quinta-feira, 29 de maio de 2014

Psicológica

O texto mais lido do Luis Fernando Veríssimo, que não é do Luis Fernando Veríssimo, é o da caganeira. O grande escritor jamais escreveria isso, mas a merda se espalhou. Muita gente riu - e muita gente chorou  porque passou por situação semelhante. Como aquele menino que, entusiasmado, foi conhecer uma chácara de ricos onde trabalhava como caseiro o irmão do vizinho. Viajou de trem na ida. Voltou de ônibus. Viveu aventura na ida por problema simples: perderam a conexão e os dois acabaram pegando carona no meio da madrugada num trem de carga. No retorno, o horror. Entrou, sentou na poltrona lá no fundo e assim que o motorista embicou na estrada, atacou-lhe aquela dor de barriga que o Veríssimo falso descreveu. Não havia banheiro no veículo. O menino era tímido demais para pedir que o motorista parasse e ele fosse... no mato ou em qualquer boteco de beira de estrada. Não falou nada para o amigo. Suou frio, rezou para que a viagem fosse curta. Com aquela idade, pra que se preocupar com distância? Conseguiu segurar tudo até que o ônibus encostou na plataforma da grande rodoviária. Saiu em disparada sem saber onde ficava o banheiro. Lhe disseram que era no andar de cima. Subiu correndo e, ao chegar na porta... havia uma roleta. Descobriu que era preciso pagar para cagar. Ele não tinha um puto de tostão no bolso. Ofereceu os óculos como garantia. O senhor que tomava conta do banheiro percebeu que o garoto estava apurado pois estava pálido e suava frio. Deixou ele entrar. Uma privada estava livre. Ele baixou as calças - e nada. Imaginou que iria entupir a fossa em várias etapas, mas... nada. A dor foi passando enquanto alguns flatos, puns, peidos, foram saindo timidamente. Ele ergueu as calças, e já ia saindo e, aí, aconteceu. Quando acordou, estava sentado no trono e várias pessoas o olhavam.  O menino criou coragem e perguntou o que se passara desde que perdera os sentidos. Ninguém respondeu. Ele levantou e percebeu que estava com a cueca e as calça no lugar. Examinou e viu que não tinha se sujado. Saiu e encontrou o companheiro de viagem, que, preocupado com o sumiço, perguntou o que tinha acontecido. Ele respondeu: "Caganeira psicológica".

é muito

De Roberto Prado

Tempo ruim não foi
e o agora não quer ir.

Tudo precisa de dois.
Isso, no momento,
é muita gente.
Fica pra depois

quarta-feira, 28 de maio de 2014

Fardas e fardados

Ela sempre teve atração por fardas. Desde criança. Olhava os escoteiros como se estes tivessem vencido uma Guerra Mundial. Depois foram os guarda-mirins e, mais tarde, na adolescência, os soldados do quartel do Tiro de Guerra que ficava próximo à sua casa. Não, não assistia ao desfile de 7 de Setembro na cidade onde morava porque tinha medo de ter um treco, um ataque do coração, trombose cerebral ou algo assim. Nunca namorou homem algum - com farda ou paisano. Aquilo era um mistério na família, mas ninguém questionava. Estudou, fez curso de datilografia, trabalhou um tempo como secretária de um escritório de advocacia, mas um dia resolveu largar tudo e ficou em casa curtindo um gato, um cachorro, um papagaio e as blusinhas de crochê que fazia para doar a entidades beneficentes. Envelheceu. Até que um dia, quando ainda estava lúcida, ouviu alguém perguntar sobre a paixão antiga. Ela começou a chorar e, quando se refez, disse que era a maior frustração da vida dela. Qual? Queria ser alfaiate só de uniformes militares.

Elis Regina Atrás da Porta


terça-feira, 27 de maio de 2014

A procura

Não aguentou e resolveu procurar. Nem que, para isso, tivesse de fazer o pacto de Robert Johnson na encruzilhada. Desde "batatinha quando nasce" se apaixonou por poesia e, ao longo da vida, percorreu milhares de quilômetros de rimas rimadas e não rimadas dos grandes, dos pequenos, dos médios, dos nem tanto poetas. Guardava tudo e, quando achava que estava passando por algum momento similar ao que imaginava ter lido em algumas linhas, ou entrelinhas, procurava e sempre dizia: "Não é que o filho da puta tinha razão?" Claro que nas dores, nas alegrias, nos momentos nada, nos tormentos, tentou escrever, mas nunca conseguia colocar na folha de papel ou na tela do computador uma única sílaba, quanto mais uma linha ou um verso inteiro. Por isso resolveu procurar de onde os poetas conseguiam tirar ou receber aquilo que passavam adiante e que faziam algum sentido, mesmo sem sentido, aos leitores. Acabou sendo preso com olhar no nada. Segurava um coração sangrando de um corpo jamais encontrado.

portão aberto

De Sérgio Rubens Sossélla

abri o portão da fazenda
as estrelas passaram
a noite permaneceu


Alvarenga e Ranchinho e o Drama da Angélica


segunda-feira, 26 de maio de 2014

Próstata

Descobriu muito tempo depois que histórias sobre bêbados eram engraçadas somente muito tempo depois e se contadas por quem as viveu e conseguiu sobreviver.Aquele senhor alto e sábio, por exemplo, dizia que, mesmo milionário, nunca tinha viajado para o exterior porque sabia que não encontraria um bar como aquele em que entornava na esquina perto de casa. A história mais louca era das viagens que fazia com a mulher no carrão, sempre importado e do ano. O trajeto poderia ser o mais curto possível, mas o motor invariavelmente pifava de tempos em tempos. Ele descia, abria o capô e, sem que a santa companheira visse, tirava um canudo do bolso para sugar o líquido que tinha colocado no lugar destinado à água. Alma de vodka, seguia em frente até dar vontade de novo. Lembrou disso enquanto tomava mais um copo de água para fazer exame na bexiga. Então riu - e quase fez xixi na calça, porque seu problema atual era a próstat,  inchada além da conta.

