quinta-feira, 30 de outubro de 2014

Sabiá

De Dalton Trevisan

O trino do primeiro sabiá acende o sol na janela.

Maria Bethania As canções que você fez pra mim


Nos enterros

Gostava de ir a enterros. De qualquer um. Conhecido ou não. O motivo não era mórbido. É que tentava entender porque na hora em que o caixão baixava, ou quando começavam a jogar terra em cima, ou quando uma tampa de cimento fechava a chamada última morada, sempre tinha alguém gritando “eu quero ir junto!” – ou algo parecido. Mas ninguém ia. De tanto ver isso, começou a bolar um plano para satisfazer o desejo dos vivos. Esperava o defunto ser comido pelos vermes, sequestrava a/o escandalosa/o, dopava e enterrava junto ao ente querido. Um dia morreu sua amada. No enterro ele também gritou que queria ir junto. À noite foi ao cemitério e se enterrou – para pagar os pecados.

quarta-feira, 29 de outubro de 2014

Perto do osso a carne é mais gostosa

De Paulo Leminski


Sossegue coração 
ainda não é agora 
a confusão prossegue 
sonhos a fora 
calma calma 
logo mais a gente goza
perto do osso 
a carne é mais gostosa.

Zeca Baleiro Lenha


Mandacaru

O pai lhe entregou uma caixinha de madrepérola no leito de morte. Disse para ele só abrir passados dois anos do enterro. Obedeceu. Até imaginou ser alguma pedra preciosa, ou um bilhete com declaração de amor nunca foi feita. Não era nada daquilo. Um espinho grande estava acomodado sobre um veludo preto. Embaixo do pano, duas palavras: cegou Lampião. Lembrou da história que o velho sempre contava. O bandido/herói perdeu a visão de um olho por causa de um mandacaru na caatinga. Durante um tempo ele abria a caixa e olhava o espinho. Até que um dia teve uma ideia que não sabe de onde veio. Engoliu o tal acomodado dentro de um bombom Sonho de Valsa. Logo depois sentiu uma pontada. Imaginou que o espinho tenha se instalado em alguma parte do seu aparelho digestivo. Na primeira crise de raiva que teve, a dor naquele local foi imensa, parecia que estava sendo furado de dentro para fora por um punhal. E ele saiu quebrando o que lhe parecia ser inútil - de objetos a pessoas. Ficou assim durante anos, até que a dorzinha e a dorzona passaram. O espinho tinha ido embora. Pouco tempo depois a fossa da casa explodiu. 

terça-feira, 28 de outubro de 2014

Clara Nunes O Mar Serenou


De cotonete

Nunca esqueceu o personagem de Agildo Ribeiro que, machão total, desmunhecava todo ao introduzir um cotonete no ouvido direito. Achava engraçado, mas ficou preocupado no dia em que ficou em frente ao espelho e fez o mesmo. O efeito foi ao contrário. Ele virou um bicho tão feio, mas com a mesma aparência humana, que a primeira coisa que fez foi esmurrar a imagem refletida, transformada então em várias com o estilhaçamento. Notou que não sentiu dor na mão - e isso o incentivou a fazer um teste com o vizinho que considerava inimigo. Apertou a campainha, o outro apareceu com cara de quem está a fim de brigar por nada. Ele imediatamente sacou um cotonete do bolso, encaixou no ouvido, girou e, quase que automaticamente, o golpe com a mão encaixou no queixo do infeliz, que desabou feito o Maguila depois do coice que tomou do Holyfield. Tirou o cotonete, voltou para casa e depois ouviu a sirene da ambulância que veio buscar a vítima. A sorte é que ninguém viu. Como gostou da experiência, saiu distribuindo porrada em skinheads, integrantes de torcidas uniformizadas, policiais torturadores, ladrões oficiais ou não. Até o dia em que foi mexer com um fiapo de gente que tomava um copo de leite numa padaria. Tinham lhe informado que era um serial killer. Ele acreditou. Ao chegar perto, colocou o cotonete e, antes da viradinha, levou um tapa bem na orelha da transformação. Uma radiografia feita horas depois mostrou a ponta do cotonete encaixada numa parte do cérebro - e sem possibilidade de ser removida sob risco de morte instantânea. Ele sobreviveu, com lucidez, mas jamais conseguiu reverter o desmunhecamento na direita e na esquerda.

segunda-feira, 27 de outubro de 2014

Dois

De Sérgio Rubens Sossélla


um passarinho
e uma borboleta
?o que eles são?
dois vôos.

