sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

É carnaval

É carnaval, é hora de sambar
Peço licença, ao sofrimento, 
Depois eu volto pro meu lugar.

 (Batatinha)

quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014

no chão

De Paulo Leminski

   de colchão em colchão
chego à conclusão
   meu lar é no chão

Frevo Rasgado Paco De Lucia & John McLaughlin


Tiros para decifrar

O professor apresentou um desenho com algumas marcas, um corpo caído no chão, alguém do lado, sentado, os dois furados de bala, etc. Deu os calibres dos cartuchos encontrados e as armas usadas. Explicou que a casa era de um traficante, um dos personagens fugiu e na cena também havia um policial que deu um tiro de fora da casa, pela janela. Pediu para que estudassem tudo e explicassem o que teria acontecido ali. A menina olhou aquilo, pesquisou as armas, como as cápsulas saíam das automáticas depois de deflagradas, enfim, fez o trabalho técnico e partiu para a elaboração da tese. Em tempo: o corpo que estava morto tinha a cabeça furada por três balaços mas, antes, tentaram enforcá-lo. O ferido que estava ao seu levou dois tiros e estava vivo quando a polícia chegou. Na véspera de entregar o trabalho, a estudante fundiu a cuca, se ajoelhou e pediu ajuda. Qualquer uma, para escrever em 1.500 palavras sua teoria. Dormiu assim. Acordou e o texto estava escrito com o melhor do inglês. Ela frequentava, como visitante, uma universidade no país de Shakespeare. Não havia assinatura, mas ao lado, dois livros que nunca tinha visto antes estavam autografados por Raymond Chandler e Dashiell Hammett.

terça-feira, 25 de fevereiro de 2014

Rico e mijado

Me levaram para ver o homem mais rico da família. Ele morava numa casa caindo aos pedaços. A mulher dele parecia saída de um conto de fadas - ela era a bruxa, de tão acabada, coitada. Em volta do casebre as terras dele eram imensas, tanto que não se enxergavam os limites para qualquer lado que se olhava. E havia gado, muito gado. Ele tinha os olhos de um verde-mar impressionantes. Barba por fazer, um chapéu de couro bem velho, uma camisa desbotada e sem botões, e uma calça de pijama do tempo da guerra da Coréia. Estava todo mijado. Nunca tinha ido à cidade para se consultar com médicos. Não acreditava nisso. Para se curar de qualquer dor, tomava garrafadas de uma curandeira da região. Seu prazer era olhar o que tinha. Era o mais avarento de toda sua raça. Quando morreu, anos mais tarde, os filhos destruíram em pouco tempo todo o patrimônio. Mas enquanto ele estava vivo, tudo aquilo era dele - e era isso que o sustentava.

deslumbramento

De Paulo Leminski

   isso sim me assombra e deslumbra
como é que o som penetra na sombra
   e a pena sai da penumbra?

Trio Nordestino


segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014

lua

De Paulo Leminski

lua à vista
brilhavas assim
sobre auschwitz?

Devagar, devagarinho, Martinho da Vila


Coca na madruga

Fatal. Acordava no meio da noite com aquela vontade corroendo a alma. Tentava ficar pregado na cama. Impossível. Tateava no escuro e andava devagar porque o piso antigo de madeira fazia barulho e poderia acordar a mulher. Abria a geladeira. A luz ofuscava os olhos. Ele então abria a garrafa e virava no bico, tomando tudo num gole só. O líquido descia rasgando suavemente a garganta. Era aquilo que o fazia delirar. Quando não encontrava a garrafa no lugar de sempre, saía de casa no meio da madrugada e rodava a cidade a te procurar - e sempre a encontrar. Coca! Coca-Cola! Era capaz de derrubar dois litros de uma vez. Depois... bem, depois era depois. A barriga cheia, os arrotos sonoros cortando o silêncio, tudo era nada diante daqueles momentos fugazes de prazer. Até que um dia parou de beber, porque a coisa estava ficando complicada. Foram três anos até a recaída. Quando tomou de novo sentiu um gosto horrível, como se tivesse engolido um xarope de punição. Foi o suficiente para deixar de lado o refrigerante que vendem como se fosse a razão de viver. Agora, toda vez que olha aquelas montanhas de garrafas gigantes no supermercado, ele ri e vai direto comprar água mineral com gás - porque sem as bolinhas não tem graça.

sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014

Parei

Parei na sexta-feira depois das aulas do quarto ano primário. Me recuso a acompanhar o tempo.

quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014

Ao volante

Quantos eu poderia ter matado? Não lembro. Porque muitas vezes cheguei em casa sem saber como. Dirigindo. O possante era branco. Trafegava como um fantasma na madrugada. Se tivesse cheiro, além do da fumaça poluente, seria o da morte. Subiu barrancos, caiu em valetas, perdeu uma roda andando, atravessou sinais vermelhos, morreu num poste depois que o piloto, eu mesmo, saí do último boteco da via-sacra daquela noite. Era a Toca - e só não fui direto para o túmulo porque... Há um deus, santo protetor, anjo, nisso? Eu sabia e não sabia o que poderia acontecer. Quem bebe para morrer da vida presente não pensa nessas coisas. Nem nos outros, os que não matei e os que vejo morrer assassinados por bêbados de toda espécie. Esses loucos não sabem que são assim de nascença, no bom sentido, e que não precisam de nenhuma gota de álcool para alucinar sem colocar em risco existências, inclusive a própria. Hoje meu coração aperta quando penso em tudo que fiz. Ao mesmo tempo fico alegre porque não matei. E não morri. Deve ser porque era preciso contar para alguém, antes que este se transforme em assassino.

A Felicidade Silvinha Telles


o que?

De Paulo Leminski

       lá dentro
o que é que tem
   que aqui fora
não tem ninguém?

quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014

barro

De Paulo Leminski

o barro
toma a forma
que você quiser

você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer

Comemoração de velho

Estava velho, mas não cansado. Próstata inchada, mas sem o bichinho do ran ran. Fazia dois mil xixis por dia. Alguns na cueca, calça, calção, bermuda. O pior é que, com o tempo, tinha dificuldades de expelir o líquido. Aí, forçava - e junto saía um pum. Isso virou rotina. Em casa não tinha problema, mas em outros locais, com banheiros coletivos, sofria feito um condenado na manobra de forçar na frente sem soltar atrás. Decadência. Ainda não se acostumara a ser chamado de senhor, apesar da vasta cabeleira branca. Durante um tempo, chegava a brigar e inventar que pintava os cabelos de branco para parecer mais velho. Ria de si mesmo. Agora, chorava escondido. Não, não pensava na morte porque tinha certeza de que ela é igual ao antes de nascer. Sim, tinha cumprido à risca parte da definição de alguém que não lembrava mais (outro problema normal), que resumia assim a existência humana: nascer, foder e morrer. Mas imaginava que queimaria lenha até os cem anos, se nenhuma tragédia acontecesse. Por isso, começou a pensar para trás, no que tinha feito. Aí ficou feliz, de repente, pois o que lhe vinha na memória eram só os capítulos bons. Dito isso, foi ao banheiro. Fez xixi e soltou um poderoso. Em comemoração.

Amei Francisco Alves


terça-feira, 18 de fevereiro de 2014

Loucuras de loucos

Ele estava acuado no canto de uma salinha. Babava, mas o mais impressionante eram os olhos - esbugalhados. Segurava uma cadeira acima da cabeça. Se chegassem perto, gritava que ia rachar a cabeça do primeiro que encostasse. Dez minutos antes chamaram os mais loucos ali no pátio do Pinel. Para segurar o outro que chegava. Disseram que ele estava louco. Os mais loucos se olharam e começaram a rir. Foram lá. Ficaram na porta até ele dar a primeira piscada. Um baixinho voou no peito dele, outro segurou a cadeira, o resto cercou, deitaram o louco no chão e o imobilizaram segurando pernas, braços, ombros. Ele olhava dentro da alma de cada um e dizia que ia matar. Os que estavam ali não se incomodaram porque tinham passado anos desafiando a morte - e ela não os fez desparecer. Aplicaram uma injeção de amansa louco. Levaram, amarraram numa cama e, poucos dias depois, ele estava no pátio ao lado dos outros, esperando a hora de ir embora - porque louco que é louco é logo solto.

à margem

De Paulo Leminski

Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.

Marginal, escrever na entrelinha
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.