quarta-feira, 20 de abril de 2016

Estanhado

Estanhou os olhos... Será que ouvi, li ou sonhei com isso? Mas ao lembrar, olhei para o lado. A foto minha e dele é como dois seres externando mundos diferentes. Pelo olhar. O dele estanhou na hora que o diafragma da máquina se abriu para o registro na película? Deste instante em diante, sendo ou não isso, fiquei sob a mira. E gosto porque, no rosto vincado, fechado, não há raiva, não há delírio, nem estado possesso. Enquanto escrevo ele me olha e agora vejo alguém apenas fechado, mas passando o gostar represado que não conseguiu externar. Quase encostei meu rosto no dele para este momento de um passado que é presente e futuro. Sorri em contraste com a boca fechada ao meu lado, como uma carteira de dinheiro, igual àquela que ele não abria na minha frente quando precisava dar algum. Virava-se de costas, tirava a quantia e depois entregava - com o rosto desse jeito de sempre, os cantos da boca descendo um pouco no fim da linha traçada pela junção dos lábios. Agora procuro na memória uma situação com alguém de olho estanhado de verdade. E só encontrei a mim mesmo, olhando-me no espelho antes de o metal derreter e produzir lágrimas. 

A lua no cinema

De Paulo Leminski

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Jamelão Exemplo


terça-feira, 19 de abril de 2016

Sequelados

O encontro dos sequelados aconteceu numa rua escura do bairro suburbano. Os "normais" estavam escondidos em suas casas/tocas. Os estropiados da vida se conheciam por dores adquiridas sem que pedissem. Dores impostas. Dores enfiadas pela alma sem o menor constrangimento, sem dó. Por outros sequelados que as receberam de outros - e assim sucessivamente até chegar ao peixe. Aquele que saiu das águas profundas e nunca entrou na Arca de Noé. Aquele que se arrastou pelas lavas dos vulcões e criou pernas, pulmão, coração e, maldita hora, alma e mente. Milhões de anos depois o que ele veio a ser pescou o que ele era. E cortou fundo, mantendo o corpo, deixando a carne exposta para que o sal da terra penetrasse fundo. No encontro dos sequelados foi alguém quem contou essa história. Várias risadas ecoaram na noite. Alegres umas, de escárnio outras. O silêncio era apenas de um ser presente. O que provocou tudo chegou perto. Fez um carinho no rosto. Juntaram sequelas. As feridas se fundiram. Houve paz naquela madrugada.

dragão

De Marcos Prado

dragão
faço do teu nariz
tomada
do teu bafo
gasogênio
da tua bosta mole
metano
qual foi
o seu trabalho
neste mundo
javali fêmea?
onde estão os seus méritos?
fritando alguém?
refogando algo?
ensebando quem?

Evinha Cantiga por Luciana


segunda-feira, 18 de abril de 2016

Asdfg

Enquanto ele tomava perfume eu torcia para ficar doente e ganhar uma garrafa  de guaraná champagne antártica. Com três anos aprendeu a ler e escrever sozinho. Aos oito, na dor do abandono, encontrou a literatura porque tinha o dom de escrever. Três anos depois, um conto que tem cheiro, fotografia, alma, vida, sol, luz, cores, seres humanos em cenas tão perto do real e nos descaminhos da incerteza, que... Asdfg, minha professora de datilografia se esforçava, mas eu não queria trabalhar como escriturário em banco. Não pensei nisso, nem que, tempos depois, quando a sangue frio o meu amigo lá do norte do mapa se tornava um astro da literatura e do jornalismo, fundindo tudo, aquele treino nas máquinas empoeiradas me fariam falta para... relatar histórias apreendidas em conversas, olhares, bebendo no caldo do que já tinha lido por aqui, no sul do mundo. Trumam Capote no filme de assassinatos misteriosos. Ele inchado, acabado, a imagem oposta do menino bonito que demorou para revelar que queria ser menina, porque, pasmem!, tinha vergonha, apesar do homossexualismo mais que escancarado. Agora as histórias primeiras dele aqui ao lado. Não bebi perfume, mas água de valeta, um drink de boteco centenário. Ele morreu. Eu não. Ele é farol. Eu nado em águas turbulentas batucando as letrinhas da mão esquerda com os cinco dedos. Não é igual, mas é o que me cabe.

sem cura

De Paulo Leminski

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano e Uirapuru


quinta-feira, 14 de abril de 2016

Se o Corpo Abandonar Minha Alma

    De Marcos Prado  
           
      se o corpo abandonar minha alma 
      não tenha de mim uma idéia falsa 
      não chore,mantenha a calma 
      estou morto por minha causa cuidado:assim como sua mala 
      o meu caixão não terá alça 

