segunda-feira, 31 de agosto de 2015

outubro

De Paulo Leminski

outubro
no teto passos pássaros
gotas de chuva

Elis Regina Triste


No paraíso

Meu paraíso foi construído em cima de um terreno invadido. Não lembro por quem, pois eu estava no bucho da minha mãe. Ela morreu de tanto beber. Mas antes, com meu pai, que era viciado em outras drogas até se matar com o crack, construíram o barraco com papelão, compensado usado, plástico preto, etc. Tem um rio fedido aqui na frente. Quando chove eu rezo para ele não invadir meu pedaço. Fui criado pelos vizinhos. Aqui tem uma turma de bom coração. Os traficantes também têm e eu fui alimentado por alguns deles, que morreram ou estão presos. Mas quem vive da droga é uma raça que nunca acaba. Tem o dinheiro fácil e, dependendo do acordo, proteção. Um dia achei um livro dentro de um saco de plástico que o rio deixou no barranco embaixo da minha janela. Eu aprendi a ler nos dois anos que frequentei uma escola aqui perto. Depois desisti. O livro era bem diferente daquilo que a professora com cara de fuinha ensinava como se estivesse há anos sem trepar. Também, quem ia querer comer aquela coisa? Mas foi assim que comecei a entrar em outros mundo, que é o de quem escreve. Parece uma mágica isso. Resolvi ser mais catador de lixo reciclável só para ir atrás de mais histórias escritas. O dinheiro que ganho dá para não morrer de fome. Leio direto nas horas qlivres. Como faço meu horário, às vezes passo uma semana com os olhos pregados nas letras - às vezes o coração aos pulos. Já disse que funciona mais que droga. Acho que aprendi a falar melhor assim, sem muitos erros. Talvez eu escreva alguma coisa a respeito um dia. A respeito do meu paraíso. Aqui. Não preciso de muito. Apenas que não me encham o saco.

quarta-feira, 26 de agosto de 2015

Um tapa, para começar

Há certas pessoas que nasceram para apanhar na cara. Em público. O rostinho branco e arredondado prontinho para ficar a marca do tapa, aquele descrito pelo tarado do Nelson Rodrigues - quando o que dói mais é o barulho. Há os que estão prontos para levar surra de cinta, no meio da rua, fivela deixando marcas pelo corpo.  Então, ajoelhados, de mãos postas, pedem perdão pela canalhice que aprontaram, pela falta de caráter como DNA de família. Marmanjões facilmente reconhecidos pelo sorriso puxa-saco, aquele "inteligente",que surge para agradar a quem quer que seja, mesmo que o momento seja errado e o cancro humano não esteja entendendo nada do que disseram ou da situação. Quebrar os dentes de um pulha desse tipo seria o ideal, mas aí o coitado do dentista teria muito trabalho de reconstituir parte da fachada do crápula. Um bom tapa, que deixa a marca dos dedos na face do vagabundo é suficiente. Ou não? Muitas vezes tal tipo têm orgasmos com isso - e depois aprontam mais para apanhar de novo e, quem sabe, poder gritar que quer mais e mais e que nasceu para isso. Nestes casos, quebrar algumas costelas fica de bom tamanho para o digno representante da escória. 

Orgia do nexo

De Nelson Capucho

orgia do nexo:
no dicionário
as palavras fazem sexo
                       

Dalva de Oliveira Hino ao Amor


terça-feira, 25 de agosto de 2015

É tudo o que sinto

De Paulo Leminski

Inverno 
É tudo o que sinto 
Viver 
É sucinto.

