quarta-feira, 4 de novembro de 2015
Coronhada
A cena descrita era muito violenta. Preso, acusado de estupro, bêbado, o personagem levou uma coronhada de fuzil na boca que quase o fez engolir os cacos dos dentes. Estava lá num conto que ele jamais esqueceu porque até o gosto do sangue sentiu ao ler. Pensou nisso quando viu metade de um dos dentes da frente cair, deixando um buraco que parecia a entrada de um túnel para o interior da sua alma. Sujo, olhava-se num pequeno espelho no quarto de uma pensão alugada só para drogados. O ar fedia a lixo podre e fezes. Pelo menos não houve violência, pensou, enquanto tentava achar o pedaço do dente que caíra no chão de cimento úmido. Fim de linha? Não, porque quem está assim só pensa na próxima dose. A dele era através do arpão que entrava até o cérebro para acelerar o coração perto da explosão. Voltou para o colchão de palha manchado de urina e vômito. Deitou, passou o dedo pelo buracão - que pareceu ainda maior, fechou os olhos e, dessa vez, a cena da coronhada parecia real. Lembrou então que a tinha lido quando morava numa casa simples quase todas branca. Fazia muito tempo.
terça-feira, 3 de novembro de 2015
A macarronada da Mariquinha
Ela subiu na laje, caiu, quebrou a cabeça. Mais de 80 anos. Pau de goiabeira só enverga. Foi para o hospital, saiu do coma, voltou para casa e agora me convida para comer a famosa macarronada. A comilança faz parte do meu inventário sentimental. A primeira vez que mandei aquele grude pra dentro foi como conhecer o nirvana que vinha numa forma retangular de alumínio. Enorme. Talvez tenha sido o queijo derretido em cima, ou a carne moída com molho picante. Ou mesmo a massa, que ela mesmo fazia. Ou toda aquela maratona para chegar à casa dela, de ônibus, num lugar que até hoje lembro ter uma grande praça no ponto final. Ou mesmo o fato de ela trabalhar com o marido na feira, vendendo meias, muitas, de todos os tamanhos, qualidades e cores. Quando me telefonou e disse que me esperava para a pratada, fiquei tão feliz que quase comprei passagem de avião na hora. Senti o gosto na boca, salivei. Estou muito longe da Mariquinha. Esse o nome dela, minha tia seca de corpo e de sorriso amplo. Os filhos dizem que a queda a fez perder o juízo que já não tinha. Como não tinha? Criou os cinco e mais alguns que pegou de gente que não podia segurar o tranco. Aposto que eles, espalhados por aí, com os netos dela, também jamais esquecerão a tal macarronada. No telefonema me disse que vai esperar minha visita e que não morre enquanto isso não acontecer. Eu acredito.
quinta-feira, 29 de outubro de 2015
Dois amigos
Afogados. Perdi dois amigos assim. Nas férias escolares. Não voltaram para a classe. Recebemos os avisos como se fossem bilhetes frios e mal escritos. Afogados. Evitamos falar a respeito, mas a morte trágica fica dentro, como uma sensação ruim. Mil afogados tem a letra de uma música. A conversa no terreiro com os santos que descem para tentar proteger o menino do tiro de misericórdia. Os afogados falam com a gente. Um dos meus quase enlouqueceu uma colega. Fomos à igreja que ficava perto de onde ele morava. Mandamos rezar missa. Ele queria ficar em paz. Ficou. Ela também. Afogados. Tenho esses. Não tenho queimados. Outro tipo de grito que fica no ar. É o desespero da hora sem saída. É a entrega da alma diante da impotência diante da morte. Ficam os recados. Da fragilidade humana. Do pode acontecer. Do aconteceu. Meus amigos. Para sempre.
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
Sentinela
São três da madrugada. O calor é infernal. O ar tão pesado que daria para cortar com a faca que tenho aqui na cintura. Minha arma principal, porém, é outra. Tenho um fuzil automático que pode cortar o corpo de uma pessoa com uma rajada. Nunca atirei em ninguém. Nem sei porque me deu a louca de vir para essa fronteira. Estou cercado de florestas. Minha guarita é minúscula. Não vejo nada, apenas ouço. Os bichos, os fantasmas, o som do tropel das amazonas que saem em busca de carne humana. Minha farda pesa duzentos quilos. Não posso dormir. Espero um inimigo que nunca apareceu. Defendo minha pátria. Lá embaixo do barranco tem um rio. Ele tem águas barrentas e muito, muito peixe. Às vezes tenho pesadelo acordado quando estou de sentinela no meu turno da madrugada. A água sobe e inunda todo o quartel. Um jacaré enorme entra na guarita e minha cabeça fica presa dentro da boca dele. São três da madrugada. Uma estrela cadente risca o céu lá para os lados de não sei onde. Alguém deve ter visto a mesma coisa neste mundão escuro.
