quinta-feira, 30 de junho de 2016
Viagem na escuridão
No último vagão do trem de carga. Estava lá o menino no meio de uma aventura que começou com a família perdendo o trem que a levaria para uma chácara de um parente. Aconteceu numa baldeação. Então surgiu a carona. Embarcaram lá atrás no começo da madrugada. O céu nublado e nenhuma réstia de luz dentro ou fora daquela serpente sobre os trilhos. O som alto da locomotiva e o chacoalhar não assustaram o garoto. Os olhos, verdes, estavam arregalados. A sensação era a de estar entrando no desconhecido e, por mais paradoxal, ele morria de medo do desconhecido. Mas ali, não! O tempo deixou de existir. Ninguém falava - e a máquina que puxava uma infinidade de vagões, rasgava a escuridão impetuosamente. Até que parou, como o previamente combinado. Todos desceram, andaram um pouco e, na porteira da chácara, estancaram ao ouvir as feras chegando. O menino então teve medo, porque os latidos eram apavorantes. O mais velho da família falou algo em tom alto. Os cães reconheceram e se acalmaram. Entraram. A casa pareceu um castelo de contos de fadas. No dia seguinte, o garoto pode ver o sol nascendo dentro do lago envolto em neblina. Aí teve certeza de que a viagem na escuridão foi apenas uma preparação para o deslumbre.
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Pança
Foi de repente. Um dia ele estava olhando uma foto onde se viu posando de sunga numa praia deserta. Corpo seco, esguio - magricela na língua venenosa dos amigos. Foi então que resolveu se olhar no espelho, só de cueca, quarenta anos depois. De frente, ainda se sentiu aliviado, apesar dos peitos flácidos. Mas de lado... Aquilo não era barriga, era uma pança que caía - e em forma de dobra na linha da cintura. Ficou triste. Pensou em como tinha chegado àquilo e só lembrou do tempo em que era viciado em hambúrguer gorduroso e muita, muita Coca-Cola. Assim é que se punia da depressão que tirava sua vontade até de respirar. O que fazer com a pança? Foi para a academia. Enganaram o bicho dizendo que em pouco tempo estaria em forma, parecendo os artistas das novelas da Globo. Passado um ano, continua na mesma - até porque não parou de comer o que gosta, ou seja, muito pão e massas, sempre com um tipo de doce nos finalmente. Pensa que ligou. Agora revela para todos que, quando vai fazer suas séries de exercícios, reclama com os professores afirmando que só vê gente cada vez mais peituda - e ele se esforça, se esforça, mas só a barriga é que aumenta.
terça-feira, 28 de junho de 2016
Bimba de boi
Durante muito tempo os assassinos do oco do nordeste, aqueles bichos ruins, aqueles que cuspiriam na cara do Tinhoso se ele aparecesse, essas pestes só temiam uma coisa se fossem pegos pela polícia: a bimba do boi. Instrumento utilizado nas masmorras das delegacias, era produzida a partir do nervo do pinto do animal. Um peso de ferro era colocado numa ponta, a outra presa num varal alto - e aí, esticado até o máximo, secava sob o sol ferrado daquelas bandas. A bimba vergava, mas nunca quebrava. E cada lambada dela cortava o tecido da roupa, a pele, a carne e, se quem batia era violento, chegava ao osso. Quem não confessava até o que não tinha feito? Às vezes a resenha saía completa só ao se mostrar a ferramenta de convencimento. Num cantinho discreto de casa eu tenho uma, cerca de metro e meio de comprimento, furada numa extremidade e com uma tira de couro para encaixar no punho para não sair na hora da pancadaria. Nunca usei. Mas já tive vontade. Principalmente de dar na boca de alguns imprestáveis. Toda vez que penso nisso, bato com a palma da mão na minha e, como fazia mamãe, peço perdão pelos pensamentos. Mas que seria bom fazer o estrago...
