quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Perneta

De Dalton Trevisan

Dou com um perneta na rua e, ai de mim, pronto começo a manquitolar.

Dorival Caymmi, Gal Costa e Só Louco


Alma inundada

No meio do mato do fim do mundo ele vivia. Criado como bicho, como se diz no Brasil pouco conhecido. Andou descalço até os vinte anos. A sola dos pés se transformou em casco. Nunca viu uma letra escrita. Sabia a letra falada e era poeta. Tinha delírios, como dizia a mãe, quando desandava a falar sobre bichos, árvores, rios, nuvens. Os olhos eram verdes. Às vezes dava vontade de chorar. Acontecia assim, do nada. Ele só sabia que sentia um aperto no meio do peito, subia para a garganta... E ele corria para um canto onde nem pai, nem mãe o viam. Depois voltava aliviado, olhava para os dois e sentia algo bom, mas não sabia o que era. Eles um dia morreram e ele foi embora. Chegou na cidade e viu uma barraquinha de churros. Achou estranho. Viu que as pessoas comiam aquilo. Pediu um. E tudo que ele tinha na alma desapareceu na inundação do doce.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2014

M. de memória

De Paulo Leminski


Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.


Orlando Silva A Última Estrofe


Detonador

Parou de beber porque parou de beber. Estava morrendo. Não sabia disso pois quem bebe assim está no universo paralelo. Estoporou-se todo em brigas, batidas de carro, comas alcoólicos, prisões por desacato aos policiais, etc. Foi amarrado e internado. Ouviu uma palavra e a ficha caiu, como dizem os que conseguem puxar o freio e retomar o controle da carroça. Há quarenta anos estava se embriagando de água, suco e café. Decolou para a vida e o buraco do inferno para ele era uma lembrança apenas para se manter longe dele. Numa madrugada depois de um estafante trabalho, ao voltar para casa entrou num posto de gasolina e na loja de conveniência viu uma lata de energético diferente. Embalagem bonita, coisa da amazônia, com desenho de guaraná. Comprou. Estava gelada. Foi tomando de canudinho enquanto dirigia para casa. Achou o gosto forte. Entrou em estado de alucinação na estrada que o levava até a chácara onde morava nos arredores da cidade grande. Viu uma sereia sair de um brejo. Uma estrela cadente iluminou uma favela. Alguém o ultrapassou numa bicicleta a jato. No rádio do carro ouviu Hendrix cantando em português e Chico Alves berrando Simpaty for the Devil, acompanhado dos Stones. Conseguiu chegar em casa. Dormiu. No outro dia foi olhar a tal latinha. O teor de álcool era altíssimo. Ele se assustou. Telefonou para o psiquiatra. Ele disse que aquilo era normal e que só seria preocupante se no outro dia ele fosse atrás do mesmo detonador.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Sonhador desprevenido

De Nelson Capucho

ninfas
mênades
sereias
surpreendem no quarto azul
o bêbado de cueca e meias

João Gilberto Louco


Gengivão

Ao abrir a boca e mostrar que ali não havia dentes, só gengivas, a plateia ficou atônita. Sempre acontece isso. Sobrevivo de palestras, ganho muito dinheiro, mas tenho medo de dentista e não quero usar perereca. Meu tema principal é saúde - e o paradoxo é que me faz famoso. Meu apelido é Gengivão. Não ligo. Mostro logo porque estou ali e, depois do primeiro impacto, vou ganhando tudo com a minha lábia. Sou mestre e, no fim, muita gente me aplaude e alguns, demonstrando intimidade, perguntam como consigo beijar as mulheres. Não respondo. O mistério faz parte do sucesso. Perdi os dentes porque me confundiram com um estuprador. Primeiro foi uma pancada com barra de ferro. Depois arrancaram o resto com a ponta de uma faca enferrujada. Eu não tinha nada a ver com aquilo. O anormal foi preso tempos depois e eu fiquei com a boca de molho durante um bom tempo, ou seja, tomando café de canudinho. Foi aí que tive a ideia das palestras. Não me perguntem como. Veio. E comecei a falar do quanto é fundamental tratar da saúde, a começar pela bucal, como dizem os dentistas. Sinto falta dos meus dentes, sim. Olho as fotos antigas e, às vezes, me vem à lembrança o quanto eles eram fortes para destrinchar uma picanha ou abrir garrafas. Mas isso é outra história. Estou pensando em escrever um livro sobre minha experiência, mas sempre adio a empreitada porque começo a rir assim que sento na frente do computador. O problema é que todo vez que acontece isso eu começo a babar.

segunda-feira, 15 de dezembro de 2014

retalhos de nós mesmos

De Wilson Bueno

Lancinantes os bicos-pássaros
Com que vos fura o túmido ventre
Já cadáver de nós e de nossa víscera
O que chamamos Amor, suas anáguas,
Festim de lírios, zumbir de abelhas
O que de Amor foi enlevo e até cansaço
– Mesmo o açoite e as costas em brasa? –
Se fomos um no Amor consorte
E hoje somos, Amor, retalhos de nós mesmos,
Pobres panos, chita, organdi, seda rala
E foi Amor, sim, que nos fez tão inimigos!