Armandinho, Yamandu Costa Assanhado


Cacos

Cacos de vidro são bonitos. Olhem! Estes que estão em cima dos muros, multicoloridos, pontiagudos. Esperem a hora da contraluz e não há problema se vier uma sensação de admiração, de êxtase. Um caco de vidro conhecido é aquele da garrafa quebrada no balcão, com alguém a segurando pelo gargalo e ameaçando o outro - no filme de faroeste, no de gangues ou no de uma mulher querendo acabar com a vida do canalha. Um maluco comendo caco de vidro pode ser interessante se ele não começar a verter sangue pelos buracos de cima ou de baixo. Se sair com a mão estendida pedindo uns trocados e com um sorriso nos lábios, imaginando o que a gente vai ficar imaginando o que acontece com aquele vidro dentro dele. Enfiei a mão num caco de vidro porque me encantei demais. Era sem cor. No delírio da dor imaginei alguém pedindo loira gelada casco claro. Foram-se alguns nervos. Não vejo mais a palma dilacerada. Tudo se fechou, como uma concha. Os dedos secaram e ficaram grudados para sempre. Cacos de vidros são lindos, mas há perigo na beleza. Vai ver que é isso.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Cabeça de Buda

Tenho uma cabeça de Buda aqui na minha mesa. Ela é formada por plaquinhas transparentes. Dentro tem uma lâmpada amarela e um fio que sai dali. Dificilmente acendo a cabeça, mas hoje resolvi fazer isso e colocá-la na janela do escritório que dá de frente para a rua. Fiquei pensando merda, meu exercício favorito para depois escrever coisas ditas sérias, e esqueci o Buda. Quando me toquei tinha uma multidão aglomerada no portão. Estavam em transe. Como eu sei? Desci lá e ninguém notou nem quando o motor do portão automático foi acionado. Olhavam na direção da cabeça e ninguém piscava. Olhei também. Aí não vi a cabeça. Melhor, vi a cabeça e o corpo inteiro flutuando e iluminado por dentro. Não conseguia mais me mexer, mas aquilo me deu uma paz nunca conseguida nem depois do gozo. Foi então que o caminhão do lixeiro passou com a algazarra de sempre. Não havia mais ninguém ali. Olhei de novo para a minha janela. A cabeça estava lá, mas apagada. Subi, tirei a lâmpada de dentro. Tinha queimado.

Amei em cheio

De Paulo Leminski

Amei em cheio
meio amei-o
meio não amei-o


Jair Rodrigues A Majestade o Sabiá


terça-feira, 12 de abril de 2016

Eu

Eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu  eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu não.

no escuro

De Sérgio Rubens Sossélla

no escuro
os livros são outros


segunda-feira, 11 de abril de 2016

A revolução no cabo da brocha

Seu sonho era ser pintor. Conseguiu. Pintor de parede razoável, um dia recebeu a encomenda de lambuzar o muro da casa do padre. Um milagre em sua cabeça aconteceu. Passou a falar para todo mundo que era restaurador de prédios tombados pelo patrimônio histórico. Alguém desconfiou e foi verificar sua história. Não conhecia o pai. A mãe foi criada em casa mal falada durante a exuberância do ciclo do café. Ele enveredou pela política para enterrar o passado, mas apenas seguiu o que os outros falavam. Se entusiasmou com as revoluções, qualquer uma, desde que se fuzilassem, saqueassem e roubassem em nome dos fracos e oprimidos. Ditaduras só haviam de um tipo, a do lado direito de quem enxerga estrabicamente. O tempo passou, mas ele não. Continuou pintando e caiando paredes e idolatrando malucos que batiam no peito com uma mão e roubavam os cofres públicos com a outra. Tudo justificável. Até o dia em que, já com idade avançada, despencou da escada e foi penetrado pelo cabo de uma brocha que o esperava embaixo. Levado ao hospital, foi submetido a uma cirurgia que o deixou folé para sempre. O que enfermeiros e médicos não entenderam é que antes, durante e depois da cirurgia, o paciente balbuciava: "Viva a revolução! Viva a revolução!"

Roberto Menescal O Barquinho


quinta-feira, 7 de abril de 2016

Amor

De Paulo Leminski

Amor, então, 
também, acaba? 
Não, que eu saiba. 
O que eu sei 
é que se transforma 
numa matéria-prima 
que a vida se encarrega 
de transformar em raiva. 
Ou em rima.

