sexta-feira, 30 de agosto de 2013

Angela Maria Babalu


torre

De Paulo Leminski

tão
alta
a
torre

até
seu
tombo
virou
lenda

Meleca

Se o Papa pode... Ele viu a imagem do santo Francisco. Como um criança, sem se importar com a multidão, tirou meleca do nariz, como se fosse um cirurgião meticuloso, olhou o produto e depois comeu. Salgado? O ato rendeu comentário em jornal, mas o que importava para ele o que alguém comentava sobre este ato do Papa? Na memória não lembrava ter feito aquilo no tempo em que brincava com os pés na terra. Resgatou, sim, a imagem de um moleque da turminha que tinha inovado o consumo da iguaria ao colocar amendoim na cavidade nasal - de onde tirava, com precisão, um produto caramelizado para consumo próprio. Pensou tudo isso enquanto se olhava no espelho e pensava se a produção própria de meleca com consistência média tornava-se perigosa para um senhor com mais setenta anos. Tomou coragem e tentou. O dedinho, inchado pelo peso dos anos, só conseguiu penetrar até o limite da unha. Tentou achar algo. Não conseguiu. Ficou triste. Tirou. Lavou as mãos. Olhou-se de novo. Um fio transparente estava pendurado desde a narina esquerda. Tocou com a ponta da língua. Sentiu o gosto. Não sabia se era a mesma coisa.

quinta-feira, 29 de agosto de 2013

da hora

De Paulo Leminski

  em cima
 da hora
tudo
      piora

Galopeira Chitãozinho e Xororó


A barba

O psiquiatra espetou: "Está querendo se esconder de você atrás dessa barba?" Estava internado ali há mais de um mês. A suspeita era a de que tinha saído da casinha, espanado a rosca, pirado, enfim. No pátio gigante ele já tinha contado mais de duzentos perambulando sob o sol. Não estava bem, mas a confusão mental que o levava ao poço escuro foi esquecida com a pergunta. Lembrou então que cultivava aqueles pelos no rosto desde que deu baixa do Exército. Odiava fazer a barba todo dia. Ainda mais porque se feria sempre. Medo. Sim, tinha medo de tudo, mas não tinha se tocado que... Medo dele mesmo? Passaram-se 20 anos e ele lembrava apenas que não gostara de uma foto feita dele comendo caranguejo com a barbicha toda melada. Na primeira licença foi ao barbeiro. Pediu para ficar de costas para o grande espelho. Passou máquina no cabelo, navalha na cara. Quando se viu, viu que não era aquele. Era ele. Achou que não tinha se estragado tanto assim nos 20 anos de labirintos. Sorriu. Saiu. Sentiu o sol. Voltou a falar com o doutor. Recebeu elogio. Progrediu rápido na direção da normalidade - que é verdadeiramente absurda. Hoje, de vez em quando, abre uma caixa e olha os pelos que recolheu naquele salão. Ali ficou o passado sombrio.

quarta-feira, 28 de agosto de 2013

Eduardo Araújo em Rodeio


sol e lua

De Paulo Leminski

SOL
LUA
POR QUE SÓ UM
DE CADA
              NO CÉU
              FLUTUA

O bode

O bode veio por causa do bode. Vi o bode através da cortina de renda. Fiquei ali no silêncio do campo. Ele pastava na beira do lago. Era preto. De repente, empinou. E ficou durante muito tempo apoiado nas duas patas traseiras. Depois pulou no lago e nadou de costas. Eu olhei aquilo e achei que era delírio. Fui lá perto. Não era. O bode agora nadava de peito. No fim da tarde, estrelinhas brilhavam na água. Verifiquei o lugar onde o bode pastava. Tinha o resto de uma planta. Peguei, coloquei na boca e comi. Não demorou muito e vi um pote trilhar o arco-iris. A paisagem em volta sumiu sob meus pés. Ficou a água flutuando na minha frente. Com o bode. Ou melhor, as pernas do bode. Entrei na água. Não me molhei. O bode enfiou a cabeça dentro da água e falou. Mandou eu ir dormir. Fechei os olhos. Acordei no dia seguinte deitado embaixo da cortina de renda. Levantei. Olhei para fora. O bode estava pastando naquele mesmo lugar de não sei quando. Senti uma dor de cabeça violenta. O corpo moído. Estava de bode.