Agnaldo Timóteo, Angela Maria e Mamãe

a

Pátria mamada

Pátria mamada que me pariu! Como posso viver sóbrio nessa terra manguaçada, perdida, desvirtuada, estuprada, estapeada, esfaqueada, virada pelo avesso, cuspida, pisada, saqueada? Nasci no fundo de um poço de desejos, como disse um poeta, mas ao levar o tapa na bunda arregalei os olhos e comecei a ver em que inferno tinha me metido. Quis voltar para o útero, e nem os outros úteros que frequentei aliviaram a minha dor de ver tanta pobreza na riqueza jeca e tanta miséria na pobreza ignorante. Pátria mamada que me pariu! O que eu poderia fazer se não acompanhar o seu porre constante, burro, achincalhado, esculachado, escarrado, escancarado? Bebi álcool puro aos oito anos e me senti inserido no contexto. Foi como incendiar minhas veias, inchar o coração e começar a apodrecer o fígado para viver no universo paralelo que é sua realidade. Agora estou prestes a ser enterrado nas suas entranhas, minha pátria mamada - e peço desculpas pelo que não fiz, porque você não conseguiria ver, nem aprovar, nem nada.

quinta-feira, 11 de dezembro de 2014

Rildo Hora


Saudosa Amnésia

De Paulo Leminski

Memória é coisa recente. 
Até ontem, quem lembrava? 
A coisa veio antes, ou, antes, foi a palavra? 
Ao perder a lembrança,
grande coisa não se perde. 
Nuvens, são sempre brancas. 
O mar? Continua verde.

Navalha

O lado mau dele aparecia apenas de uma maneira: quando lia notícias políticas. Fazia isso por dever de ofício, afinal, funcionário público, assessorava quem ele odiava ao ler as mentiras faladas, a desfaçatez, a cara de pau, a ladroagem travestida em ações para melhorar a qualidade de vida do povo. Era assim que vomitavam todos, quase sem exceção. E quando o lado mau dele tomava conta, ele abria uma gaveta onde, às vezes, um raio de sol que atravessava a persiana da janela da repartição refletia na lâmina da Solinger. Uma navalha, sim. Cabo de madrepérola, aço com largura suficiente para abrigar o desenho de uma caveira trespassada por duas tíbias, coisa que tinha visto num escudo pregado no braço de um policial. A ação era rápida. O corte, suficiente. O jorro de sangue imitava filmes de samurai. Pescoço. Carótida. Sempre acordava nessa hora. Não sabia como, depois da ação, resolveria o problema da sujeira. Mas tinha certeza que parte do problema da sujeira maior desapareceria com a lâmina cortando, cortando, cortando...

quarta-feira, 10 de dezembro de 2014

cinismo

De Nelson Capucho

meu cinismo é uma
FLECHA
disparo e me disperso
droga: perdi outro verso

Maria Alcina Fio Maravilha

F

Microfone

Parou na frente da plateia e ficou quieto. Esperou o silêncio completo. O auditório da faculdade estava lotado. Ele era um especialista. Não sabia em que, mas o cartaz espalhado no campus, sim. Esperou mais. Todos olhando. Os professores que o ladeavam começaram a se mexer nas cadeiras. O microfone sem fio estava em sua mão direita. Ele esperou mais, esticou a expectativa até o máximo. Foi então que começou a falar. Disse que tinha perdido aquela noite de sexta-feira para atender ao convite do amigo que estava ao seu lado. Balançou a cabeça negativamente. Aí disparou uma pergunta: "E o que me dão assim que fico diante de vocês?" Os jovens universitários não entenderam nada. Também não falaram e nem perguntara o quê. Aí ele esticou o braço direito e mostrou o microfone que tinha um corpo preto e uma cabeça metálica bem saliente. Ao mesmo tempo, soltou um berro: "Isso!!". Todos caíram na gargalhada. Ele então lembrou do comediante Costinha e suas brincadeiras com todos os tipos de microfones/fálicos. Só depois começou a palestra.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Chuva

De Dalton Trevisan

A chuva engorda o barro e dá de beber aos mortos.


