terça-feira, 30 de setembro de 2014

O tempo

De Nilson Monteiro


O tempo
enfiou-me o cansaço
das bíblias e dos ídolos
sob as retinas.
Cristalizou-me a esperança
e volatizou-me o medo
costurando o amor
e o ódio
no rebanho de luas.
O tempo
deu-me filhos
amigos, inimgos,
pessoas que rondaram meu coração
como lobos
como cordeiros
ou ainda como
companheiros
O tempo negou-me paz e pressa
rabiscou-me rugas e cicatrizes
soprou-me alegrias e tristezas
dependurou-me sobre a vida
O tempo enxergou-me
espiando pelas lascas das teorias
e metendo o dedo em feridas
encharcadas nos bairros
O tempo
deu-me cabelos brancos
e paciência.
Deu-me
a certeza da dúvida
como motor do mundo.

Trio Parada Dura e Homem de Pedra


Família ladra

Era uma casa nada engraçada. Tinha tudo. Até uma geladeira de R$ 60 mil. Podre de rica a família. Ladra. Desde os tempos dos corsários. Manter a tradição não era problema. Todos os integrantes do clã aprendiam por osmose, ou melhor, nasciam assim. Teve até o caso do bebê que surrupiou a tesoura que lhe cortou o cordão umbilical. Ele guarda até hoje o fruto do furto. Baita troféu! Mas aquele outro menino de pele alva e cabelos encaracolados não tinha nada a ver com aquilo tudo. Alguns desconfiavam até que tinha sido adotado. Não era. Mas a honestidade chegou ali e parou! Tanto que sofria mesmo sem saber a que tipo de família pertencia. Inventavam histórias para justificar a dinheirama que entrava diariamente. Grana viva, na maioria das vezes. Um dia ele comunicou que ia embora. E foi. Era adolescente. Não deu mais notícias. Anos depois apareceu na capa de uma revista internacional como o novo magnata do planeta. Um gênio das finanças. Tinha resolvido ser banqueiro. A família ficou muito feliz.

segunda-feira, 29 de setembro de 2014

Rio do mistério

De Paulo Leminski

Rio do mistério 
que seria de mim 
se me levassem a sério?

Escatológica

Escatologia era com ele mesmo. Gostava de ouvir piadas, histórias. Adorava falar os nomes. Até elevava o tom como se aquilo fosse mesmo para chocar ouvidos alheios. Vibrou quando um amigo lhe apontou uma mocinha linda, parecendo um bibelô, e disse que no banheiro ela ia para fazer quibinho, não mais que isso. Ou na cena do filme do Woody Allen, quando a irmã do personagem disse, depois de um encontro que não fazia há anos, que o sujeito a tinha amarrado nua e feito entre os seios dela. Mas um dia leu o conto do Rubem Fonseca em que o casal, que se amava desde os tempos de criança, estava em crise e a paixão só voltou depois que o homem, sem querer, viu o que a mulher tinha feito e esquecido de dar a descarga num banheiro químico durante uma excursão de ricos. Aí ele sentiu uma força tão grande que nunca mais quis saber de histórias a respeito - e evitava ao máximo ir ao banheiro. Tinha medo de se apaixonar por si mesmo.

Pedro Bento e Zé da Estrada e o Seresteiro da Lua


quinta-feira, 25 de setembro de 2014

Penúltima

De Marcos Prado
    Como posso agora estar alegre? 
    era de se esperar que eu desesperasse 
    talvez mais tarde eu desintegre 
    entre o penúltimo gole do último porre 
    e leve ao meu lado os que me seguem sim, 
    perdi a razão do que eu achava e do que eu acho, 
    mas aprendi que o céu é mais embaixo 
    ainda não sei o quanto dei 
    a tantas quantas amei 
    ainda não sei ao certo se eu errei 

