Sem Natal
Sem Ano Novo
Sem nada
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Bem no fundo
De Paulo Leminski
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Matei Papai Noel
Matei Papai Noel antes de ele nascer. Na verdade, quem matou foi meu pai, porque lá em casa não tinha disso não. Eu confundia tudo porque algumas crianças do cortiço me falavam que iam colocar meias nas janelas, que o velhinho descia pela chaminé com os presentes, etc. Não havia meias e muito menos chaminé naquele muquifo que fedia a repolho azedo e onde o esgoto atravessava o quintal num corguinho. Só soube o que era ceia muito tempo depois. A figura eu via de vez em quando. Aquele calor do cão e ele lá com a barba enorme, a roupa vermelha de feltro, um saco pendurado nas costas. Inocente, pensava com as duas mãos nos bolsos da calça curta: mas que porra é essa? Sim, falava palavrão porque assim era e assim sempre foi lá em casa. Quando revelaram a jogada, fiquei puto: o mundo está perdido porque começam a mentir logo cedo para as criancinhas ainda puras. Agradeci meu pai por ele não ter se inventado Papai Noel. Nunca me deu um presente, mas me deu a vida, junto com minha mãe - e segurou a barra enquanto pode. Um dia, já adulto, perguntei de que forma ele tinha matado o velhinho. Ele arregalou os olhos azuis e não respondeu nada, porque aquilo era língua estranha. Acho que foram os antepassados dele que fizeram o serviço. Muito bem feito, aliás. Coisa que recomendo aos que estão aí vendo o barbudo como garoto propaganda alucinado do consumismo ensandecido de agora. Sobre as renas que puxavam o trenó desde a casa do cacete, até hoje tenho dúvidas se elas dariam um bom churrasco ou não. Lá no cortiço, se aparecessem, todo mundo ia esquecer a enganação dos presentes. Não ia sobrar nem os olhos - só as galhas, para enfeite.
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
Geladas
A água saía do poço, gelada, passava de um balde para o outro - e eu carregava com dificuldade para o banheiro minúsculo, duas mãos agarradas na alça, corpo retesado para não arrastar no chão. No cubículo, pés no cimento queimado e frio, privada que ocupava quase todo o espaço, porta de tábuas entre as quais as frestas permitiam ver se alguém queria me espiar pelado. Não pensava nisso. Pegava uma caneca feita com sobras de lata de óleo, enfiava dentro do balde e ficava ali parado com ela na mão direita sem coragem despejar o conteúdo cabeça abaixo. Até que vinha o momento da decisão e... O sabonete era esfregado rapidinho, em todas as partes do corpo. Olhos fechados e novas canecadas com muitos arrepios. No frio era assim também. E na vila fazia frio! Depois vinha a sensação boa, tudo enxugado, corpo limpo, sangue pulsando. Até hoje o banho continua assim, frio, apesar do conforto das duchas e do aquecimento a gás. Me faz sentir vivo - e disposto para enfrentar as geladas da vida.
Aprendizado
De Paulo Leminski
Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.
Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2015
Mensagem da brisa
A tristeza veio com o cansaço e uma brisa no início da noite. Ele estacionou o carro, saiu, apertou o controle, ouviu o barulho dos vidros fechando automaticamente, subiu a rampa que o levou ao supermercado e, ao olhar aquele mundo de produtos, estancou. O que fazia ali, se não tinha nada para comprar? Começou a andar pelos corredores, olhando produtos e pessoas, pessoas e produtos. Qual o sentido de um carrinho abarrotado de garrafas de vinagre e um senhor de rosto acabado pelo tempo empurrando-o? Passou pelo longo corredor das bebidas e lembrou de pessoas que morreram por ter a doença e não conseguir controlá-la. Droga lícita é uma rótulo. Droga ilícita outro. As duas matam quem entra no universo paralelo. Foi ao caixa. Uma senhora discute sobre centavos. A menina que a atende pacientemente é jovem, negra, cabelos esticados e batom vermelho nos lábios. Os olhos são grandes. Ele não tem nada nas mãos. Para diante do caixa, tira do bolso do casaco um maço de notas de cem enroladas e presas por um elástico - e entrega para ela. Presente de Natal, diz. Não espera resposta. Sai, entra no carro, liga o rádio, e enquanto ouve uma música qualquer, começa a chorar.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
O barco
O calor infernal naquele muquifo na praia estranha me fez sair para dar uma volta. Os urubus tinham se alimentado bem das sobras de peixe jogadas pelos pescadores. Era fim de tarde. Eu não tinha me drogado. A última vez que tinha fumado um fazia trinta anos. Virei careta radical no dia em que vi um anjo fazendo sexo com o cramulhão. Início da noite. Numa janela, a luz de uma televisão e a voz de um ator paspalho gritando e atravessando o vidro. Todos gritam na tv, como se ela não tivesse um de um controle para aumentar o som. A rua era de terra e ficava paralela à areia da praia. Entre elas, algumas casas pobres. De repente, um corredor, uma luz verde iluminando-o, um barco emborcado encostado num muro, e lá na frente o mar e a faixa violeta com nuvens negras. Era um delírio - e não era. Pensei em algo que, mais tarde, escrevi. E veio tudo como se eu tivesse registrado num computador de bordo. Não tenho memória. Ela foi prejudicada pelo fedido e por muitas outras drogas, principalmente o assassino de neurônios, o álcool. Fiquei parado ali um tempo indeterminado. Voltei, registrei no papel e carrego comigo o que veio, mesmo sem saber por que. É isso:
o barco não chega ao mar pela força dos pescadores
eles são os outros
o barco só chega lá pelas próprias forças
e é ele que tem de descobrir isso
veja que está cercado por duas paredes, mas não encaixotado
ele não sabe o que o espera
mas está parado porque cria o que está por vir
se deslizar, vai entrar neste mundo maravilhoso e emocionante
aqui pintado por deus
e vai navegar como na música
porque quem vai navegá-lo é o mar
assim é a vida
o barco não chega ao mar pela força dos pescadores
eles são os outros
o barco só chega lá pelas próprias forças
e é ele que tem de descobrir isso
veja que está cercado por duas paredes, mas não encaixotado
ele não sabe o que o espera
mas está parado porque cria o que está por vir
se deslizar, vai entrar neste mundo maravilhoso e emocionante
aqui pintado por deus
e vai navegar como na música
porque quem vai navegá-lo é o mar
assim é a vida
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
Parada cardíaca
De Paulo Leminski
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
Tralha
Malandro forgô pra cima de mim. Fiquei na minha porque nunca fui de treta - mas isso incentivou o nóia. Enquanto ele falava merda, fiquei quieto, parado, ali. Conhecia o gajo, mas nunca dei chance dele chegar perto, seja para uma parada arriscada, uma rodada de cerveja ou uns tiros de farinha no prato aquecido. Aí ele cometeu o erro de encostar a mão no meu peito. O relê colou na hora, o bisturi saiu de dentro da manga e o corte na carótida foi rápido e cirúrgico. Saí tranquilo enquanto ouvia a gritaria do acode, como se isso adiantasse. Ninguém veio atrás de mim, porque sabem onde mora o perigo. Os amigos dele talvez um dia arrisquem algo, mas só se me pegarem desprevenido - o que é muito raro. Restava o mocó, o meu. Mais difícil de achar do que a caverna do Batman. Nem os ratos chegaram lá. Ali guardo tudo, inclusive um diário onde escrevo desde o dia em que apaguei o primeiro, aos 10 anos de idade. A casa que me protege é de família tradicional e sossegada. Não estou no porão ou sótão, apesar de ser louquinho. Sou o lado de lá de uma estante abarrotada de livros. Entro por uma outra casa, do lado oposto da rua. Chego ao meu muquifo por um túnel que tem as marcas de uma fuga antiga de delegacia. Comigo, só tralha, tralhafernalha. Eu gosto. Me basta.
terça-feira, 15 de dezembro de 2015
Tibungou!
