segunda-feira, 30 de novembro de 2015

CANTARES DE SULAMITA

De Dalton Trevisan


Cantar 1

Se você não me agarrar todinha
aqui agora mesmo
só me resta morrer

se não abrir minha blusa
violento e carinhoso
me sugar o biquinho dos seios
por certo hei de morrer

estou certa perdidamente certa
se não me der uns bofetões estalados
não morder meus lábios
não me xingar de puta
já hei de morrer

bata morda xingue por favor
morrerei querido morrerei
se você não deslizar a mão direita
sob a minha calcinha
murmurando gentilmente palavras porcas

sem dúvida hei de morrer
também certa a minha morte
se você não acariciar o meu púbis de Vênus
com o terceiro quirodáctilo
já caio morta de costas
defuntinha
toda morta de morte matada

morrerei gemendo chorando se você titilar
a pérola na concha bivalve
morrerei na fogueira aos gritos
se não o fizer

amado meu escuta
se você não me ninar com cafuné
me fungar no cangote
mordiscar as bochechas da nalga
me lamber o mindinho do pé esquerdo
juro que hei de morrer
certo é o meu fim

te peço te suplico
meu macho meu rei meu cafetão
eu faço tudo o que você mandar
até o que a putinha de rua tem vergonha

eu fico toda nua
de joelho descabelada na tua cama
eu fico bem rampeira
ao gazeio da tua flauta de mel
eu fico toda louca
aos golpes certeiros do teu ferrão de fogo
ereto duro mortal
oh meu santinho meu puto meu bem-querido
se você não me estuprar
agora agorinha mesmo
sem falta hei de morrer

se não me currar
em todas as posições indecentes
desde o cabelo até a unha do pé
taradão como só você
é certo que faleci me finei
todinha morta

se não me crucificar
entre beijos orgasmos tabefes
só me cabe morrer
minha morte é fatal
de sete mortes morrida
morrinha de amor é Sulamita

Sivuca


Aposentadoria

Trabalhou mais de quarenta anos e, como era relaxado, em alguns empregos fez acordo de boca e não contribuiu para a chamada previdência. Pensava que teria saúde e emprego toda a vida. Coisa de louco. Um dia se tocou - e foi atrás dos seus direitos, como falam. Sempre ganhou bem, mas ao contratar um especialista para levantar o histórico de contribuições e fazer projeções, descobriu que teria de camelar mais alguns anos, pagar uma fortuna para ter direito a uma aposentadoria - e que ela seria de um salário mínimo, ou seja, o que poderia gastar numa pequena viagem até o litoral do estado onde morava. Mesmo assim, ficou feliz. Porque recebia tanta notícia ruim e também tanto desprezo no meio onde exercia a profissão, que projetou seu futuro negro para logo ali adiante, ou seja, bem antes de poder receber os caraminguás. Estava ferrado e mal pago. Por isso imaginou que o dinheiro que um dia entraria na conta vinda dos cofres do governo federal daria, sim, para comprar uma boa dose de veneno de rato. 

quinta-feira, 26 de novembro de 2015

caricatura

De Paulo Leminski

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Gal Costa, Zeca Baleiro Flor da Pele


Dois patinhos na lagoa

Vamos espalhar lindas pétalas por meio de boas palavras. Olhei em cima da geladeira e, ao lado dos dois pinguins, um preto e o outro branco, o calendário marcava um dia do mês em números vermelhos - a frase, embaixo. Dois patinhos na lagoa, logo lembrei. Era a cantada da pedra da tômbola, como chamávamos naquele tempo - e isso fazia vibrar toda aquela vizinhança que se reunia no fundo de um quintal onde havia várias casas. Não, não era cortiço. Ali morava uma grande família. Pétalas na lembrança. Como é bom! Recordar feito em Amarcord, o grande filme. Cada um tem o seu script. Eu olhei o 22 e comecei a escrevê-lo. Vi até a cartela aqui na minha frente, com o verde e branco das casas. Coloquei o feijão em cima. Não ganhei nada. Ganhei tudo. Porque olhei para o calendário que parou no tempo. 