Nossa Senhora Aparecida

Nas águas barrentas mergulhou. Mas isso foi depois de muitas pesquisas, que lhe tomaram anos e anos da vida. Encanou. Era o termo que usava fora do convívio da igreja, onde foi coroinha dedicado. A santa um dia apareceu em sua vida. Lembra apenas do deslumbramento pela cor da pele. Negra. E do manto. Azul com bordados dourados. Foi na primeira excursão à velha catedral. Depois construíram uma gigantesca, mas ele sempre foi rezar na antiga. O local do mergulho foi determinado por computador. Entrou na água exatamente onde ele mesmo determinou que ali a santa tinha sido encontrada. Quase não via nada. Foi até a lama do fundo e ficou a observar, apesar da correnteza forte do rio. Algo cintilou. Não se perguntou como. Esticou o braço, enfiou a mão e tirou aquilo que não conseguia distinguir. Subiu. Entrou no barco. Colocou o que trouxe dentro de um aquário. Trocou a água duas, três vezes. A lama dissipou. Achou uma aliança. Era de ouro. Tinha algo escrito por dentro. Leu: "Protegido". A achado coube em um de seus dedos. Ele então descansou de tudo.

Quinteto Violado Peba na Pimenta


quarta-feira, 24 de setembro de 2014

Sob medida

O neto foi logo dizendo que os móveis do casarão antigo não caberiam no apartamento que ela passaria a morar pouco tempo depois da morte do marido. Nem deu bola. O imóvel era dele, mas ela pagaria aluguel com a pensão - e não queria abrir mão de nada, principalmente do piano onde tocava as músicas que um dia apresentou em alguns palcos do interior do Paraná. Foi ver o novo espaço. Ficava no andar acima do neto cuidadoso. Ela entrou, olhou os cômodos e, aí, como se tivesse memorizado o tamanho do que queria trazer, começou a medição - em palmos, para espanto do jovem que a olhava sem acreditar no que via. Ao final, disse: "Podemos trazer tudo. Cabe direitinho". Batatolina. Uma semana depois da mudança, fez uma festa de aniversário para comemorar 88 anos bem vividos.

Martinha Eu Daria a Minha Vida


terça-feira, 23 de setembro de 2014

Máximo

De Paulo Leminski


Tudo o que eu faço
alguém em mim que eu desprezo
sempre acha o máximo.

Elizeth Cardoso Última Forma


Puta da Visconde

Por que fizeram isso com a gente? Tivemos nossos dias de glória como atrações nos mais ricos puteiros da cidade. Os tubarões, os donos dos Três Poderes, todos entravam ali sorrindo e saíam flutuando para continuar a vidinha chata ao lado das esposas. Tudo passa, nada ficará, como cantava o Nelson Ned. Sim, fomos decaindo, chegamos à Rua Riachuelo e, depois, aqui, na Visconde de Guarapuava, onde havia um hotel/casa que nos abrigava durante o expediente e depois. Velhas, gordas, pegávamos qualquer um que pudesse pagar uma miséria pelo programa que nos rendia a refeição do dia. Derrubaram nossa casa. Estamos na rua, literalmente. Mamãe dizia que ser puta só rende quando um bacana se apaixona e casa. A maioria, contudo, termina como nós. Não há retiro para putas. Agora temos que dormir em abrigos, mas não dá para levar para lá nossos clientes, cada vez mais raros, cada vez mais pobres. Pelo menos se alguém me pagasse uma passagem de ônibus para Quixeramobim... Lá tenho um parente. E ninguém vai ler meu passado nas rugas do meu rosto, nas minhas varizes e no meu corpo deformado.

segunda-feira, 22 de setembro de 2014

Seda

De Paulo Leminski

cortinas de seda
o vento entra
sem pedir licença



Hora de morrer

Vou morrer. Olhei no fundo do cano do revólver apontado na minha direção a menos de cinco metros. Ao lado, a cabeça da bala do trezoitão que iria me matar quando o sujeito apertasse o gatilho e o tambor girasse. Por que tinha feito aquela bobagem de encrencar com bandido de vila? A festa estava mais ou menos, o vagabundo escasquetou que eu tinha olhado para a mina dele. Eu não tinha olhado nem para outra que estava perto - e era mais bonita. Vi isso de soslaio. Não gosto de treta. Mas aí ele veio pra cima e eu peitei. Ele se afastou e tirou o berro que estava atrás, enganchado no cinto. Parei. Ele parou e apertou o gatilho. Não houve explosão. Não houve nada. Pularam em cima do marginal e eu saí correndo alucinadamente. O coração na boca. Ainda bem que até as balas no Brasil não funcionam.

O Terço


quinta-feira, 18 de setembro de 2014

Que volte

De Paulo Leminski

Vida e morte 
amor e dúvida 
dor e sorte 
quem for louco que volte.