Tibungou! Antes já tinha visto os olhos de Peter O'toole pregado na cruz e percorrido todo o deserto filmado por David Lean - mas sem achar Lawrence para perguntar como era mesmo aquele negócio de ele ter gostado de matar depois do primeiro teco que deu num figurante. Tibungou! Meu cenário era o descampado do Nordeste brasileiro de miolo mole, onde o mato virou gado, que comeu o pasto, e que secou o céu cantado pelo Cego Aderaldo na poesia de Zé Limeira. Pensei então naquela de transformar bosta em dinheiro para pobre enricar. Tibungou! Há dias confundia tudo porque antes uns cabras contratados chegaram para me furar o bucho, cortar as orelhas e levar para quem encomendou. Resolveram não se sujar de sangue. Me amarraram no meio do nada para morrer de sede e ser comido pelos bichos. Urubu peneirou no ar e desceu antes do fedor da carniça. Bicou no pulso, tirou a corda, agradeci e saí com a a boca seca, quase cego e rezando para qualquer santo, porque não lembrava nem mais de Padre Cícero. Tibungou! Os olhos azuis me guiaram. Até chegar a um delírio que não era oásis, porque naquelas bandas nem conhecem a palavra e significado. Era uma poça de água barrenta, mas ao encostar a ponta do dedo indicador na superfície, ressuscitei, porque fria. Havia o fundo de um pote de barro ali perto. Peguei, enchi cautelosamente até quanto podia. Bebi. Fui ao céu para beijar O'toole e dizer que ele na cruz, em um outro filme, sem farda, piradão, tinha feito o milagre. Depois tibunguei, tibunguei, tibunguei - e de areia virei barro e a mão do divino me transformou em sobrevivente.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
Reconstrução
Só notou a passagem do tempo quando voltou aos lugares onde morou. Nunca tinha saído daquela cidade, mas teve casas em alguns cantos. Uma delas de madeira, com pomar nos fundos e um imenso quintal gramado na frente e apenas uma árvore reinando sobre o espaço; teve um porão, um sobrado, um barraco de fundos, uma que construiu do projeto de um estudante de arquitetura. Quando saía, ele não voltava mais para os locais onde elas estavam. Era instintivo, não fazia nada pensado. Passadas algumas décadas, de uma hora para outra, por compromissos profissionais ou sociais, foi passando naqueles lugares da trajetória da vida. A casa de madeira tinha desaparecido embaixo de uma outra, tipo caixote feio; o porão sumiu assim como todo o prédio acima; o sobrado e o barraco continuavam lá, mas pintados com cores berrantes, assim como a casa do arquiteto, que perdeu as formas, as chaminés, foi emendada a uma outra coisa que a deformou - e ficou azul de ferir os olhos. No entorno destes lugares, a cidade era outra, barulhenta, com comércio e tudo que foi se acumulando nos anos de invasão. Ele então lembrou outro abrigo, no campo, nos arredores da metrópole. Foi lá. Encontrou apenas algumas paredes e ela praticamente toda destruída. Iam construir uma nova no local, aproveitando alguma coisa da antiga Ele não lamentou. Comparou com a própria vida, reconstruída a cada mudança.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Esquizonauta
De Ademir Assunção
Dias e dias. Brancos
Navalhosos
Essa loucura. Você
não aparece
Você
não desaparece
Corpo gasoso
emoldurado
sob a luz da luminária
Vai e vem
Esse rosto. Esse sorriso
Bárbaro
Essa loucura
Dias e dias. Brancos
Navalhosos
Essa loucura. Você
não aparece
Você
não desaparece
Corpo gasoso
emoldurado
sob a luz da luminária
Vai e vem
Esse rosto. Esse sorriso
Bárbaro
Essa loucura
Primeira comunhão
O diploma da primeira comunhão ele tinha guardado. anjo da guarda estava lá, cabelos compridos, bonito feito galã de cinema americano. Asas enormes, protegendo o casal de crianças num caminho dos sonhos. Muitos anos depois, adulto, descobriu o complemento. A mãe tinha guardado a vela comprida que ele segurou acesa na igreja da vila. Ela tinha quebrado, mas valia. O quê, ele não sabia. A foto feita depois num pequeno estúdio também estava guardada. Ajoelhado, olhar fixo naquela imagem em tamanho natural do senhor que lhe estendia a hóstia consagrada, paletó fornecido pelo japonês do clique, imagem retocada. Jesus Cristo lhe dando o passaporte para caminhar direto para o céu dali a um tempo que ninguém sabia. Só Deus. Não mastigue a hóstia de jeito nenhum! A recomendação era essa. Pode sair sangue. Ela grudou no céu da boca e demorou a dissolver. Pensava nisso tudo enquanto montava a Walter PPK que lhe permitia exercer há muito tempo a profissão. Matador profissional. Dali algumas horas tinha mais um serviço encomendado a cumprir. Fez tudo como sempre. Se aproximou há um bom tempo da vítima, ganhou confiança e, na hora, o tiro seria dado no meio da testa. Antes, cumpria o ritual de perguntar se o futuro defunto tinha feito primeira comunhão. Quando recebia um sim como resposta, não ficava com remorso. Quando era um não, continuava impassível - e dizia: "Azar o seu".