Roberto Carlos Quero que vá tudo pro inferno


Sistema alucinógeno

O menino estava deitado no chão da sala. Apagado. Tinha derrubado uma xícara que estava ao lado. O café com leite fez uma mancha que, nos filmes policiais, sempre é um lago de sangue escuro. Ele foi ali a pedido da mãe, para tentar conversar com o rapaz. O guri tomava drogas alucinógenas desde os 13 anos. Aos 16, saiu da casinha, como se diz. Ele esperou o corpo acordar e viu que o cabelo estava cortado no estilo moicano. Brincou que invejava, mas não podia fazer aquilo pois a parte que era para ficar espetada já tinha ido embora há muitos anos. O menino era dócil, mas falava com uma energia que o visitante temia ver uma baba começar a escorrer e não parar mais. Foram para o quarto do garoto que amava LSD e cogumelos. A mãe tinha arrumado a bagunça. O menino usava o "tá ligado" para cada palavra de uma frase. Tinha abandonado a escola, procurava algo nas "viagens", disse. Ouviu o visitante revelar que nunca tinha tomado droga alucinógena porque morria de medo de não voltar. O guri não entendeu e contou que fazia aquilo para contestar o sistema. Ele ainda tentou uma última cartada dizendo que, depois que cortou todos os embalos, tinha ficado muito mais louco - só tomando água. O moicano insistiu na luta contra o sistema. O louco do H2O se emputeceu e vociferou que o grande pilar do sistema era a família - então perguntou para o guri porque ele não se mandava da casa, recusando ser sustentado pela mãe que lhe dava café com leite e bolachinha recheada quando voltava das viagens. O moicano se fechou, virou as costas, deitou na cama, se enfiou embaixo de um cobertor e cobriu a cabeça.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Oriente-se

De Nelson Capucho

piso o roxo dos ipês
tudo me parece normal
grilos
inverno
carnaval

Tom Jobim Insesatez


Opala na cara

Ficou bem humorado só depois de muita estrada da vida. Por isso gostava de contar a história de que tinha aparado um Opalão com a cara e a coragem. Bem, coragem regada a muita caipirinha e cerveja. Sua especialidade era lavar o carro todo sábado. Amava aquilo. Ou amava a trabalheira junto com a manguaçada. Enfim, a caranga ficava um brinco para a semana, porque até as rodas ele tirava para dar um trato ali por dentro. Foi numa dessa que aconteceu. Ergueu o baita com o macaco, tirou uma das rodas e, aí, depois de mais um gole, lembrou que durante a semana tinha ouvido um barulhinho estranho na máquina. Entrou embaixo para verificar. Achou a coisa. Pegou uma ferramenta e foi apertar. O macaco adernou, o carro caiu, quebrou-lhe o nariz e os dentes. Só não morreu afogado no próprio sangue porque alguém da família viu, pediu ajuda e o tiraram dali. A marca no nariz está lá. Alguns dos dentes ainda dão problema. Mas ele há muito tempo está bem porque só toma gasosa de framboesa. Talvez por isso todos que ouvem o episódio acreditam mesmo que ele aparou o Opalão com a cara - e que a coragem vinha da cachaça.

quinta-feira, 4 de dezembro de 2014

Quindim

De Dalton Trevisan


Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder — o arrepio lancinante no céu da boca.


A Cor do Som Zanzibar


Depois de Orlando Dias

Sempre foi macaca de auditório. O termo seria mais politicamente incorreto se ele dissesse que era macaco de auditório. Ninguém iria entender nos tempos de hoje. Mas ele era isso mesmo. Frequentava os auditórios das rádios que tinham programas ao vivo. Concorria com as mulheres, alucinadas, que gostavam de rasgar as roupas dos cantores. Um dia guardou seu maior troféu: o lencinho que Orlando Dias tirava do bolsinho do paletó ao final das interpretações e agitava para a platéia dizendo "Obrigado minhas fãs!" Ele era "o" fã, mas entendia a generalização. O tempo passou, os programas e os artistas foram para o vinagre - e ele baixou o fogo passando o dia todo de pijama em casa, mas sempre relembrando aquele passado cada dia mais passado. Até que um dia esqueceu tudo por causa de uma mulher. Artista, claro. Nunca a chamou pelo nome, apenas pelo personagem daquele filme: Malena. Soube que ela, italiana, veio morar no Rio de Janeiro. Foi atrás. Descobriu o endereço. Um dia a viu de longe e ficou contente. Teve medo de chegar perto, apesar de Malena estar tranquilamente fazendo compras num mercadinho.  Mas voltou de lá com uma recordação. Conseguiu o capacho da entrada da casa. Agora tinha o lencinho do cantor e o capacho dela. Este ficava ao lado da cama. Antes de dormir, como num ritual, ele o abraçava e cheirava. Então, de olhos fechados, via a personagem andando por uma calçada a beira-mar. Sussurrava o nome e só então dormia em paz.

quarta-feira, 3 de dezembro de 2014

Último domicílio conhecido

De Miguel Sanches Neto

Habitar a sombra
sem janelas de sol.

Residente e domiciliado
no impreciso, no intervalo,
na entrelinha, no avesso,
o poeta não dispõe de endereço.