Paulo Sérgio Amor tem que ser Amor


A cadela e as unhas

O pulmão falhou e ele foi parar na UTI. Uma semana ali, no oxigênio, ouvindo gritos de dor, vendo e sentindo a enfermeira com cara de criança passar duas horas para achar uma veia a fim de coletar sangue. Saiu e, na recuperação, começou a pedir coisas. Uma delas é que gostaria de ver e ser visto pela cadela de estimação pela internet. Ainda não se sabe qual seria o diálogo. Quis também o cortador de unhas e deu as indicações de onde encontrá-lo no armário do banheiro da suíte onde dorme sozinho, pois viúvo é. Quem foi procurar começou a rir sozinho ao ver o aparelho de metal, daqueles grandes. Estava dentro da embalagem original e, num canto, estava escrito, na primeira pessoa, que quem o tirasse daquela "casinha" de plástico transparente tinha de devolvê-lo. O enviado especial para a missão riu porque, naquele banheiro, ninguém da casa entrava, apenas o animal. Ao entregar o cortador, perguntou para o dono: "A cadela já sabe ler?" Diante do espanto do outro, completou: "Porque só ela é que entra ali e, por enquanto, ninguém viu o animal cortando as próprias unhas".

quinta-feira, 23 de outubro de 2014

No parque

De Helena Kolody

Corrida no parque. 
O menino inválido
aplaude os atletas.

Quarteto Novo Algodão


No filme, na mata

Os olhos do garoto olhando para o céu e morrendo lentamente encantaram. O ônibus abandonado no meio do nada, longe de tudo e de todos. Era um filme, mas baseado em vida real. Ele resolveu que faria o mesmo. Não por causa das outras pessoas. Por causa dele mesmo, que não aguentava as outras pessoas. Não houve tarja preta que o aprumasse. Resgatou a mochila de lona verde comprada anos atrás numa loja de material para militares. Não colocou nada dentro - e foi. De carona, como nos tempos de Woodstock ou, para ficar no país, de Águas Claras. Chegou a uma reserva da Mata Atlântica e se embrenhou. Claro que não iria achar um ônibus abandonado, mas depois de três dias avistou uma barraca tipo iglu no alto de um morrote. Foi até lá. A vista era linda. Ele abriu o zíper da casinha. Havia dois esqueletos abraçados. Estavam dentro de um saco de dormir. Ele encostou-os num canto e deitou ao lado. Não teve medo. Só ficou pensando em quanto tempo chegaria àquele visual. Escureceu. Uma chuva fina caiu.

quarta-feira, 22 de outubro de 2014

Angela Ro Ro Amor Meu Grande Amor


Musas

De Roberto Prado

anos a fio dando ouvidos
a deuses muito discretos

amigos, amigas, amiguinhos
se sou mero objeto de meus afetos
quem é aquilo sozinho que vai
tropeçando em meus versinhos

A hora certa

Uma vez um amigo lhe disse que, às vezes, é melhor não fazer a fotografia daquilo que a alma pede, mesmo com a câmera na mão. Alguns momentos são para guardar na memória, na alma, no coração. Pensou nisso antes e durante a viagem por lugares que só via em filmes, em fotos, ou descritos nos livros que consumia vorazmente. Mas eram tantos, no curto espaço de tempo permitido pelo dinheiro, que, ao final de cada dia, anotava numa pequena caderneta o que tinha a ver com ele, o que lhe abria as portas da emoção. Voltou para casa e colocou o caderno em cima de uma estante. Nunca mais abriu. Sabia que ali estavam grafadas as palavras que iriam reabrir lugares, coisas, gentes, mas numa outra dimensão - que nem imaginava. Deixou ali, porque também tinha suas teorias, como a do amigo. Para ele, a hora certa chegaria. Ou não. Mas isso era outra história.

terça-feira, 21 de outubro de 2014

Luiz Melodia Pérola Negra


espelho

De Paulo Leminski

acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver
meu sonho virar pesadelo

Divorciado da realidade

Andava meio perdido na calçada e se deu conta de que a porta da igreja estava aberta. Parou. Viu então o padre de barbas longas e corcunda acentuada. Pensou que era uma benção divina. Perguntou se poderia se confessar. Não fazia isso há décadas. O velhinho olhou para ele e quis saber seu estado civil. Ele tinha perdido a conta de casamentos desfeitos, mas lembrou que, oficialmente, havia um papel que o carimbava oficialmente como divorciado. Era assim que preenchia aquelas papeladas que pedem este tipo de informação. O padre disse que ele não poderia contar os pecados, muito menos comungar no dia seguinte. Lei da igreja. Ele perguntou se, por causa disso, iria queimar eternamente no inferno, já que vivia em outro aqui na Terra. O padre não gostou da pergunta - virou as costas e sumiu na escuridão da nave. Ele ficou parado ali, sob o sol, e imaginou outra cena. Nela dizia ao sacerdote que, sim, era casado no Civil e na igreja; entraria para contar os pecados e o primeiro seria o da mentira. Tinha mentido para poder confessar. Começou a rir da situação e descobriu que o cinza sumira da alma. Sorrindo, entrou numa padaria e comprou um sorvete. Chicabom.

segunda-feira, 20 de outubro de 2014

Mosca

De Dalton Trevisan

De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe — uma semente negra de mamão.