Racionais MC's e Vida Loka Parte II


Quem acha

Quem acha vive se perdendo. Noel Rosa teve a inspiração quando, de manhã, depois das noites de orgia, voltava para a Vila Isabel e roubava garrafas de leite na porta das casas vizinhas. Claro que isso foi inventado, mas o passado é bom porque a gente edita. Essa é do Armando Nogueira, aquele que colocou Garrincha driblando no espaço de um lenço. Me perdi sem me achar. Isso é pior ou melhor? Quem se acha é sério demais, do tipo imaculado, o machão que sabe tudo, que não sorri, que ferra com todo mundo e, em casa, fica só de calcinha vermelha rendada dançando rumba na frente do espelho. Zé Trindade saltaria de lado e pediria para o jacaré sair pra lá. O que seria toda essa colagem de lembranças que ficaram e ficarão? Nada. E tudo.  

segunda-feira, 24 de agosto de 2015

Não discuto

De Paulo Leminski


não discuto
com o destino
o que pintar
eu assino

Martinha Eu Daria a Minha Vida


Maldição

Vai ver que foi isso mesmo: a maldição da cabeleira. A turma era do quarto ano do que hoje chamam de primeiro grau. De repente os Beatles invadiram o mundo. Ninguém ali decifrava o idioma inglês. Pra que? Todos fomos abduzidos por uma onda. O que mais chamava a atenção eram aqueles cabelos enormes a cobrir as parte das orelhas. Que coisa! Resolvemos criar a nossa banda. Sem instrumentos, sem música, sem nada – só com os cabelos. Não dava para esperar crescer. Era pra já. Uma das mães dos quatro rapazes da vila era costureira. Foi encarregada de inventar os cabelos. Um pano preto, bem recortado, na medida da cabeça, com a franjinha em linha reta na frente – e pronto. Os encontros duraram quase um mês. Um ficava olhando para a cara do outro – e os quatro para o espelho grande de uma sala. Na radio-vitrola, eles, os originais, que eramos nós mesmos. Anos mais tarde um deles deixou o cabelo crescer até o meio das costas e o cavanhaque batia no peito. Até o dia em que foi convocado para o Exército. Raspou tudo. Vestiu farda por um ano e, depois, ao tentar deixar a cabeleira recuperar o espaço, notou que as entradas estavam querendo saídas. Encontraram. Ficou careca rapidamente. Era o resultado da maldição da cabeleira de pano dos Beatles.

quinta-feira, 20 de agosto de 2015

isso e tanto

De Paulo Leminski

Não fosse isso
e era menos
Não fosse tanto
e era quase

Trio Mocotó Pensando Nela


Seis bolas

Os dois, cansados, voltavam de uma longa viagem de trabalho. Estavam perto da cidade destino, mas as horas de estrada os fizeram parar o carro num restaurante modesto. Um queria jantar. O outro, não. Disse que estava indisposto e, para reforçar o que sentia, passava a mão em círculos sobre o abdome. O garçom marcou o pedido do primeiro. Olhou para o indisposto e ouviu uma pergunta: "Tem sorvete?" Ao ser informado que, sim, ali havia sorvete bom, especial, de vários sabores, veio o complemento. "Então, faz o seguinte: coloque seis bolas numa travessa e, depois, abra uma lata de pêssegos em calda, despeje tudo em cima e me traga". O pedido foi atendido. Ele comeu tudo - para espanto do amigo. Depois, no carro, perto de chegar à cidade, ainda falou: "Quando chegar em casa, vou fazer uma boquinha porque estou com saudade e amo a comidinha da minha mulher".

quarta-feira, 19 de agosto de 2015

Dinheiro

Nunca vi o dinheiro dele. O dinheiro da carteira. Quando pedia uns trocados, ele puxava a dita, virava de costas para mim, tirava as notas menores - e me dava. Sei que era um sacrifício, porque aquele dinheirinho ele suava muito para ganhar. Talvez por isso tenha me transformado no inverso. Se pudesse  - e tivesse, distribuiria entre os filhos, netos, parentes, amigos que estivessem precisando, etc. A cena do filme me influenciou muito também. Japonês, preto e branco, cinema de arte, tela pequena e o motorista circulando pelas ruas de Tóquio, sozinho, com uma pacoteira de notas no banco do carona. Jogava as notas pela janela - rindo. A cena longa, sem trilha sonora, sem nada. Alguém escreveu que ali se mostrava toda a personalidade do personagem. Era ele. Era eu.

Zé Renato Arranha Céu


terça-feira, 18 de agosto de 2015

Era um garoto que...

