segunda-feira, 30 de junho de 2014

Fifi

De Dalton Trevisan



O inimigo de futebol:

— O meu amor pela Fifi é maior que o amor pelo Brasil.

A doce pequinesa que sofre dos nervos com a guerra da buzina, corneta, bombinha, foguete.

Jackson do Pandeiro Frevo do Bi


16 de julho de 1950

Todos estávamos lá. E o silêncio ficou para sempre no coração de quem nasceu aqui, ou no Chui, só para rimar. Porque um time que tem Zizinho não perde nunca, ele ídolo do futuro Rei Pelé. Eu não tinha nascido, mas quando abriram a barriga da mãe, cortaram o cordão e abri os olhos, vi o silêncio do Maracanã naquela tarde de domingo. Um dia sem sol na cidade maravilhosa. Um dia negro a ser carregado para sempre. Um dia que se iluminou fugazmente com o gol de Friaça - e foi se apagando com Schiaffino e se atormentando com o chute de Ghiggia. Foi ali que Barbosa, o grande, morreu. E vi, quando abri os olhos alguns anos depois, que o disco do Maracanã levitou depois do apito final e, no céu do Rio de Janeiro, se fragmentou em milhões de setas venenosas que sempre estarão no ar sobre o país. Esperando o novo brasileiro nascer para inocular a dor daquela derrota e, assim, batizá-lo com uma grande lição de vida.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

quarta-feira, 25 de junho de 2014

Música Submersa

De Helena Kolody

Não quero ser o grande rio caudaloso
Que figura nos mapas.
Quero ser o cristalino fio d'água
Que canta e murmura
Na mata silenciosa

Caetano Veloso Alegria Alegria


Macunaíma voltou!

Renascer Macunaíma mas sem preguiça e fazer o que deve ser feito no sanatório geral brasileiro. Se não há como mudar o descaramento, bala! De Papo Amarelo, trezoitão, lata de goiabada, mosquetão. Baionetas a calar, peixeiras a rasgar, buchos fora para ver. Megafone na mão a percorrer toda essa imensidão e soltar palavras mágicas que entrariam como alucinógenos da verdade para que brasileiros rotos vissem o quanto já foram esfolados, estuprados, roubados e assassinados pela corja. Esta que usa perfume francês imaginando que isso tapeia o fedor do podre de suas almas. Tiros na cara, carótidas cortadas, cabeças decepadas. E não adianta clamar pelo respeito às leis porque estas só existem no papel - para serem levianamente interpretadas e julgadas por integrantes do grande bando. Granadas enfiadas goela abaixo e anus acima. Explosões de carne a manchar palácios, palacetes, coberturas, gramados de golfe, piscinas, banheiras. Depois, a calma, o voltar a ser, na certeza de que os que sobraram pensarão melhor depois de ouvir o demônio ordenar.

terça-feira, 24 de junho de 2014

Turíbio Santos Choro nº1 de Villa Lobos


máscara

De Sérgio Rubens Sossélla

e a máscara de mim
lá se acha presa no camarim
me esperando por mim


Meu pai que não era meu pai

Na cidade do sul do litoral baiano eu vi meu pai que não era meu pai. Há três dias que estava encostado naquela barraca que tinha um arco-iris desenhado e bebia feito uma criança nas grandes tetas maternas. Vodca. O mar era tão transparente que deu até vontade de cuspir nele para sujar um pouco tanta beleza. E havia cores fortes, uma luz de ferir os olhos. Foi quando meu pai que não era meu pai apareceu de repente e passou a uma distância de uns cinco metros. Descobri que era meu pai que não era meu pai porque nossos olhares se cruzaram e não desgrudaram. Quem desgrudou foi o tempo, que parou e nada mais existia fora daquele instante. Meu pai que não era meu pai tinha os olhos cristalinos feito bola de gude. Azuis bem claros, como meu pai que é meu pai. Meu coração disse que aquele era meu pai, mesmo eu vendo que não era meu pai. Então houve um sorriso da parte dele e aí todo o corpo se transformou e, agora sim, era meu pai em carne, osso e alma. Eu pedi a benção. Ele deu e disse fique com Deus. E quando terminou a frase voltou a ser meu pai que não era meu pai e foi embora. Eu bebi mais e dormi ali mesmo, ao lado do arco-iris. Quando acordei tive a certeza de que não morreria tão cedo. Meu pai que era meu pai morreu um tempo depois, mas demorou um pouco, e foi muito longe dali.

