-feira, 30 de setembro de 2015

volta

De Paulo Leminski

passa e volta
a cada gole
uma revolta

Orlando Silva Lábios que eu beijei


Cansaço

Cansei. Da alma. Escrevi assim porque não tenho forças para pensar muito. O dia esgotou todo tipo de energia. Corri, comi feijão com arroz, bife, farinha e pimenta. Não dormi. Não dava. O dever me chama. Que coisa esquisita isso. Quem chama? Desde o sinal da cruz da primeira hora da manhã até a hora da Ave Maria rogai por nós os pecadores, um fazer atrás do outro. Pra que? Pergunto agora porque olho e não vejo, apenas sinto que tudo me consumiu como se eu olhasse um poço e a escuridão me deixasse apenas com a pele, osso, músculos. A mente? Não sei mais. Cadê o meu sono para que tudo volte ao normal? Por favor, uma esmolinha de compreensão para que o corpo sem recheio pouse na grande cama e o teto entoe a canção de ninar. Amanhã... amanhã...

terça-feira, 29 de setembro de 2015

Com a torneira

Ela conversava com a torneira enquanto lavava roupa no tanque lá no fundo da casa. Ouvir ele falando isso foi algo muito marcante, mesmo porque o dono da casa quase não conversava. Nunca fui lá atrás para verificar. Não queria atrapalhar. Mas sempre acreditei nisso, inclusive que as respostas da tal eram satisfatórias. Quando ela voltava para dentro de casa, o vestido invariavelmente estava molhado. Era estampado e eu imaginava as flores do jardim com o orvalho da manhã. Fiquei sonhador depois de velho, porque antes era o pesadelo que tomava conta de tudo. Aquela mulher não sorria muito. Hoje acho que era só da boca pra fora. Porque divertida ela era. Demais. Tirava sarro de qualquer coisa. Menos dele, a quem reverenciava como um rei. Talvez fosse assim que conseguia o domínio. Porque, se ele achava que era o manda-chuva, muitos anos depois, eu soube, da boca de um dos da equipe médica que trata minha cabeça, bem, soube que era ela quem dominava tudo. Provavelmente contava isso para a torneira do tanque - e esta respondia com a água fresca a abençoar aquelas mãos.

agudo

De Paulo Leminski

vazio agudo 
ando meio 
cheio de tudo

Cely Campello Banho de Lua


segunda-feira, 28 de setembro de 2015

Piripiri

Eu não vim, eu fui a Piripri. Descobri apenas quando o ônibus parou na beira da estrada no meio do Piauí. O sol rachava o quengo e a cor da paisagem era aquela onde se estabelece há quantos meses não chove no lugar. Paulo Diniz continuou cantando na minha cabeça - e eu nem sei se a Piripiri dele era aquela minha. E o que importava? Será que o amor dali era como o amor da letra? Caminhante faz parada, a voz rascante sempre cantou. Eu parei. Se apaixona pelo ar. Eu respirei e as narinas foram os dutos para entrar um ar quente no meu peito. Os olhos arregalaram e então eu vi um menino com catarro escorrendo, a camisa abotoada errada, o bucho com o umbigo estufado e os pés descalços no chão me olhando. E os olhos dele eram o mar verde a inundar tudo, a transformar aquela aridez em poesia visual e confirmar que cada amigo ali é um irmão. Ele sorriu pra mim, mas antes limpou o catarro com a ponta da camisa. Aí virou as costas e saiu correndo, mas dando uns pinotes numa cena tão alegre, que eu pensei em ficar ali, mas pedindo licença pra chegar, como na música.

Festa

De Helena Kolody


Festa das Lanternas!
Os ipês estão luzindo
De globos cor-de-ouro.