Roberta Sá Pavilhão de Espelhos


Penico

Sempre quis fazer uma coleção de penicos, mas a reação contrária foi grande. Imaginava colocá-los na sala de visitas, um ao lado do outro, em cima de madeira nobre, escura, para realçar cores e formas. Tem gente que nem sabe o que é um penico, artigo de primeira necessidade quando a modernidade dos banheiros dentro das casas ainda não tinha afetado a cultura brasileira. Para quem fazia no mato, por exemplo, um penico embaixo da cama seria a mesma coisa que um computador que atendesse nossas ordens faladas. Um dia li uma definição maravilhosa em jornal satírico dando conta do tal bolo fecal. Poético. Nunca mais esqueci, assim como aquele conto do Rubem Fonseca onde a paixão renasce num casal quando o marido vê, pela primeira vez, o que foi produzido pela mulher num banheiro químico no meio de uma excursão no deserto. Se isso acontecesse dentro da moldura de um penico, o texto se tornaria um clássico da literatura mundial - e o escritor certamente ganharia um Nobel. Alguém já disse que sou escatológico. Gosto da palavra. Prestem atenção na sonoridade. Um dia conversava com um amigo sobre estes temas e ele disse que talvez eu estivesse contaminado. Estranhei. Pediu que saíssemos à rua. A noite estava linda, céu sem nuvens, e ele apontou para uma direção. Dissertou então sobre a Via Láctea - e arrematou que ela era puro coliforme.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Rabo de palha

Fez tuiiiiiimmmmmmmm. Eu tinha visto a foto do Coice de Mula, mas isso é sopa no mel. Ficar olhando uma imagem e comentando com amigos. Agora, não, o que acabei de levar foi um tapa de mão aberta no ouvido esquerdo e, além do zumbido, a dor lancinante porque meu aparelho de surdez deve ter entrado até o cérebro. Senti o líquido escorrendo por um dos sete buracos da minha cabeça - e não podia fazer nada. Estava algemado, sentado numa cadeira e num lugar que parecia uma oficina abandonada da periferia. Quem me bateu parecia não ter alma, só ossos, músculos, olhos frios. Eu não sabia porque estava ali. Nem ele. Mostrou um papel dizendo que queria a verdade. Sobre o que? Não dizia. Aí aconteceu. Ele foi até um carro, abriu o porta-malas e trouxe um feixe de palha. Amarrou na minha cintura, por cima da bunda, como se fosse um rabo. Depois voltou ao veículo, retornou com lenha, montou uma fogueira, jogou álcool, ateou fogo, esperou um pouco e deu a ordem: "Pule!". Olhei incrédulo. Tuimmmmmmmmmmmmm. A pancada agora foi do outro lado. Levantei, tomei uma distância e, mesmo com os braços presos, pulei. Ele então veio, deu uma olhada geral, me virou, tirou as algemas e mandou eu ir embora. Fui, mas com com medo de levar um tiro pelas costas. Ele então mandou que eu parasse e disse que aquela era a fogueira da verdade - e que eu fiquei livre porque meu rabo de palha não pegou fogo.

Sofrimento

De Dalton Trevisan

Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas.

Moreira da Silva, Roberto Carlos Na Subida do Morro


terça-feira, 5 de abril de 2016

Flash Gordon veio me buscar

Ficou tudo vermelho, rosa, azul. Mas foi rápido demais. Quando escureceu é que clareou. Vi a nave do Flash Gordon porque olhei demais a antena de televisão que, amarrada a um fio, jogaram em cima do telhado da casa do vizinho. Um raio partiu de uma das hastes e ao atingir o objeto voador identificável este se transformou instantaneamente no Seaview, o submarino de Viagem ao Fundo do Mar. Não sei mais o que acontece comigo porque Lloyd Bridges, Errol Flyn, Jim das Selvas e o Coronel Limoeiro estão aqui na minha frente conversando baixinho. Minha boca está seca. Não sinto mais descargas elétricas nas têmporas. Alguém falou em lobotomia. Há uma cicatriz, sim, mas é no meu peito. Por favor, desliguem a televisão que eu quero...

não me bastaria

De Nelson Capucho


o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia

do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
                 dos dias

Zé Gonzaga


segunda-feira, 4 de abril de 2016

De misericórdia

Não tem poesia. É podre. Vielas com esgoto passando por baixo. Crianças buchudas, catarro escorrendo. Que chão de estrelas? Que história de viver pertinho do céu? As pernas quase não aguentaram a subida. Menino branquelo não tem problema naquele mundo. Mas alguns olhares furavam. Adolescentes e adultos sem camisa - secos. Mulheres gordas, calças e bermudas apertadas, banha caindo por cima da cintura. Quem me levava tinha me enganado. Disse que os parentes moravam no Rio de Janeiro. Não havia vista para o mar.  Do alto, onde chegamos, para onde se olhava, mais barracos amontoados. O sol queimava a pele. A primeira impressão jamais esquecida. Nada de traficantes e muito menos armas - apenas olhos vivos, como se estivessem atentos para o momento seguinte. Desci para nunca mais subir. Mas entrei - e depois acompanhei tudo, sempre, cujo resumo está em letra de música onde não há saída. Tiro de Misericórdia.

Parada cardíaca

De Paulo Leminski


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Carlos Galhardo, Roberto Carlos Fascinação