segunda-feira, 23 de junho de 2014

Para acreditar

Não tenho tempo. Nem invento. Vou com o vento, mesmo sem vento. Olho e não penso. Meto a mão no moedor. A carne é fraca, mas o espírito é para quem acredita. Onde estou? Sempre acho que somos uma invenção. Da gente mesmo. O problema é a maldita dor. Não quando nos furam, mas sim quando nos abandonam. E nascemos assim, porque lá dentro era tão seguro... Aí começa tudo num caleidoscópio maluco. Moto-contínuo a partir do combustível que jogam dentro da nossa cabeça. Faça, faça, não faça, permitido, proibido. Qual o sentido disso tudo? Entrei na igreja e descobri. Descobri que eles tinham descoberto a fórmula para o não enlouquecimento generalizado. Então, vamos acreditar. Até a morte chegar.

Parada cardíaca

De Paulo Leminski
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.


Sivuca e Chico e João e Maria


quinta-feira, 19 de junho de 2014

quarta-feira, 18 de junho de 2014

o poema como eu quero

de antonio thadeu wojciechowski

eu gosto da coisa real
centrada em si mesma
rica em efeito especial
lixa sob o fluir da lesma
uma puta poesia pura
água que pedra fura
alegria de mulher nua
coisa de quem acha
e não coisa de quem procura



Na penitenciária

Ficou diante do assassino e não sentiu nem um pingo de medo. Certo que estavam numa sala da penitenciária e ele tinha oficializado um pedido para conversar com o preso mais antigo dali. O encontro demorou, mas aconteceu. O homem tinha aparência de um trabalhador da roça curtido pelo sol, rosto seco e vincado, magrinho, baixinho, bigode bem cuidado. Estava ali há 20 anos e jurou inocência de tudo o que aparecia em sua folha corrida. Se estivesse sentado num banco de praça e conversando, não daria o mínimo sinal de ser um psicopata sanguinário que até criancinhas de colo tinha estripado. Era sua especialidade. Usava sempre faca de açougueiro, pois no passado trabalhou retalhando carne de bichos. O assassino não olhava nos olhos, talvez com medo de se entregar. Contou sem dor que ficaria ali até o fim da vida - e disse não temer ser morto lá dentro. Revelou ser protegido. Então o homem que foi ali conversar com ele para um trabalho acadêmico perguntou qual era a proteção que ele tanto confiava. Exu, disse o preso. E soltou uma gargalhada tão assustadora que uma vaca mugiu alucinada longe dali, um peixe se engasgou com a água e a roseira de uma dona de casa secou de repente. O sinal da cruz do visitante encerrou a conversa.

Deny e Dino em Coruja


segunda-feira, 16 de junho de 2014

Com certeza da incerteza

Sempre admirou os que pareciam ter certeza de tudo e se mostravam com iniciativa e coragem em qualquer situação. Ele, não. De tão encolhido tinha até uma corcunda, acentuada pela enorme quantidade de pelos que carregava nas costas. Chamá-lo de tímido seria um elogio. Não gostava nem de escolher o sabor do sorvete quando inventavam de levá-lo, à força, a um buffet. Se atrapalhava, se enrolava, um nada tomava conta da mente - e ele ruborizava a ponto de parecer estar perto de um ataque se havia gente estranha ao redor. Nunca namorou. Não porque não quis. Se apaixonava perdidamente, mas... cadê a coragem de se declarar para as musas? Teve até uma que se arrastava aos pés dele, mas de tão atrapalhado, fez o pior: pediu o tempo de um final de semana para pensar e, na segunda-feira, dispensou-a, depois de passar sábado e domingo sem dormir porque não sabia o que fazer. Tinha cinquenta anos quando foi a um circo e uma piada banal do palhaço operou o milagre. Hoje apresenta o espetáculo. Com toda pompa, voz empostada e sem nenhum medo. Mandou até fazer fraque e cartola dourados. Casou com a contorcionista da trupe. É um homem feliz. E desconfia muito de quem tem certeza de tudo.

palavras na mesa

De Roberto Prado


sombras se esgueiram
entre vírgulas
separadas por tontas sílabas
que se espantam

nesta mesa, caros amigos,
como em tanta véspera
o que ainda me separa
de minha santa ceia?