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
Estrelas, luz e escuridão
Tinha visto o céu mais estrelado do seu mundo em Porto Seguro, no tempo em que logo depois da cidade, até chegar ao Arraial, não havia uma casa sequer – e a noite era um breu só. Estava embriagado de tudo, principalmente pela vida que, de vez em quando, lhe parecia algo bom demais para ser verdade. Anos depois começou a pensar sobre aquele mar de estrelas no teto negro sem lua, com o barulho do mar a compor a epifania, e logo tudo foi apagado pela luz de uma janela que ficava esperando acender lá longe, toda vez que voltava do colégio à noite, na vila de um subúrbio da megalópole amontoada. Ali, imaginava, era o quarto da grande paixão do menino tímido. Ela também estava voltando das aulas, sabia. Quando aquele retângulo se iluminava, o coração era um só descompasso, a poesia doida dos pensamentos brotando em avalanches – e ele só se acalmava quando a escuridão voltava a tomar conta de tudo. Ela nunca soube disso. Ele nunca falou e também não soube se era mesmo ela quem o eletrificava ao iluminar aquele cômodo. Mas tinha certeza que sim – e isso se tornou uma verdade linda.
brilho da lâmpada
De Helena Kolody
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
terça-feira, 8 de dezembro de 2015
erro
De Paulo Leminski
Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez
Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez
Pardal
Matei muito pardal lá no tempo do Cantinflas. Nem precisa ouvir aquela história de que este passarinho é praga, rato com asas. A turma de calça curta saía em safari pelas ruas de terra da vila. Estilingues armados, balas de barro redondinhas, confeccionadas na véspera, secadas no sol. Raros tinham boa pontaria, mas os ruins de vez em quando acertavam o peito do bichinho - e faziam a festa. Depois, a gente comia os ratos, sem as penas. Espetados e assados em fogueira feita à noite no fundo do quintal de um dos caçadores. Um dia fui escolher uma forquilha nova. Na vizinha tinha um arbusto onde elas apareciam aos montes. Desta vez, contudo, prestei atenção nas flores amarelas que ali estavam. Um encantamento. Fiquei ali um tempo indeterminado. O mundo parou. De repente um passarinho pousou. Era pardal. Ficou parado me fitando com os olhinhos minúsculos. Nunca mais atirei num semelhante dele.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
Música
Ela foi à feira de artesanato na praça principal da cidade. Lá ouviu o som da flauta e se encantou. Procurou a origem. O músico era belo, cabelos longos e encaracolados. Ela olhou para ele. Ele olhou para ela. Se apaixonaram na hora. Ele parou de tocar e pediu para ela acompanhá-lo. Ela não exitou. O percurso era curto. Ele abriu um portão de ferro, os dois atravessaram um corredor estreito e tudo se abriu para um casarão sombrio. Subiram para o quarto. Ele disse que precisava mostrar algo para ela - e apontou para um armário onde uma cortina substituía a porta. Ela chegou mais perto. Ele puxou o pano de uma vez. Havia dezenas, talvez centenas de imagens do Demônio. Os olhos dela brilharam. Ele voltou a tocar, agora uma música tétrica. Ela se virou com os olhos vermelhos e disse que também tinha uma surpresa. Pediu para ele abrir a porta do quarto. Ele abriu. Foi atacado por milhares de ratos esfomeados. Estavam também hipnotizados pela música.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
quinta-feira, 3 de dezembro de 2015
Embrulho
