quinta-feira, 30 de janeiro de 2014

A mensagem

O velho começou a respirar de forma descompassada e ofegante no leito da enfermaria do hospital perdido no meio do nada. Ergueu o braço esquálido e chamou o filho que estava sentado numa cadeira ao seu lado. Os olhos de todos os outros doentes seguiram o movimento do rapaz encostando o rosto perto da boca murcha do pai. Este falou alguma coisa e depois foi retirado dali pelos enfermeiros sob ordem de um médico de jaleco sujo. Para ninguém ver a morte chegar. O filho ficou estático, olhar perdido, retendo as lágrimas que derramaria mais tarde, em casa, quando recebeu a notícia fatal. Os outros doentes pensaram uma só coisa: que diabos o velhote tinha falado para o filho? Entre o hospital e o casa, que distava uns quatro quarteirões, o jovem foi andando como se passeasse por uma alameda em Marte. Pensava só na mensagem que tinha ouvido perfeitamente. Ao chegar, abriu o portão e um irmão lhe perguntou: "E aí?". Ele então respondeu: "Quem comprar a paca cara paca cara pagará; pagará a paca cara quem paca cara comprar".

me queima

De Paulo Leminski

   A quem me queima
e, queimando, reina,
   valha esta teima.
Um dia, melhor me queira.

Miltinho Mulher de 30


quarta-feira, 29 de janeiro de 2014

Parabólica no inferno

A um dia de viagem entre Manaus e Belém pelo rio Amazonas, ele desligou o motor do barco e achou que estava tendo um delírio naquela imensidão. Na faixa verde da floresta um barraco de madeira, cinza, se destacava. Mais que a solidão daquela casa, o que chamava atenção era uma enorme antena parabólica branca encravada bem ao lado, com bocarra aberta na direção do espaço. Ele então foi até lá, encostou a embarcação num barranco e caminhou até a porta da frente. Estava fechada, assim como as janelas e as outras portas. Bateu palmas, socou a madeira, gritou. Nada. De repente ouviu um rangido e a porta se abriu vagarosamente. Ele entrou com o coração aos pulos. Tudo estava escuro, menos um dos cômodos, onde uma luz tênue tremelicava. Ali havia apenas uma poltrona onde viu o tampo grisalho da cabeça de alguém e, na frente dele, um aparelho de tv ligado. Um braço se levantou e pediu para ele chegar mais perto. Obedeceu. Era um homem com a pele tão enrugada que era difícil distinguir os traços do rosto. O velho pediu para ele sentar ao lado. A voz era um fiapo de som - mas rouca. Ele sentou. De repente o homem apontou para a tela e disse: "Viciei nisso há muito tempo. Não durmo mais. Tudo que passa aí para mim é fantasia. Substitui o sonho, seja bom ou pesadelo. Acho que isso é coisa do Diabo - e com o Cramunhão não se pode lutar".

eremita

De Paulo Leminski

   Esta vida de eremita
é, às vezes, bem vazia.
   Às vezes, tem visita.
Às vezes, apenas esfria.

Eduardo Araujo O Bom


terça-feira, 28 de janeiro de 2014

Cano fumegante

Os pais saíram para a missa. Ele arrastou uma cadeira, subiu e conseguiu pegar a caixa retangular que tanto queria. Pesada. Desceu, sentou na cama e abriu-a. Estava lá: cabo marrom, corpo de aço negro, tambor cheio de balas. Pegou. Era igual aos que via nos filmes da tv cuspindo fogo e soltando fumaça. Aiô Silver! Ele saiu dali no cavalo imaginário e foi em busca do irmão mais novo. Chegou apontando o cano na direção do peito do menino, que se assustou e saiu correndo. Foi atrás, como numa perseguição feita por Richard Widmark pelas vielas das cidades em preto e branco. Apontava e fazia com a boca o som do estampido. Aprendera nas brincadeiras de mocinho e bandido nas ruas da vila. O dedo coçando para ir ao gatilho e apertar. O coração só subiria para a boca anos depois - e toda vez que lembrava da cena. Foi o anjo do quadro pregado na parede em cima da cama que o fez parar, voltar para o quarto dos velhos, guardar a arma na caixa e colocá-la no lugar? Dias depois repetiu o ataque à pau de fogo. Só que desta vez apertou o gatilho. A bala arrancou uma lasca do pé de uma pequena mesa. Ele não viu fogo. Viu a fumaça. E o pânico entrou para sempre na sua alma. Substituiu a bala no tambor. Jogou a cápsula num córrego podre. Fechou a aquela caixa para sempre. Muitos anos mais tarde voltou a atirar. Mas como um profissional. Sem medo ou remorso. Porque o Colt era dele. E com silenciador.

na sombra

De Paulo Leminski

   isso sim me assombra e deslumbra
como é que o som penetra na sombra
   e a pena sai da penumbra?