Robertinho e Chiquinho do Acordeon


sexta-feira, 13 de junho de 2014

quarta-feira, 11 de junho de 2014

É tudo o que sinto

De Paulo Leminski

Inverno
É tudo o que sinto
Viver
É sucinto

Dori Caymmi e a Doce Menina


Senhorinha

Minha avó tinha cara de índia, logo, era índia. Ela morava numa tapera e criou os quatro filhos sozinha. Um deles é meu pai. Meu pai não tem cara de índio. Tem cara, olhos e tamanho de holandês. Na terra dos baixinhos, ele era um gigante. Mas a dona do terreiro era minha avó índia. Ela pitava um cachimbo com fumo de corda dentro. Criava galinha, porco, vaca. Só não andava a cavalo porque era velha quando a conheci. Minha avó gostava de vestidos longos, escuros, mas com estampa. Ela só ria para os netos quando estes chegavam naquele oco de mundo. Ela tinha um cabelo muito comprido, mas penteava tudo pra trás e fazia uma trança enorme. Minha avó era muito bonita e rude. Ela tinha nome de música, mas a música só fizeram muito depois depois de ela ir embora. Minha avó só casou uma vez e jamais entenderia porque seus netos casaram várias vezes. Minha avó era índia e eu nunca soube de que tribo. Nem ela. Porque só eu sabia disso. Eu nunca agradeci a ela por pertencer à sua tribo. Eu tenho muita saudade dela e de seu sorriso só pra mim. A minha avó se chamava Senhorinha.

terça-feira, 10 de junho de 2014

Raul de Souza e Zimbo Trio


Coceira

Apareceu como uma feridinha perto do cotovelo. Ficou ali muitos anos. Ele coçando de vez em quando, ou seja, quando ela pedia para ser coçada. Coisa gostosa, rápida. Tanto que, depois ele que casou, à noite pedia para a mulher fazer isso. Depois de um tempo nem precisava falar mais. Só esticava o braço e ela desempenhava o serviço na medida certa, sem forçar, sem arrancar nada. Um dia pediram para que fizesse uma biópsia. Ele nem aí. Até que, certa vez, sozinho em casa, a coceira veio como nunca tinha acontecido antes, de modo avassalador. As unhas não bastavam. Ele ficou tão angustiado que pegou uma faca de pão. E arrancou aquela casca protuberante. Não saiu sangue. Um líquido estranho jorrou sem parar e começou a tomar forma onde caiu. Ele, petrificado, ficou ali olhando uma figura se materializar. Era ele, ou seja, outro ele. E no braço tinha a mesma ferida, só que aberta. Então, ele foi abduzido e entrou inteirinho por ali e nunca mais saiu porque a casquinha fechou tudo.

quinta-feira, 5 de junho de 2014

cuidado, período fértil

De Roberto Prado

Você lança qualquer coisa
sem saber que qualquer coisa pega.

Nem precisa ser semente
e já uma raiz me agarra
ergue-se um tronco
uma folha me escreve.

Não chego a dizer:
- coma, já que matou.
Tampouco digo:
- toma que o filho é teu.

Mas já que nasceu
sinta este perfume
coisa de Deus
que você plantou.





Maysa Meu Mundo Caiu


Incomodado

Veio como a descoberta da idade de muitas décadas. Oitenta. Até então era um menino na conversa consigo próprio. Nem a imagem nos espelhos o fazia dimensionar o número de anos. O que importava mais: a dificuldade em se levantar da cadeira e da cama ou a alegria expressa no assobio da canção do tempo da juventude? Passarinho come milho, periquito leva a fama. Riu ao lembrar disso, mas não foi aquela risada escancarada, tão alta que os vizinhos ouviam. Veio. Pensou na tristeza que, talvez, anteceda a morte. A verdade é que aquela força esfuziante que invadia o corpo, a mente, o pensar caleidoscópico, todos saíram de repente; foram embora naquela hora em que o calor do dia desapareceu e nuvens cinzas tomaram conta da janela através do qual ele olhava. Virou-se e, em volta, pela primeira vez, se deu conta que morava sozinho. Há muito tempo. Por opção. Por não querer incomodar ninguém. Agora, estava incomodado. E só podia ir embora para dentro de si mesmo.