terça-feira, 27 de agosto de 2013

Relógio do mar

O costume de sempre. O primeiro mergulho no mar era demorado. Abria os olhos lá embaixo e conversava com Iemanjá. Fez isso novamente e descobriu depois que o relógio não era tão à prova d'água como até então parecia ser. Todo em aço, mostrador branco, estava parecendo uma piscina redonda com ponteiros e números no fundo. Amava aquela máquina. Tinha vários botões, mas ele nunca utilizou nenhum, nem sabia para que serviam. Levou para casa e o deixou na mesa de trabalho, ao lado do telefone. Todo dia dava uma olhada para acompanhar os efeitos da água do mar. O líquido sumiu. A ferrugem apareceu e foi tomando conta de tudo. Ele passou a usar o relógio que não marcava mais horas, mas mostrava aos amigos como se fosse uma peça rara. Nunca lhe perguntaram porque os ponteiros eram imóveis. Onze horas e dezoito minutos. Foi numa quinta-feira que, exatamente nessa hora, ela apareceu na tela do computador. E tudo parou. E ele ouviu a ordem na rainha. Depois que as coisas voltaram ao normal, inclusive o reloginho da internet, ele saiu de casa, entrou no carro e percorreu alguns quilômetros para jogar o relógio no mar.

Silvana e Rinaldo Calheiros



litogravura

De Paulo Leminski

   Mão de estátua.
Templo. Coluna. Arco do Triunfo.
   Mil duzentos e cinquenta.
Qualquer pedra na Europa
   é suspeita de ser
mais do que aparenta.

   Felizes as pedras da minha terra
que nunca foram senão pedras.
   Pedras, a lua esfria
e o sol esquenta.

segunda-feira, 26 de agosto de 2013

Alaíde Costa na Estrada do Sertão


poesia: 1970

De Paulo Leminski

Tudo o que eu faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o máximo.

Mal rabisco,
não dá mais para mudar nada.
Já é um clássico.

Lenço na cabeça

De repente, na paisagem árida da rua com asfalto esburacado e casas sem jardins ou árvores, o lenço colorido na cabeça daquela mulher chamou atenção. Tinha estampas indefinidas, mas de cores com uma combinação tão forte que era impossível não olhar. Então, para ele, o resto sumiu e o lenço ficou, mas cada vez se distanciando mais. Mastigou o último pedaço de pão, limpou a boca com as costas da mão direita e saiu correndo na direção dele. Não sabia o motivo, mas foi. A dona do lenço apertou o passo. Ele, mais ainda. Quando estava a cinco metros do objetivo, inebriado pelas cores, sentiu um pingo de chuva no rosto. Logo depois, o temporal desabou. Por um instante ele perdeu de vista o lenço. Quando conseguiu ver a mulher... nada na cabeça dela, apenas cabelos molhados. Ele a alcançou. Era muito bonita. Tinha olhos verdes, boca carnuda. Ele perguntou sobre o lenço. Ela disse que a chuva tinha desmanchado. Era de papel.

sábado, 24 de agosto de 2013

sexta-feira, 23 de agosto de 2013

saudosa amnésia

De Paulo Leminski

a um amigo que perdeu a memória

   Memória é coisa recente.
Até ontem, quem lembrava?
   A coisa veio antes,
ou, antes, foi a palavra?
   Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde.
   Nuvens, são sempre brancas.
O mar? Continua verde.

Jaqueira

O pé de pau estava lá, a uns 40 metros. Penduradas, algumas jacas. Ele ficou olhando aquilo durante algum tempo, embaixo de uma sombra, e então decidiu: "Manda derrubá". Quem estava do lado pareceu ouvir o estampido de um tiro, igual aquele que um outro parente deu ali mesmo, tentando acertar uma manga rosa ainda verde. O cenário não era de alegria como na Mangueira. E o som remeteu ao passado, quando ali naquele quase descampado havia mata e agora era só um pé de pau com plantações de mandioca em volta. Então saiu um "não" sem querer querendo da boca dele. Quem estava ao seu lado era o pai, o dono da terra, o herdeiro cuja ordem era sagrada. O olhar que recebeu era forte, daquele que lhe dava medo quando criança, mas ele segurou, porque também tinha esse olhar. Ouviu então o pai recuar, pela primeira vez na vida. A jaqueira seria mantida. Antes de partir lhe foi servida a fruta. Era mole.

Jacinto Silva Vontade de Comer Goiaba e homenagem a Jackson do Pandeiro