sexta-feira, 31 de outubro de 2014
quinta-feira, 30 de outubro de 2014
Nos enterros
Gostava de ir a enterros. De qualquer um. Conhecido ou não. O motivo não era mórbido. É que tentava entender porque na hora em que o caixão baixava, ou quando começavam a jogar terra em cima, ou quando uma tampa de cimento fechava a chamada última morada, sempre tinha alguém gritando “eu quero ir junto!” – ou algo parecido. Mas ninguém ia. De tanto ver isso, começou a bolar um plano para satisfazer o desejo dos vivos. Esperava o defunto ser comido pelos vermes, sequestrava a/o escandalosa/o, dopava e enterrava junto ao ente querido. Um dia morreu sua amada. No enterro ele também gritou que queria ir junto. À noite foi ao cemitério e se enterrou – para pagar os pecados.
quarta-feira, 29 de outubro de 2014
Perto do osso a carne é mais gostosa
De Paulo Leminski
Sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos a fora
calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa.
Mandacaru
O pai lhe entregou uma caixinha de madrepérola no leito de morte. Disse para ele só abrir passados dois anos do enterro. Obedeceu. Até imaginou ser alguma pedra preciosa, ou um bilhete com declaração de amor nunca foi feita. Não era nada daquilo. Um espinho grande estava acomodado sobre um veludo preto. Embaixo do pano, duas palavras: cegou Lampião. Lembrou da história que o velho sempre contava. O bandido/herói perdeu a visão de um olho por causa de um mandacaru na caatinga. Durante um tempo ele abria a caixa e olhava o espinho. Até que um dia teve uma ideia que não sabe de onde veio. Engoliu o tal acomodado dentro de um bombom Sonho de Valsa. Logo depois sentiu uma pontada. Imaginou que o espinho tenha se instalado em alguma parte do seu aparelho digestivo. Na primeira crise de raiva que teve, a dor naquele local foi imensa, parecia que estava sendo furado de dentro para fora por um punhal. E ele saiu quebrando o que lhe parecia ser inútil - de objetos a pessoas. Ficou assim durante anos, até que a dorzinha e a dorzona passaram. O espinho tinha ido embora. Pouco tempo depois a fossa da casa explodiu.
terça-feira, 28 de outubro de 2014
De cotonete
Nunca esqueceu o personagem de Agildo Ribeiro que, machão total, desmunhecava todo ao introduzir um cotonete no ouvido direito. Achava engraçado, mas ficou preocupado no dia em que ficou em frente ao espelho e fez o mesmo. O efeito foi ao contrário. Ele virou um bicho tão feio, mas com a mesma aparência humana, que a primeira coisa que fez foi esmurrar a imagem refletida, transformada então em várias com o estilhaçamento. Notou que não sentiu dor na mão - e isso o incentivou a fazer um teste com o vizinho que considerava inimigo. Apertou a campainha, o outro apareceu com cara de quem está a fim de brigar por nada. Ele imediatamente sacou um cotonete do bolso, encaixou no ouvido, girou e, quase que automaticamente, o golpe com a mão encaixou no queixo do infeliz, que desabou feito o Maguila depois do coice que tomou do Holyfield. Tirou o cotonete, voltou para casa e depois ouviu a sirene da ambulância que veio buscar a vítima. A sorte é que ninguém viu. Como gostou da experiência, saiu distribuindo porrada em skinheads, integrantes de torcidas uniformizadas, policiais torturadores, ladrões oficiais ou não. Até o dia em que foi mexer com um fiapo de gente que tomava um copo de leite numa padaria. Tinham lhe informado que era um serial killer. Ele acreditou. Ao chegar perto, colocou o cotonete e, antes da viradinha, levou um tapa bem na orelha da transformação. Uma radiografia feita horas depois mostrou a ponta do cotonete encaixada numa parte do cérebro - e sem possibilidade de ser removida sob risco de morte instantânea. Ele sobreviveu, com lucidez, mas jamais conseguiu reverter o desmunhecamento na direita e na esquerda.