Sá, Rodrix e Guarabira Sobradinho


Cinto muito

Cinto muito. Cinto tudo. Cinto. Ele ganhou de um amigo. Há muitos e muitos anos. Nunca mais quis saber de outro. Pensou nisso recentemente, quando foi tirar a bermuda junto com a cueca, de uma vez, sem desafivelá-lo. Não foi muito difícil. Barrigudo, a vestimenta estava no pé da barriga, como falam os nordestinos. Ele então olhou para o cinto, de uma marca de skatistas, coisa que nunca foi e nunca será, mesmo porque chegou aos 70 anos e dá graças a Deus estar vivo. A tira de couro que era preta, perdeu a cor, ficou meio fora do prumo, pedaços das linhas do pesponto penduradas. O cinto da preferência aguentou tudo - e nunca foi tirado para bater em inimigos, apesar de ele ter vontade de fazer isso. No guarda-roupa, pendurados, vários que ele comprou neste tempo. Nunca foram usados. Achava que seria uma traição para com aquele velho companheiro. Então ele desafivelou e o tirou das garras dos passadores da bermuda. Fi com ele entre as mãos, olhando enternecido o companheiro. Saiu dali e mandou mensagens para os filhos. A ordem era para que o cinto estivesse junto na hora da cremação.

quinta-feira, 16 de outubro de 2014

Desgoverno

De Helena Kolody

A morte desgoverna a vida.
Hoje sou mais velha
que meu pai.

Garlos Galhardo Mais uma Valsa, mais uma Saudade


Na paisagem

A mulher gritou, a filha nasceu, um pássaro voou, ele chorou. Lavou o rosto na água fria do balde. O coração estava aos pulos porque era a primeira herdeira. Ele olhou o pé de manga centenário ao lado da casa. Cachos da fruta ainda verde faziam ele sentir o gosto da fruta. Um bezerro mamava na vaca no cercado. Mais adiante os pés de mandioca denunciavam a hora próxima da colheita. Fim de tarde. A parteira apareceu na porta e perguntou se ele não ia ver a filha. Gritou que ela era saudável e a mãe estava bem. Os olhos marejaram. Ele tomou coragem e foi ver a menina. Mas antes um pé de vento fez um lençol branco quase alçar voo no varal atrás da casa humilde. Foi lá tirá-lo. Viu então o bichinho verde. Gafanhoto lindo parecendo folha estilizada. Estava grudado no pano branco. O vento passou. Ele deixou tudo lá. Entrou com o nome da menina na boca. Olhou para a mulher, para a menina, pegou-a no colo e disse: "Esperança".

quarta-feira, 15 de outubro de 2014

de colchão

De Paulo Leminski

De colchão em colchão
Chego à conclusão
Meu lar é no chão

Camisa de Vênus Deus me dê Grana


De dentro da jaula

Tá olhando o que? Nunca viu um macaco? Você é eu ontem, coisa feia. Pensa que é inteligente. Pois sim! O que está fazendo com o nosso Planeta? Não o do filme, aquela besteira que só os idiotas dos americanos poderiam inventar. Planeta Terra, onde ainda existem algumas regiões que não foram destruídas pela voracidade de vocês, bichos pelados e vestidos. Idolatram carros, vê se pode? Se matam em acidentes, ficam horas parados em engarrafamentos adorando as tranqueiras que os outros palermas vendem como "tecnologia embarcada", poluem tudo - e ainda olham felizes o monte de lata com um motor dentro quando vêem a propaganda na tv. Aí, pensam: "Eu tenho um desses!" E riem! Imbecis! Meu transporte era o cipó. Era. Um dia fui preso por vocês e me jogaram aqui para eu ser apreciado como se fosse um palhaço ou, quem sabe, uma aberração da natureza. Por isso, quando me enche o saco, jogo merda em quem estiver na frente da jaula. E não me olhem com pena! Quem tem que ter pena aqui sou eu. Cambada!