Arlindo Cruz, Sombrinha Um Dia





quinta-feira, 24 de setembro de 2015

dia do cachorro louco

De Marcos Prado

você morreu, cachorro louco

naquele mês de agosto

arreganhando os dentes

encarando um carro frente a frente

o carro, desgovernado,

explodiu no alambrado

você agora está contente

mas o carro estava cheio de gente

Sivuca, Clara Nunes Feira de Mangaio


Refresco

Minha mãe sempre entrava com duas quentes e outra fervendo. Era baixinha, pernas cambaias, boca com os cantos caídos e parecia sempre triste. Parecia. Era mestre no de repente, ou seja, inventar frases, modas, tudo em cima do laço, na hora do acontecimento, como só quem nasce com talento e o desenvolve sabe fazer. Não se sabe onde aprendeu, mas ensinava. Conhecia todo o repertório de palavrões nordestinos - e febre do rato para ela era uma coisa suave. Fi da boba, por exemplo, era comum ela se referir a alguém que tinha feito algo errado. Fi da boba é o diminutivo de Filho da Peste Bubônica. Um dia aprontaram com ela. Foi meu pai. Coisa que nunca tinha acontecido. Não houve consequências, mas ela ficou bem triste de verdade. Uma irmã quis consolá-la, aquele consolo inútil de quem nunca tinha vivido aquela situação e que não sabe que a dor pode até se esconder, mas nunca vai passar. Quando acabou de falar a abobrinha, minha mãe só disse o seguinte para ela: "Fogo no rabo dos outros é refresco".

quarta-feira, 23 de setembro de 2015

Envergano

Eu não sabia o que é vegano, nem o que é ser vegano. O som da palavra é interessante, pois lembra vergando - vergano, como se fala na vila dos cafundós. Me chamaram para ir ao restaurante deste tipo, que agora é moda. Perguntei se tinha chuleta. Quanta heresia! Quanta associação de nomes! Me explicaram a coisa e lembrei dos botecos pé-sujo lá na Baixa do Sapateiro, em Salvador, onde vi um amigo comer uma linguiça que boiava há anos em óleo sujo. Para não ficar feio, contei meu lado vergano. Em todos os restaurantes que já fui na vida, o chuchu é menosprezado. Fica ali com aquela carinha triste , implorando que alguém o recolha para o prato e o coma em seguida. Por um motivo humanitário, faço isso. Sempre. O chuchu merece toda consideração, seja de um envergano ou de um vampiro. Não adiantou contar essa história. Perdi a oportunidade de almoçar no tal. Só me restou ir ao bar de quase cem anos e pedir um pão com bife, queijo e,,,  verde, para começar a me adaptar à nova moda.

mistério

De Paulo Leminski

rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?

Tom Jobim, Vinicius de Moraes, Miucha Pela Luz dos Olhos Teus


terça-feira, 22 de setembro de 2015

Capítulo final

Não quero uma casa no campo. Quero o campo na minha casa. Que ele seja do tamanho do que resta da floresta amazônica e que meu vizinho mais próximo esteja a milhares de quilômetros. Não suporto mais seres humanos, a começar por mim mesmo, este poço de certezas das dúvidas. Me disseram que era uma aventura, mas qual? O resumo já foi dito e não se foge disso: nascer, foder, morrer. O menino dentro do ônibus abandonado no meio do nada, morrendo e olhando para o céu, naquela história real onde ele foi procurar o que não existe, esse também é um resumo. Filmaram - e aí já virou merda vendida por Hollywood. Tudo é engolido e expelido pelo grande ânus. Lembram-se da geração paz e amor? Até hoje se fatura em cima dos incautos. E quem ganha é o que? Ah, os ricos se divertem mais, enquanto os pobres não conseguem nem pensar e muito menos sair dando tiros e furando e massacrando porque é isso aí mesmo. Minha casa no campo... onde não vou compor nem escrever, nem fazer porra nenhuma. Espero a invasão dos bichos para servir de alimento. Pelo menos serei útil no capítulo final.

todo caminho

De Nelson Capucho

essa história
                   sei de cor
                   todo caminho
                   vai dar no bar


                   vôo
                   não existe
                   sorte           azar
                   não existe

                   tudo é risco
                   arrisque

                   leão de zôo
                   tem os olhos tristes

Rita Lee Ovelha Negra


segunda-feira, 21 de setembro de 2015