Era um garoto que amava... só os Rolling Stones. Ele não sabe bem o porquê, afinal, não entendia patavinas de inglês, mas foi melhor assim, afinal, as letras são enfeites de quinta categoria para os raios disparados pela maior banda de rock de todos os tempos. Canonizou Keith Richards, não Mick Jagger. Acha que o sobrevivente é a alma que carrega tudo. Lá na vila jurou que, se um dia o grupo viesse ao Brasil, estaria lá, no gargarejo, mesmo se o show fosse numa clareira no meio da selva amazônica. Nas três vezes que tocaram e cantaram  (I Can't Get No) Satisfaction ao vivo, nestas terras, estava lá - e ainda ganhou de brinde um Bob Dylan na segunda vez que os velhinhos pisaram a terra brasilis. Foi com os filhos. Gostaria de apresentá-los aos netos. Agora se prepara para mais uma experiência inexplicável: a de saracotear sem parar durante as duas horas de inundação sonora, mesmo que esteja a dois quilômetros de distância do palco, como aconteceu em Copacabana - performance cujo encerramento foi um banho de mar no meio de uma noite inesquecível. Idoso com um pouco menos de estrada que os súditos da rainha, sai da passividade para o esbanjamento de energia tanto quanto o cantor bocudo. Está pronto para o ano que vem, pois desconfia que será a celebração derradeira de um amor que pulsa.

sábado

De Paulo Leminski

o mar o azul o sábado
liguei pro céu
mas dava sempre ocupado

Elton Medeiros Pressentimento


quinta-feira, 13 de agosto de 2015

NAVEGANTE

De Helena Kolody


Navegou
no veleiro dos livros.

Desembarcou
e conferiu.

E o mundo que viu
não era o que imaginou.

Araci de Almeida Não Me Diga Adeus


Dois em um

Antonio das Mortes e Corisco se fundiram na lente de Glauber Rocha. Abençoados foram por Antonio Conselheiro em delírio - pouco antes da hora da morte. Eu vi na madrugada de lua cheia.  Eles vieram guiados pela mente de Stephen King e entraram no meu corpo como anjos e demônios prontos para a catequese. Havia uma Papo Amarelo e um punhal de prata enorme. Era o sinal para o juízo final dos que não têm juízo e, como senhores absolutos do poder, fazem dos desvalidos os merdunchos que João Antonio batizou. Para cada um deles uma bala .44 com uma cruz na ponta e a lâmina pronta para entrar bem abaixo do umbigo e varar tudo até sair no topo da cabeça. Assim foi feito. Bastava olhar, mesmo na tv, e ordenar os justiceiros. Bala e punhal entravam ao mesmo tempo, invisíveis aos olhos da multidão. Cães sarnentos apareciam do nada para urinar nos cadáveres. Os miseráveis não choravam. Faziam festa. Quem se apavorava eram os outros escrotos. Sem ninguém pedir, juravam arrependimento. Para estes o punhal era mais cruel: percorria do ânus à boca em câmera lenta. Mas eram tantos os crápulas, assassinos dos anônimos que os sustentavam, que Antonio das Mortes e Corisco um dia se cansaram. Retornaram ao filme. As ervas daninhas não tardaram a tomar conta de tudo novamente.

quarta-feira, 12 de agosto de 2015

brisa

De Roberto Prado


como um salário de fome

para o cabeça de vento

vem o sopro da primavera

e sobre este vale tudo de lágrimas

soletra um nome

para que eu viva de brisa

Cascatinha e Inhana Meu Primeiro Amor


Vultos

Óculos na ponta do nariz, estava lendo um trechinho dos escritos de Roger Salter. Este: "Ele está se preparando para a chegada do grande artista que um dia espera ser, um artista no sentido verdadeiramente moderno da palavra, ou seja, sem grandes feitos, mas com convicção pura de sua genialidade". As janelas do escritório estavam abertas no final da tarde e o telhado que dava para ver logo adiante parecia agradecer a partida do sol que o castigou o dia inteiro. De repente, um vulto passa voando e pousa suavemente na beira da calha. Numa fração de segundo. Ao olhar por cima das lentes, o vulto continua vulto. Sabiá, com certeza. De volta à leitura, mais uma: "Ela era calma e lúcida. Tinha a paciência vasta dos insanos". Um grito corta o silêncio. Recebe o aviso de que os da casa lá embaixo estão saindo para uma festa. O pássaro voa. Ele fecha a janela e tenta escrever algo.