Alvarenga e Ranchinho Romance de uma Caveira


segunda-feira, 27 de janeiro de 2014

Para o santo

Pediu uma dose, olhou o líquido contra a luz da lâmpada toda salpicada de bosta de mosca, jogou o do santo no pé do balcão e, quando ia beber tudo num gole só, como sempre fazia, ouviu uma voz que parecia sair ao lado do bico do sapato surrado: "Só isso? Quero mais!" Era a primeira que tomava no dia, depois de camelar na obra que ficava a pouco mais de um quarteirão da porta do boteco. Ele tentou repetir o gesto que fazia há anos, ou seja, de virar a mardita cachaça de uma só vez, para depois fazer uma careta, limpar a boca com as costas da mão e finalizar o ritual cuspindo no chão perto de onde a oferenda tinha caído. Mas a voz falou mais alto - e ele parou. Colocou o copo no balcão, se agachou e perguntou baixinho, pra ninguém pensar que estava pinel: "Que porra é essa?" A voz respondeu que era o santo que gostava de pinga - e queria mais. Ele então perguntou o motivo. "Eu era santo. Não sou mais. Agora sou bêbado e fui expulso do time. Estou perdido e com sede. Manda mais uma e pare de me encher o saco". Ele então pegou o copo, despejou tudo de uma só vez no mesmo lugar de onde parecia sair a ordem, e foi embora. Nunca mais bebeu.

de cima

De Paulo Leminski

a chuva vem de cima

correm
como se viesse atrás

Anima Zé Renato e Milton Nascimento


sexta-feira, 24 de janeiro de 2014

Calendário

O sol inclemente derreteu o calendário da minha cabeça. Hoje foi ontem e nunca será depois de amanhã.

quinta-feira, 23 de janeiro de 2014

O leque

Ele tirou um leque do bolso interno do paletó, abriu e colocou na frente do rosto, deixando espaço só para os olhos azuis claros e límpidos. Estava no salão que antecede a entrada do grande teatro. Todos os olhares voltaram-se para ele. O que fez, então? Deu uma abanadinha e foi procurar seu camarote. Ficou ali durante todo o espetáculo sem mexer um milímetro da posição do leque. Se ninguém o tinha notado antes de abri-lo, agora já não importava mais se o que era apresentado no palco era balé, ópera ou concerto sinfônico. A platéia toda só tinha olhos para ele. Antes de as luzes se acenderem, saiu e se colocou numa posição estratégica para que o público desse de frente com ele ao se retirar. Todos o viram. E pararam. Pareciam hipnotizados. Então, ele fechou o leque, guardou no bolso de onde o tinha tirado, e abriu um sorriso que ninguém jamais esqueceu. Porque sem dentes.

susto

De Paulo Leminski

   Fruto suspenso
a que susto
   pertenço?

Chico Buarque e Sivuca e João e Maria


quarta-feira, 22 de janeiro de 2014

A voz que manda

A primeira vez que ouviu a voz ele achou que era porque tinha acabado de acordar no meio da madrugada. Ela era doce, mas ele não sabia distinguir se masculina ou feminina. Dormiu e, quando acordou, passou a ouvir direto as ordens. Sim, eram ordens de como agir naquele momento. Iam de uma recomendação de como tratar o filho problema, residente em outro país, ao que escolher entre os pratos colocados à mesa. Incluía também a hora de fazer sexo com a mulher amada. Ele gostou daquilo tudo porque, como diziam às suas costas, era um encolhido, um tímido, um sem ação que se atrapalhava todo em qualquer situação onde tinha de tomar decisão. A partir daí ele se transformou no fodão, apesar da idade avançada. Ninguém entendeu a brusca mudança. Ficou tão cheio de si que até a leve corcunda despareceu. Isso durou alguns anos, até o dia em que, numa praia do litoral nordestino, mergulhou no mar verde e, ao sair para respirar, tomou pela proa uma onda gigantesca. O pacote arrancou os aparelhos de surdez e as pilhas que ele nunca mais trocara. Ele comprou outros aparelhos, do mesmo modelo, etc, mas de nada adiantou. Voltou a ser medíocre, mas pelo menos tinha boas lembranças para sobreviver.

lesma feliz

De Paulo Leminski

   feliz a lesma de maio
um dia de chuva
   como presente de aniversário

Joel Nascimento Noites Cariocas