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

Escrito a Sangue

De Ademir Assunção


ruas escuras 
atravessado 
eu atravesso 
reviro o avesso 
nele me meço 
olho de lince 
encaro a face da fera 
espelhos se estilhaçam 
rasgam minha cara 
cai a neblina do vazio 
frio na barriga 
pago o preço 
erva bola cogumelo 
volto ao começo 
escapo com vida 
desconverso 
verso escrito a sangue 
desapareço 
quanto mais 
menos 
me pareço 
eco de bicho homem 
ego sem endereço 

Gonzaguinha Sangrando


Na cabeça

Tá, foi um sonho, mas... e daí? De repente estava numa festa do político poderoso e que fala bonito. Era numa cobertura de dois mil metros quadrados e o povo que estava lá parecia ter sido treinado para falar baixinho. Eu não conhecia ninguém, só o anfitrião - e da televisão, jornais, campanhas, essas coisas. A coisa ali era estranha porque não havia música e como todo mundo falava baixinho, se colocassem um caixão com cadáver ali no meio da sala com piso de mármore, o velório ficaria perfeito. O dono da casa não se misturava. Dava para ver ele no terraço, olhando a cidade iluminada. De vez em quando se virava e dava um sorriso forçado. Não me serviram nada - nem água. De repente todos resolveram ir embora e eu fiquei sozinho. Quando tentei sair, apareceu o político. Agradeceu minha presença, esticou a mão, notei uma aliança de brilhantes e, ao voltar o olhar para o rosto dele, notei que ele estava de bobes na cabeça e um lenço amarrado em volta, como uma Maria da Vila. Parecia a coisa mais normal do mundo. E era. Um sonho. No outro dia dei de cara com ele na vida real, numa foto de jornal. Olhei bem para os cabelos.

terça-feira, 24 de novembro de 2015

No chão úmido da rua deserta

Uma pasta que alguém (Deus?) espremeu numa rua deserta. Essa massa disforme espalhada no chão sempre úmido tem todos os sentidos dos que se consideram humanos, mas está ali, inerte, abandonada no tempo. Nem os bichos que raramente passam perto se interessam. Seria bom ser devorado por ratos, urubus, baratas - apenas para que tudo acabasse de vez. Mas... uma coisa assim, morre? E o que se sente é vida? Passos se aproximam. Vai esmagar!... O que aconteceu? Agora é mais um a aumentar o que não tem explicação.

Poetas velhos

De Paulo Leminski

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.

João Donato Bananeira


segunda-feira, 23 de novembro de 2015

Ao dobrar a esquina

Na noite de garoa, ao dobrar uma esquina, os faróis do carro flagraram o senhor vestido todo de preto, carregando dois sacos de supermercado brancos pela calçada. No rápido instante em que eles chamaram atenção, junto vieram os questionamentos que parecem brotar do nada. Quem seria ele? O que tinha comprado para levar para casa? Família esperando ou mais um solitário na cidade grande? Os braços estavam completamente esticados. Parecia que as compras eram pesadas. Batatas? Uma garrafa de vinho barato? Material de limpeza? Alguém buzinou atrás e o pé comprimiu o acelerador. O homem ficou para trás, mas a imagem, não. Os sacos plásticos não tinham propaganda. Eram lisos e, naquele instante, luminosos, por causa da luz forte que os flagrou flanando ao lado da avenida e levados por mais um sem rosto. Quem colocou nos sacos as mercadorias depois de contabilizados os produtos pelo caixa? Idoso? A chuva apertou. O limpador do para-brisa, lento e barulhento. Ainda bem que logo estarei em casa. No porta-malas, as compras do dia. Dentro de sacos plásticos.

aranha

De Sérgio Rubens Sossélla

a aranha se fingiu
de presa
na teia


Oswaldinho do Acordeon Asa Branca Blues


quinta-feira, 19 de novembro de 2015

Sintonia para pressa e presságio

De Paulo Leminski


Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Dick Farney Alguém como tu


Não vivo sem!

Foi numa curva da Transamazônica que me toquei. Estava viajando há algum tempo, sozinho, no jipão 4x4 - e nada da musiquinha tocar. Aquela que escolhi quando comprei o tal numa loja de shopping bacana. Encostei e revirei tudo. Nada. Comecei a ficar agoniado. O que seria de mim sem ele? Ouvi um rugido estranho ali perto. Vinha de dentro do paredão verde da floresta. Tô nem aí. E se aparecer um bicho? Como vou fazer? A fissura aumentou tanto que comecei a delirar. Eu quero! Eu quero! Gritei tão alto que juro ter visto uma arara se espantar. Entrei no carro e pisei fundo. Quatro dias depois, sem comer, cheguei a uma cidade grande e tratei de voar de volta para casa. Esbaforido, abri a porta como quem abre a do paraíso. Achei a maquininha em cima da mesa. Bateria cheia. Apertei os botões. Não havia nenhuma ligação para mim. Nem recado. Nada. Mas meu telefone celular estava juntinho do meu corpo. Como é bom!