Deve ser meio-dia. Estou aqui deitado numa calçada pertinho da esquina mais movimentada da cidade. O sol está forte, mas sinto frio. Um cobertor fedendo a mijo e a cachorro molhado cobre todo o meu corpo. Acordei há pouco com a tagarelice de duas mulheres que estavam perto dos meus pés descalços. Não tomo banho há muitos dias. Na noite passada fui a um mocó num casarão abandonado. Tenho amigos e amigas lá. Tomamos álcool puro e fumamos algumas pedrinhas. O tuimmmmmmmmmmm me alucinou. Sei que houve uma briga por causa de mulher. Igual no tempo em que eu era ser humano normal. Saí de lá correndo porque achei que vi uma faca com lâmina brilhando. Não quero morrer. Ou quero? Não sei mais. Vim aqui para minha esquina, peguei o cobertor que estava escondido, deitei sobre as pedras que não me machucam mais - e dormi. Acordei agora. Uma das mulheres disse que eu parecia um embrulho de pobre. Me ofendi. Sou apenas um embrulho.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2015
Animais demais
Os gorilas mataram o jornalista. Enforcado. Inventaram um suicídio e divulgaram a foto. O menino não entendeu como alguém pode se enforcar sem estar pendurado numa árvore, como nos filmes de faroeste que via. A imagem era de alguém quase sentado no chão e o pescoço amarrado por um pano preso a uma grade de janela. Ele não entendia bem o que estava acontecendo, mas atravessou um bloqueio que fizeram no Centro da cidade grande para evitar que muita gente fosse à missa pela morte daquele que foi trucidado. Dias depois, sem querer, o menino entrou numa passeata desfeita a bombas, patas de cavalos e cassetetes. Aquilo o despertou. Lia as notícias e começou a entender que havia uma força enorme achando que uma força pequena fosse alterar o destino de um país continental, como diziam nas aulas de geografia. Mais tarde compreendeu que os dois lados estavam loucos - e que nenhum país acaba por isso. Os gorilas ficaram por muito tempo tomando conta do zoológico. Depois foram embora e outros bichos se apoderaram do comando. O menino já estava com cabelos grisalhos quando muitos daqueles que eram da força pequena chegaram onde os gorilas e os outros loucos chegaram - e também enlouqueceram. Ele então desistiu. Fez sua trouxa e foi para o mato, sem cachorro - porque de cachorrada já estava farto.
de repentes
De Roberto Prado
voos repentinos
poemas
tristes pétalas
desfaça as malas
belezas doem
se você quer
levá-las
voos repentinos
poemas
tristes pétalas
desfaça as malas
belezas doem
se você quer
levá-las
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
Pernas no bar
Me veio assim com sonoridade, com imagem, algo muito forte, como só poderia ter saído da boca dele, aquele moleque das quebradas do mundaréu que João Antonio tão bem desenhou em nosso imaginário. Mas eu peguei pelas beiradas, frase enviada lá de longe, do meio do sertão - e aí misturou tudo, como é neste país desde sempre. Veio voando, veio de trem, veio de Fenemê, veio de canoa de tronco, veio a nado, veio no vento, veio sendo passada por todos os brasileiros que estão nas janelas nas beiras de estrada, veio. Quem falou primeiro já se foi e deixou a marca saída lá do Bexiga, bairro paulistano. Perdido numa noite suja, deve ter se inspirado quando tomando umas e outras num boteco daqueles, rabo de galo na mão, um olho embaixo de outra mesa. Aí ele pensou e, quem sabe, falou: "Destrancou meu coração ao descruzar as pernas". E isso foi por aí, até chegar aqui e, de novo, ir por aí. Plínio Marcos.
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