quarta-feira, 4 de junho de 2014

Na represa

No tempo do Onça havia mato. E a represa que agora está seca era como um oceano a espera dos pescadores. No bairro suburbano o táxi era tão grande quanto um transatlântico. E lá foram o motorista, seu amigo e filhos e sobrinhos para dar banho nas minhocas retiradas do chão na aventura da véspera. Na escuridão da manhã, neblina e luz dos faróis desbravando o desconhecido. O cheiro dos sanduíches de mortadela tomavam conta do cenário. Olha o sol furando as copas das árvores! Um ao lado do outro, caniços a lançar linhas e iscas. O silêncio tinha peso. De repente, uma linha presa nas profundezas da água e o menino gordinho entrando ali sem nunca nem ter tomado banho de bacia. Os gritos de desespero a desmanchar tudo. O pai como salva-vidas para alívio geral. Tudo certo? Não. A volta antecipada. Dentro do carrão importado, o silêncio era mais ensurdecedor do que na espera do peixe a ser fisgado.

Caçador e vítima

De Miguel Sanches Neto

Escrever é caçar caranguejos
à maneira do guaximim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja  o crustáceo,
ele espera que este o morda
como suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
— a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaximim chora,
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca.
Contorcendo-se nesta emboscada,
o sabor e a cicatriz ele preliba
— a água na boca é a mesma das lágrimas.

Macalé Vapor Barato


terça-feira, 3 de junho de 2014

Juntos

Estava lá o menino sentado no pé da árvore. Sob ele e em volta, um verdadeiro tapete de folhas multicoloridas. O menino tinha um cabelo loiro e cacheado que combinava com tudo. Iluminava a cena com um sorriso de anjo inocente. Trinta anos depois quem fez a foto encontrou-a por acaso e foi tomado de uma sensação que não soube explicar. Foi invadido por algo que começou a varrer tanta coisa pesada e doída de dentro da alma que teve vontade de telefonar para o menino, agora adulto, e lhe agradecer. Entre o clique e aquela visão ele se perdeu em universos paralelos e amargou a solidão das catacumbas. Achava que não tinha vivenciado nada do que os filhos tinham lhe passado quando crianças puras. Às vezes imaginava que sofrera uma lobotomia que lhe arrancara as coisas boas, mesmo que raras, e ficado apenas com os pecados, a culpa da existência. Olhou de novo a foto. Telefonou. O filho ouviu e começou a chorar. Disse que, sim, guardava muitos momentos bons como aquele e que o melhor de tudo é que continuavam juntos, que sempre estiveram juntos, mesmo quando o pai estava ausente.

Marinheiro que parte

De Nelson Capucho

pauto o que posso
: é quase nada

componho navios
de meus destroços

inútil partitura
meus ossos

dos sonhos
restarão rastros?

Waldick Soriano Tortura de Amor


segunda-feira, 2 de junho de 2014

Olho aberto

Não tenho mais tempo. O que é o tempo? Me sufoca pensar que daqui a pouco já foi ontem. Alguém já escreveu isso? Mais uma dúvida no mar de interrogações que me afogam desde que vi a imagem da santa. Sim, era minha mãe e ninguém precisou dizer que era ela porque eu senti. Aí começou! Se fosse permitido não sentir... Me deram uma cartilha que, ironia, se chamava Caminho Suave. Tudo piorou. Todo o universo de informações inúteis caiu em cima e aí eu raciocinava e sentia com palavras, o código de deixar ainda mais louco. Se ao menos houvesse uma uniformidade, um sentido no sem sentido, mas não! As cobranças internas eram maiores do que as externas, mesmo porque papai fechado e não falava, só olhava. Descobri tarde demais que o segredo estava ali naquele olhar. Mas aí ele estava morto e eu não pude perguntar. Apenas olhar para seu olho aberto no corpo inerte. Não chorei. Não sorri. Apenas olhei e fiquei a esperar o meu dia.

subtrações

De Roberto Prado


que tal pegar tudo que temos
e deste todo fazer a grande falta
um salto que cai, uma queda que salta
essa soma assim sem mais nem menos?
por que não juntar o nosso nada
o eterno que move, o nunca que repousa
e fazer destas perdas somadas
o achado de alguma coisa?

Maria Bethania e Gilberto Gil Lamento Sertanejo