Penúltima
De Marcos Prado
Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem
sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem
sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
segunda-feira, 27 de junho de 2016
Não pedi
Estava morto lá nos confins e não pensava nada. Aí me chamaram - e não houve tapa na bunda. Me arrancaram com ferros e ouvi os gritos de alguém. Depois disseram que era minha mãe e que meu pai tinha ajudado a me dar vida e tirar do escuro. Que coisa esquisita! Todo mundo nasce assim, mas antes inventam uma história de cegonha que é uma ave e até hoje não sei como ela arruma aquele pano para pendurar no bico para voar carregando gente. Quer dizer que se ela passa numa zona de conflito no Oriente, baubau? Já me atrapalhei nos pensamentos. Antes não tinha nada disso. Eu não incomodava ninguém - e vice-versa. Fui para as escolas e de tudo o que aprendi, utilizei só três das operações matemáticas. Eu queria ser artista porque um dia vi um quadro do Siron Franco. Mas nem pintar o sete eu sei. Fiquei distante do mundo, ouvindo música, comendo sanduíche de queijo e salaminho com manteiga. Disseram que eu tinha de trabalhar. Reclamei no velho estilo de que eu não pedi para entrar nessa barafunda. Nem ligaram. Agora tenho de ir. Me deram um emprego no governo. Não preciso fazer nada. Ainda bem.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
Enigma
Fui procurar o hotelzinho no meio do nada naquela estrada só de retas intermináveis. Talvez por causa das piadas do Mineirinho, sei lá. Achei, na Belém-Brasília. A noite chegando, estacionei o carro, notei que não havia mais nenhum veículo, entrei e um senhor de sorriso franco me atendeu. Havia todo tipo de quarto, porque eu era o primeiro a chegar naquele dia, naquela semana, naquele mês, naquele ano. Perguntei a ele como sobrevivia. Com o rosto me apontou uma máquina encostada na parede. Parecia uma jukebox, mas não havia música ali. Ele pediu para eu apertar o botão verde. Fiz isso. Não aconteceu nada, mas imediatamente me deu uma sensação de bem estar, de dever cumprido e... uma preguiça! O senhor disse que era assim mesmo e que foi um viajante estranho que deixou o trem ali, sem cobrar nada. Ele, o dono do hotel, apertava o botão todo dia logo cedo. Há décadas. E ficou feliz, com ou sem hóspedes. Coisa estranha, mas muito boa. No outro dia eu lhe disse, antes de apertar o botão verde, que aquilo era um enigma, uma coisa enigmática, mas com certeza o inventor era certamente um vagabundo daqueles, no bom sentido. Aí eu apertei o botão. É o que faço há anos. Eu e o dono do hotelzinho na reta da Belém-Brasília.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
Grampola
Chutei a lata, como fazia no tempo em que isso não era politicamente incorreto. Dela caiu um papelzinho dobrado. Peguei a lata, coloquei numa lixeira próxima. O papel foi para o bolso. Abri quando cheguei em casa, num dia em que, como dizia meu pai, tudo estava aquela graxa. Li: "Desajustado, caminhando sem rumo num mundo desconsertado, procurando quem dê jeito. Pode? Esqueceu? Esse só volta quando o pino da grampola fuder de vez!" Gostei do pino da grampola, porque o resto era uma ladainha que, de outras formas, ouvi desde que nasci em meados do século passado. Grampola. O que seria? Gosto de palavras sonoras. Essa me lembrou Grapette, aquela que quem bebe repete. Não achei a dita no gugol. Liguei para amigos. A explicação mais lógica foi de um que disse que tal palavra deve ser sinônimo de parafuzeta. Fui dormir satisfeito. Sonhei com o pino da grampola, mas não lembro como era. Fudeu.
terça-feira, 21 de junho de 2016
Espírito de porco
O espírito de porco é tão espírito de porco que ele não sabe que é espírito de porco. A vida dele é porca a tal ponto que ele só olha para os outros torcendo para que a desgraça aconteça. Assim, vai se sentir feliz na pocilga em que vive. Conheci alguns. Espírito de porco que se preze acha que é diferenciado, como dizem sobre jogadores de futebol. Ele se dá o aval de analisar pessoas - para desejar o pior. No ambiente de trabalho acontece muito. Vi uma vez uma mulher solitária, que falava como se tivesse sentada num toco, dizer para o chefe sobre um colega: "Não falei que não era para contratar aquele drogado?" Talvez o alvo do veneno tenha escutado tal coisa enquanto estava internado, pois nunca mais voltou às catacumbas - e se tornou uma pessoa feliz, ao contrário daquela encrenca. O espírito de porco pensa no pior e, se possível, não deseja isso na cara daquele que ele acha que é vítima. Não tem coragem. O espírito de porco tenta envenenar atrás das moitas e ficar escondido. Seu destino sempre está traçado: caminha célere para morrer com a boca cheia de formiga, depois de tomar formicida com guaraná.
se tocou
De Alice Ruiz
Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou
Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou
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