segunda-feira, 10 de agosto de 2015

Lobotomia

De repente olho e vejo aqui na mesa uma gaita de boca azul, um pião e a fieira, um calendário Seicho-No-Ie  que ensina "A alegria da alma manisfesta-se nas ações de amor ao próximo", duas agendas telefônicas com mais de dez anos anos de uso, folhas soltas, nomes se apagando, números que não servem mais, um caderno com anotações de viagem que nunca mais abri, um porta-canetas feito no tempo de internamento no manicômio e o telefone vermelho que achei ser do coronel maluco do filme Dr. Fantástico. A quem interessa a descrição? A mim mesmo, porque quem lê vai imaginar a mesa, a tela do computador, talvez o local e não vai passar perto do real. Jornais da semana se espalham pelo chão e há uma arma com mira telescópica num canto. Chumbinho. Sim, matou. O que? Não interessa. Como Lawrence da Arábia, depois da primeira morte, houve prazer. Mas isso faz tempo e eles não apareceram mais no quintal para levar bala. Será que estou ficando louco? De novo? Sei que em casa há uma camisa de força guardada em algum lugar. Já estive dentro dela. Manso. Agora visto roupas de grife e frequento locais onde os tubarões nadam, deitam e rolam. Deveriam ser abatidos - porque mais alucinados. O sangue escorre de suas bocas e eles querem mais. Isso é outra história. Estou sozinho. Tenho cicatrizes grandes nas têmporas. Me falaram em lobotomia. Estou calmo. Vou tocar a gaita e rodar o pião. Com licença.

Fagner Jura Secreta


Haicai da necessidade de morrer

De Miguel Sanches Neto


Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra

quinta-feira, 6 de agosto de 2015

lâmpada e estrelas

De Helena Kolody

O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.

Renato Teixeira Amanheceu Peguei a Viola


Não

O não era a sua perdição. Tentou achar a nascente daquilo, pois bastava ser contrariado, em qualquer situação, por mais boba que fosse, e via o alçapão se abrir aos pés da sua alma. Mergulhava então na catacumba, purgatório, areia movediça com baratas gigantes. Uma vez viu seu coração ser arrancado a fórceps pela boca e comido por piranhas dentro de um aquário só porque, em casa de parentes, não lhe deram a mostarda marrom para colocar no cachorro quente. Ele pediu, ela estava ali perto, disseram para ele pegar - mas como se levantar dali se ele pediu porque morria de vergonha? Foi por isso que durante muito tempo o mistério do namoro era anabolizado pelo segredo do beijo - e ele apenas se apaixonava por meninas que lhe davam toda bola, mas... Como falar? E se elas dissessem não? Morreria, certamente, de queda de boca no meio-fio, dentes quebrados fazendo-o engasgar até o último suspiro. Tudo acontecia até o dia em que uma palavra se tornou mágica e matou o pesadelo para sempre. Ele ouviu um sim que fez sentido para sua alma atormentada. Foi uma coisa simples, mas aconteceu. Entrou na mercearia e deu vontade de comer pé-de-moleque. Perguntou ao senhor de barbas brancas, que estava atrás do balcão, se ali tinha . Viu os olhos brilharem e um sorriso apresentar um dente de ouro e vários careados. A resposta positiva foi como flash de luz. O doce comido numa longa caminhada de volta para casa fez o resto do serviço de aniquilamento da palavra da perdição.  

quarta-feira, 5 de agosto de 2015

mentira

De Paulo Leminski

Essa idéia 
ninguém me tira 
matéria é mentira.