LIÇÃO
De Helena Kolody
A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
terça-feira, 27 de outubro de 2015
No banco da sogra
No banco da sogra viajei num Karman Ghia. Eu não era nem sogra, nem sogro do dono do carro. Apenas uma criança que, encantada com aquele carrinho vermelho, foi do Rio de Janeiro e a Vassouras. O motorista era um desconhecido, mas a namorada dele morava com uma tia querida que me dava o colo que nunca tive em casa. Nunca mais esqueci o possante e a praça antiga da cidadezinha. Anos depois, num dia de sol em que fui à janela do prédio público para olhar as árvores, tive uma visão - e alucinei. No pátio coalhado de carros novos, mas em cores sóbrias, estava lá o esportivo tão vermelho quanto aquele onde sonhei acordado nas retas e curvas de uma estrada sem trânsito. Desci correndo e, ao segurança, perguntei sobre o dono. Fui lá falar com ele. O carro era do pai e estava guardado há tanto tempo que os pneus ressecaram. Foi a única reposição que fez depois de tirar da cabeça do velho a ideia de vender a joia. No final de semana seguinte acabei com minha inveja boa que senti. Fui à feira e comprei vários, cada um com uma cor diferente. Entraram na coleção de um sonho de verão.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
O banquete do Macau
Estava tudo cinza. A cidade, o ônibus que sacolejou do subúrbio até o Centro. As pessoas também. Aqui dentro tinha uma luz. Eu ia ao show. O teatro ficava embaixo de um viaduto - desses que invadem salas e, de repente, um carro entra pela janela e pela goela de alguém vendo televisão. Entrei. Quase ninguém naquela sala gigantesca. Cinza escuro. As luzes se apagaram e o artista apareceu. Ele e o violão. O microfone solitário sorriu com a companhia. Não houve aplausos. Ele sentiu o silêncio e começou a cantar. O som do violão cortava o coração. A voz envolvia a alma. Os óculos redondos ressaltavam não os olhos, mas os dentes proeminentes. Ele atacava a vida que, naquela tarde de domingo... era cinza. Viu a luz aqui dentro. Gritou "cuidado!", há um morcego na porta principal. Depois disse que estava cansado, mas que não ia ficar parado lamentando o eterno movimento dos barcos. Então se foi, em silêncio, mas feliz por ter feito. Ficou aqui dentro. Anos depois, em outra cidade, num palco redondo de teatro pequeno, cantou aquele que, disse, considerava o verdadeiro hino nacional brasileiro: Carinhoso. Explicou: todo brasileiro sabe cantar. Apoteótico Macau. Herdeiro de Morengueira. Ele, Jards Macalé - o do Banquete dos Mendigos e do brilho no cinza de sempre.
Minha vida Meu amor
De Dalton Trevisan
Olha minha vida meu amor
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula
Olha minha vida meu amor
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
A casa
Já encomendei o projeto. Mandei uma foto da paisagem que quero ver do janelão. Ali de cima dá para enxergar onde termina o pedacinho de terra e começam outros e mais outros e mais outros até chegar no pé daquele morro lá na linha do horizonte. Às vezes tudo fica verde, quando cai água do céu do sertão. Às vezes fica seco, mas os pés de manga, de jaca, ah! esses são como troféus eternos da natureza. E tem também aquele pé de não sei o quê que fica bem na quina de uma divisa e fica parecendo um grande buquê de flores exatamente quando os galhos secam. A gente olha e se deslumbra e se alumia como o sol que é forte desde que surge lá atrás da casa que um dia terei. Ela vai ser fresquinha, toda de concreto aparente, linhas retas, pé direito bem alto, um espação como se fosse um oásis dentro do oásis dentro do deserto. É ali que vou partir para os outros mundos dos livros, viajar nas músicas, escrever as histórias que, aleluia, tenho muitas pra contar. O projeto está encomendado. Quem vai fazer conhece muito bem o dono, porque sangue do meu sangue. Pode ser que nunca a casa brote naquele chão. Mas... precisa? Ela já existe.
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