terça-feira, 14 de outubro de 2014

o sol

De Marcos Prado
      o sol  
      do outro lado 
      da cidade parecia 
      iluminar 
      a china
      simples: 
      abri 
      a cortina

Nonsense

Nonsense. Ele não sabia direito que diabo era aquilo, mas gostou do som. De súbito, lhe veio o complemento que poderia ser... Ah, dane-se. Tascou no caderno espiral onde anotava essas coisas vindas não se sabe de onde: Nonsense. Não Pense. Faça. Virou a página, deixou ali em cima da cama, olhou um poster de Hendrix, colocou Alberta Hunter em vinil na vitrola, saiu para tomar um gole de água do filtro de barro na caneca de alumínio, abriu a porta de trás, viu o quintal com o mato tomando conta de tudo, sorriu por dentro, de felicidade, voltou, olhou o caderno de novo. Nonsense. Foi a um dicionário: Expressão, linguagem ou situação ilógica, absurda, desprovida de sentido ou de coerência. Riu de novo. Agora sabia. Então, fez: apagou tudo.

Baden Powell Tristeza


segunda-feira, 13 de outubro de 2014

lá embaixo

De Paulo Leminski

lá embaixo
vai ter
o que eu acho

Zizi Possi Caminhos do Sol



No abismo do mar

Desceu a rampa de concreto bem junto a uma das paredes. Noite escura. Ali, durante o dia, era o caminho dos barcos daquele clube. A água chegou-lhe às canelas e não havia mais parede. Ele foi tateando com os pés, como se atraído por uma força estranha. A curiosidade, pensou depois do susto. De repente, nada sólido embaixo. Ele afundou como uma pedra. Se apavorou. Não sabia nadar. A água turva era como uma venda. Começou a bater os pés antes de tocar o fundo - se é que ia tocar. Acelerou mais que as batidas do coração e foi subindo até a cabeça sair fora d'água. Descobriu então que tinha fechado a boca antes de entrar totalmente no abismo de água. Aprendia ali o que é o instinto da sobrevivência que, mais tarde, iria surgir de novo, em outras situações diferentes. Nunca contou isso. Era seu segredo. Poderia ter morrido, mas aprendeu a nadar.

quinta-feira, 9 de outubro de 2014

Se o Corpo Abandonar Minha Alma

de Marcos Prado
 
           
           
      se o corpo abandonar minha alma 
      não tenha de mim uma idéia falsa 
      não chore,mantenha a calma 
      estou morto por minha causa cuidado:assim como sua mala 
      o meu caixão não terá alça 

Zé Paraíba


Na loca

No dia em que viu o vizinho sair com a calibre 12 e atirar para esbagaçar um canário que cantava no pé de uma árvore, ele achou que era o momento. Não disse nada em casa. Pegou a estrada de chão e caminhou na direção da serra que sempre via quando abria a janela da casinha do sítio logo que o galo cantava. Andou, andou, atravessou um riacho quase seco, olhou a pastagem pegando fogo, o gado magro, uma mulher jogando milho para as galinhas e pintinhos no terreiro da casa. Do alto do morro cada vez mais aumentava o olho da loca. A loca é um buraco. Ele subiu pelas pedras, se arranhou em espinhos, mas chegou lá. Entrou. Não havia bicho algum. Só ele. Bicho homem desiludido com tudo. Entrou até o fundo, sentou, ficou olhando a luz desaparecer naquela boca aberta da entrada. Dormiu. Acordou. Assim ficou até perder os sentidos. E morrer. Convicto de que o ser humano vai acabar com a Terra, mas ainda acreditando que a Terra iria virar o jogo para a paz reinar novamente.


quarta-feira, 8 de outubro de 2014

marmanjos

De Luiz Solda

somos adultos
tão marmanjos
pra que ficar discutindo
o sexo
de augusto dos anjos?


Dorival Caymmi Marina


Ao som dos atabaques

As seringas com as doses estavam prontas na bolsa que deixou no carro. Ele tomou um pico antes de chegar naquele lugar. Estacionou. Ouviu ao longe o som de batuques. Entrou. O espaço estava lotado. Ele ficou com vontade de voltar e injetar mais cocaína. As arcadas dentárias travavam uma luta. Grudadas. Um anjo vestido de branco o viu e o chamou. Levou ao senhor de cabelos grisalhos. Ele estava sentado. Olhou na alma daquele que nunca tinha visto antes. Este se acalmou um pouco. O senhor falou como a entidade que tinha baixado. Ele ouviu e nunca mais esqueceu. Ouviu que estava muito atrapalhado, mas que sairia daquilo. Que iria pairar sobre as pontas espinhosas. Ele saiu, pegou o carro e atravessou a noite injetando mais. Anos depois retornou ao mesmo lugar. Ouviu o som dos atabaques, prestou atenção nas letras das músicas, sentiu de novo a força do mar, das matas, das cachoeiras, das pedras... E viu o mesmo santo rindo e dizendo feliz que o menino tinha dado trabalho, mas conseguido.

terça-feira, 7 de outubro de 2014

Elogio

De Dalton Trevisan

- Me chamou de putinha. É o que sou?
- Que nada. Isso é carinho.