Sergio Reis Coração de Papel


Preso

Eles entraram arrombando a porta. Um helicóptero pairava sob o terraço do prédio. Alguns desceram dele, deslizando em cordas. Homens de preto. Só os olhos de fora. Alucinados. Armas modernas apontando e gritos histéricos inundando o ambiente. O café ainda estava quente na xícara. Não consegui dar um único gole. Não me apavorei. Esperava isso. Sentado, ergui os dois braços e espalmei as mãos. Dois gorilas as seguraram, colocaram para trás e me algemaram. Não leram meus direitos. Isso é coisa de filme americano. Desci pelo elevador cercado por dez. A rua em frente ao prédio estava com o trânsito interrompido. Mais policiais, armas, cães mostrando os dentes. Me colocaram no banco de trás da barca. Era assim que a gente chamava as viaturas no tempo de colégio e maconha. Foi a primeira vez que fui transportado assim. Ao chegar na dependência policial havia um batalhão de carniceiros. Tom Wolfe rotulou assim os repórteres em seu clássico "Os Eleitos". Sorri para os que conhecia. O delegado mandou tirar as algemas. Meu advogado chegou em seguida. Estava com o terno Armani que gosta. O perfume não identifiquei. Ele cochichou algo para o manda-chuva. Ele me mandou sair pelos fundos. Voltei para casa. Tive de fazer um café novo.

terça-feira, 4 de agosto de 2015

Passos no mundo

Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Nome de música, nome de disco. Pouca gente conhece. Nem te ligo. Ela me ligou. Eu dava mais que um passo. Pegava o Dinossauro da Viação Cometa e ia passar férias no Rio de Janeiro que era Guanabara. O quepe do motorista e a alavanca para fechar a porta eram o máximo. Lá, sempre o mundo saía do lugar. Porque o meu era da vila pobre e no fim da estrada tinha um Cristo querendo me abraçar. Um dia, no bairro onde nasceu um gênio, o Méier de Millôr, fui soltar pipa no terreno vizinho do casarão onde ficava com a tia querida. O muro caído, alguns passos, o brinquedo subindo no ar e um grito vindo não sei de onde. "Se não sair daí eu te queimo de bala". Era um general sem pijama, soube depois. Dei mais um passo para tomar Grapette na areia da praia que hoje é de merda. E muitos passos para comprar bisnagas nas padarias de vascaínos. Um dia vi General Severiano, mas só muito tempo depois soube que as pernas tortas estavam lá. Botafogo. Agora, depois na longa caminhada, vi o grande mural do restaurante Fiorentina, no Leme - e todos os campeões estão lá, os de 58 e 62, sempre nos esperando. O mar é o mesmo. O mundo saiu do lugar sem eu dar um passo.

Revendo uma foto antiga

De Miguel Sanches Neto

Nesta foto do tempo de criança
o que mais me encanta
não é nossa alegria de infantes
mas a réstia de luz de uma manhã
brilhando no chão da varanda.

Ninguém apaga este sol
que nos chega da infância.

Pandeiro Repique Duo Solando Pra Comemorar


segunda-feira, 3 de agosto de 2015

o que me falta

De Alice Ruiz

Já não temo fantasmas
invoco a todos
que venham em bando
povoar meus dias
atormentar minhas noites
entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me
falta.

João Bosco Jade


Bola de gude

A poucos quilômetros da frieza do asfalto e concreto havia o mar, uma praça, uma igreja no alto da colina e, perto dali, numa rua de terra, meninos brincando com bolinhas de gude. Ele parou para olhar, sentou no chão e aquelas pequenas mãos e dedos ágeis faziam as esferas coreografarem o jogo que levou seu coração ao passado. Pediu para entrar na brincadeira, ele, um senhor de sessenta anos. As crianças acharam esquisito, mas viram que seus olhos verdes pareciam com as de algumas bolinhas - e a bermuda surrada, a camiseta velha e a sandália de dedo eram a verdadeira identidade de um eterno menino. Ele ficou ali por muito tempo, esqueceu o que foi fazer naquele pedacinho do mundo cujas costas eram protegidas pela Mata Atlântica e o peito por um estuário santuário. Era craque no tiros disparados com o dedão pressionando a esfera contra a dobra do indicador. Acertava as outras bolas a qualquer distância. No final, quando disse que precisava ir, os meninos o cercaram e lhe deram algumas daquelas bolinhas de presente. Ele as guardou no bolso, entrou no carro e, na estrada de terra que o fez voltar para o asfalto que o levou depois para a cidade grande, chorou sozinho no final de uma tarde cercada de silêncio.