é muito

De Roberto Prado


Tempo ruim não foi
e o agora não quer ir.

Tudo precisa de dois.
Isso, no momento,
é muita gente.
Fica pra depois

Itamar Assumpção Prezadíssimos Ouvintes


quinta-feira, 22 de maio de 2014

Na rosca

 "Preciso achar um macho para fazer uma rosca". Ele passava distraído, se desviando dos cocôs de cachorros na calçada, quando ouviu a frase que saía do fundo de uma oficina. Ficou tão atrapalhado com aquilo que pisou num monte. Teve de raspar o solado do tênis numa guia e depois esfregar o pisante na grama mais próxima. Quem viu a cena achou que ele era um gato tentando cobrir o que tinha feito. Macho e rosca. O som das duas palavras era forte, mas ele limou o macho e ficou com a rosca porque ela entrava mais de leve, apesar do ruído. Na lembrança mastigou uma, a da avó querida lá de Minas Gerais. Também machucou o dedo com a chave de fenda ao tentar encaixar o parafuso num lugar em que só os profissionais mantêm a paciência para arrochar depois. Rosca de enroscar, pensou. E aí pisou de novo. Que bosta!

cuidado, período fértil

De Roberto Prado

Você lança qualquer coisa
sem saber que qualquer coisa pega.

Nem precisa ser semente
e já uma raiz me agarra
ergue-se um tronco
uma folha me escreve.

Não chego a dizer:
- coma, já que matou.
Tampouco digo:
- toma que o filho é teu.

Mas já que nasceu
sinta este perfume
coisa de Deus
que você plantou.

Vicente Celestino e a Porta Aberta


quarta-feira, 21 de maio de 2014

Chama e lama

Estava lá. Era o que importava. O primeiro festival de rock da vida. Fugiu de casa com a mochila velha nas costas e sem um puto no bolso. De carona em carona chegou à fazenda um dia antes de o som das guitarras começarem a cortar aquele céu, aquela mata e o coração dos ouvintes. Havia muita segurança protegendo a propriedade. Ele esperou a noite cair. Uma chuva despencou junto com a escuridão. Lama. Lembrou de Woodstock, a inspiração para toda uma geração. Procurou um rio. Achou um córrego, entrou nele, passou por debaixo de uma cerca de arame farpado. Rasgou a camiseta e um corte fez o sangue escorrer. Não ligou. Estava ligado. Foi se ajeitando bem em frente ao palco. Estava cansado, molhado e sujo, mas feliz. No dia seguinte, mais chuva e aquele mundo de gente de todos os cantos. Alegres, olhos brilhantes ou injetados. Na paz. Até que o primeiro acorde explodiu. Ele fechou os olhos, levantou e começou a dançar como um alucinado. Na coreografia dos passos, que só parariam na madrugada do dia seguinte, uma frase entrava entre as berradas das letras das músicas. Criação própria: "Rock na lama também sai chama". A dele era a da vida que decolaria a partir dali.

agora depois

De Roberto Prado


o poeta
quando morre
pra onde vai?

irá para a lua
onde não há ninguém
para olhá-lo?

ou para a China
chorar cantando
entre seus iguais?

sumir ou sofrer?
ninguém ou bilhões?
melhor não morrer

Renato e seus Blue Caps


terça-feira, 20 de maio de 2014

No penhasco

Disseram que ela estava lelé da cuca, fora da casinha, maluca, louca de pedra. Ele pegou um avião e se mandou para o lugar que ela foi muitos anos anos antes. Até chegar lá viajou mais um tanto de ônibus, barco e mula. A casa ficava no alto de um penhasco e só tinha uma porta. Ele bateu. Ela abriu. Os olhos continuavam luminosos, mar azul no rosto agora enrugado. Ele olhou lá no fundo e ela abriu um sorriso. Abraçou-o e disse que naquela manhã tinha pensado nele quando comeu uma esperança que apareceu no canto da mesa. Ele entrou. Só havia a mesa ali. Ela contou que também dormia em cima dela desde que teve uma visão. Ele perguntou qual. Um anjo entrou pela porta e abençoou-a dizendo que era enviado dos céus. Ele fez de conta que acreditou. Ela contou que o anjo tinha deixado uma espada para que ninguém duvidasse dela. Ele pediu para ver. Ela mostrou. Ele então fechou a porta e nunca mais saiu do lado da mãe.

na captura

De Roberto Prado

falei
até a letra
ficar grande

fiz de tudo
até figura

já me entende agora
ou ainda falta
mulher nua?