segunda-feira, 27 de outubro de 2014
A cadela e as unhas
O pulmão falhou e ele foi parar na UTI. Uma semana ali, no oxigênio, ouvindo gritos de dor, vendo e sentindo a enfermeira com cara de criança passar duas horas para achar uma veia a fim de coletar sangue. Saiu e, na recuperação, começou a pedir coisas. Uma delas é que gostaria de ver e ser visto pela cadela de estimação pela internet. Ainda não se sabe qual seria o diálogo. Quis também o cortador de unhas e deu as indicações de onde encontrá-lo no armário do banheiro da suíte onde dorme sozinho, pois viúvo é. Quem foi procurar começou a rir sozinho ao ver o aparelho de metal, daqueles grandes. Estava dentro da embalagem original e, num canto, estava escrito, na primeira pessoa, que quem o tirasse daquela "casinha" de plástico transparente tinha de devolvê-lo. O enviado especial para a missão riu porque, naquele banheiro, ninguém da casa entrava, apenas o animal. Ao entregar o cortador, perguntou para o dono: "A cadela já sabe ler?" Diante do espanto do outro, completou: "Porque só ela é que entra ali e, por enquanto, ninguém viu o animal cortando as próprias unhas".
sexta-feira, 24 de outubro de 2014
quinta-feira, 23 de outubro de 2014
No filme, na mata
Os olhos do garoto olhando para o céu e morrendo lentamente encantaram. O ônibus abandonado no meio do nada, longe de tudo e de todos. Era um filme, mas baseado em vida real. Ele resolveu que faria o mesmo. Não por causa das outras pessoas. Por causa dele mesmo, que não aguentava as outras pessoas. Não houve tarja preta que o aprumasse. Resgatou a mochila de lona verde comprada anos atrás numa loja de material para militares. Não colocou nada dentro - e foi. De carona, como nos tempos de Woodstock ou, para ficar no país, de Águas Claras. Chegou a uma reserva da Mata Atlântica e se embrenhou. Claro que não iria achar um ônibus abandonado, mas depois de três dias avistou uma barraca tipo iglu no alto de um morrote. Foi até lá. A vista era linda. Ele abriu o zíper da casinha. Havia dois esqueletos abraçados. Estavam dentro de um saco de dormir. Ele encostou-os num canto e deitou ao lado. Não teve medo. Só ficou pensando em quanto tempo chegaria àquele visual. Escureceu. Uma chuva fina caiu.
quarta-feira, 22 de outubro de 2014
Musas
De Roberto Prado
anos a fio dando ouvidos
a deuses muito discretos
amigos, amigas, amiguinhos
se sou mero objeto de meus afetos
quem é aquilo sozinho que vai
tropeçando em meus versinhos
anos a fio dando ouvidos
a deuses muito discretos
amigos, amigas, amiguinhos
se sou mero objeto de meus afetos
quem é aquilo sozinho que vai
tropeçando em meus versinhos
A hora certa
Uma vez um amigo lhe disse que, às vezes, é melhor não fazer a fotografia daquilo que a alma pede, mesmo com a câmera na mão. Alguns momentos são para guardar na memória, na alma, no coração. Pensou nisso antes e durante a viagem por lugares que só via em filmes, em fotos, ou descritos nos livros que consumia vorazmente. Mas eram tantos, no curto espaço de tempo permitido pelo dinheiro, que, ao final de cada dia, anotava numa pequena caderneta o que tinha a ver com ele, o que lhe abria as portas da emoção. Voltou para casa e colocou o caderno em cima de uma estante. Nunca mais abriu. Sabia que ali estavam grafadas as palavras que iriam reabrir lugares, coisas, gentes, mas numa outra dimensão - que nem imaginava. Deixou ali, porque também tinha suas teorias, como a do amigo. Para ele, a hora certa chegaria. Ou não. Mas isso era outra história.
terça-feira, 21 de outubro de 2014
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