O poço

O poço atraía. Porque toda a família recomendava às crianças daquelas casas amontoadas num mesmo terreno que ali era perigoso. Havia uma estrutura, uma corda enrolada num carretel de ferro já meio enferrujado - e a manivela que fazia o balde descer e subir. Para descer soltava-se tudo. Lá de baixo vinha o barulho do encontro com a água. Tchibum! Depois alguém arfando e puxando a água. Aí tudo era fechado e o poço ficava lá, atraindo. Um dia deixaram a sua boca aberta. O menino foi lá olhar para as profundezas da escuridão. Viu seu reflexo. Achou que era outra pessoa. Aquilo era mágico. Ele, então, voou. Para baixo. Para cima. Para onde?

Cynara, Cybele e Sabiá


segunda-feira, 6 de outubro de 2014

Obediente

De  Antonio Thadeu Wojciechowski

sobe e desce
              o elevador
               só obedece


Leandro e Leonardo Doce Mistério


De repente

Um dia deu o pandeiro para a namorada. Ela gostava, mas nunca o tocou. Toda vez que ia à casa dela, olhava-o ali exposto numa estande. O couro tinha umas manchas do bicho e um carimbo escrito contemporânea. Ele reparava nisso e naquelas orelhas de lata -  ouvia um som que parecia vir de longe, lá do fundo de sua mente. Um dia, escondido, pegou o instrumento, sentiu-o na mãos e, num canto da casa que estava vazia, bateu. O coração pulou. Ele bateu de novo. E aí começou a tocar num ritmo que fazia seu pé direito acompanhar. Se flagrou cantando no compasso - e contando uma história que também vinha lá do fundo da alma e tinha a ver com a vida vivida, a vida real. Descobriu, então, de repente, que era um repente. Aí foi para a praça tocar.

quinta-feira, 2 de outubro de 2014

Choro na tela

Foi tirar um cochilo depois do almoço, mas chorou antes. Viu uma coisa na tv que não acreditou - mas acreditando. Algo que um dia pensou fazer quando era menino sonhador, mas não conseguiu. E achava que seria impossível, depois de ver tanta coisa ruim durante sua longa existência. História real em forma de documentário ou algo parecido. Os dois irmãos se enfiavam em locais onde seres humanos ajudavam seres humanos. Trabalhavam, faziam amizade, detectavam a alma daquelas pessoas. Depois de um tempo, iam embora, pensavam e apareciam de novo com seus  ternos bonitos. Abraçavam de saudade verdadeira aqueles velhos amigos. E revelavam: eram milionários de nascença. Como tinham gostado do que viram, perguntavam se podiam contribuir financeiramenbte para que continuassem o trabalho humanitário. Invariavelmente todos choravam. E ele chorou também. De alegria por descobrir pessoas que fizeram o que não pode fazer. Mesmo porque estava num local onde ajuda era vital - e nunca chegou.

Zé Ramalho Admirável Gado Novo


quarta-feira, 1 de outubro de 2014

O brilho

De Helena Kolody

O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.

Vingança

Cansou! Cansou de ser preterido pela maquininha. Cansou de ver crianças, moços, velhos, todos enfim, com os olhos grudados na telinha e/ou digitando mensagens sem parar, ou falando sem parar, como se estivessem transmitindo o anúncio do fim do mundo. Em todos os lugares, públicos ou privados. Em todas as cidades que visitou além da sua. Cansou de ver lançamentos em cima de lançamentos com a última e mais aloprada geringonça tecnológica. Não havia mais as pessoas normais conversando pessoalmente, olho no olho, abraço no abraço. Era tudo na maquininha. Foi então que lembrou do Dr. Phibes e suas vinganças magistralmente perpetradas por Vincent Price. E inventou! A coisa mais moderna, que deixava todos os outros aparelhos no chinelo. E bastava apenas um toque para que o furador de gelo prateado surgisse para varar o crânio do curioso pela última novidade da era moderna.

Kleiton e Kledir Maria Fumaça