Procurado no último
domicílio conhecido,
só encontrarão palavras.
O poema estará vazio.

Morar o poema
apagando pegadas.

Blecaute


Urubu

O urubu pousou na vida dele de uma maneira estranha. Foi ao abrir a persiana do escritório. Ele estava lá, do outro lado da rua, como um rei negro no topo do sobrado do vizinho. Não havia mais nenhum nem ali nem sobrevoando. De vez em quando batia uma brisa e as asas dele se abriam - e ele ficava mais majestoso. À distância parecia jovem. Estaria perdido? Nunca ele tinha visto urubu naquele pedaço da cidade onde filé mignon é comum no prato dos moradores. Claro que pensou na carniça. Mas, onde estaria? Na vizinhança um dia morou alguém que foi parar nas páginas policiais por roubo do dinheiro público, mas isso é outra história. O urubu ficou lá o dia inteiro, lindo, silhueta negra contra o céu azul ou algumas nuvens que ali passavam. Ele ficou observando. Pensou em fotografar mas... Pra que? Há certas cenas, momentos, visões, que é melhor guardar para sempre. O urubu, pensou o observador, deveria ser a ave símbolo do Brasil. Para o país ficar sempre limpo.

terça-feira, 2 de dezembro de 2014

Borboleta

De Emiliano Perneta

Hoje, uma borboleta, assim, toda amarela,
Veio bater aqui junto à minha janela.
Olhei. Ela passou. Eu comecei a olhar.
De novo ela passou e tornou a passar,
Tão veludosa e ao mesmo tempo tão inquieta...
Que quereria pois aquela borboleta?
Ia e vinha outra vez, doida, a se debater,
Com ademanes, com trejeitos de mulher...
Era um dia de sol, fino e voluptuoso,
De um grande beijo ideal, de um infinito gozo,
De um lindo céu azul, esplêndido verão,
E ela a roçar em mim, como uma tentação...
E ela a passar aqui, dentro do seu corpete,
Tão leve, tão sensual, no seu andar coquete,
A subir, a descer de tal modo, Senhor,
Que a mim me pareceu, mas sem tirar nem pôr,
Essas que andam de lá p'ra cá, coquetemente,
À noite, nos jardins, a seduzir a gente...

Lupicínio Rodrigues Nervos de Aço


Sou ladrão!

Sou ladrão, sim - e daí? Ninguém nunca me pegou. Sou o rei dos caras de pau. Claro que tenho um mandato parlamentar. E faz tempo! Tanto que, se bobear, ainda terei forças para colocar meu bisneto na quadrilha. Não tenho vergonha do que faço. Roubo algumas quirelas do orçamento. Tem gente que rouba muito mais. Todo mundo rouba, disso tenho certeza. Sempre fui modesto. Me contentei em ficar com uma parcela do que se transformou em beneficio para o meu povo. Meu povo que vota em mim. Meu povo da família vai muito bem, obrigado. No começo fiquei meio sem jeito para fazer a coisa. Depois, me acostumei. Dinheiro fácil. Me conformei com a história do nosso país. Sempre foi assim, desde que os portugueses mandaram os criminosos povoarem a terra que tudo dá. E como dá! Faço meu serviço direito. Engano a todos com discursos patrióticos e que pregam a honestidade. Para os outros. Não sou honesto. Sou honesto comigo mesmo pois me convenci de que dinheiro traz felicidade. Inventaram aquela lorota que diz ao contrário só para manter a bugrada mansa e na miséria. Sempre sou financiado por quem tem muito mais que. É que eles ganham ainda mais com o trabalho que faço para eles. É o jogo. Sou humilde, mas só gosto de ficar em hotel de muitas estrelas quando viajo para a Europa. Miami é coisa de novo rico cucaracha. Sou um velho ladrão. Ostento apenas lá fora, onde ninguém me conhece. Aqui, se pudesse, andava de Fusca, feito o uruguaio que liberou a maconha. Agora tenho de parar essa confissão. Porque vou queimá-la. Faço isso para desopilar. Isso e a missa que vou sagradamente todo domingo. No sábado me confesso. No dia seguinte, comungo. Para ficar pronto para os roubos da semana. Rezo para morrer num domingo. Eu acredito que exista o céu.

segunda-feira, 1 de dezembro de 2014

GATO NATO

De  antonio thadeu wojciechowski


gato, que pulo é esse que extrapola?
se não tivesse visto estaria cego
mas vi um dorso no ar entrar de sola
e se agarrar como à madeira o prego
tem flexibilidade de uma bola?
sai pra lá, satanás, que eu te arrenego!
de mansinho, a mágica também rola
e eu cuido estar pegando-o  e não pego
toda a mística de sua alquimia
me assusta pela indiferença intensa
que só sinto ao ouvir enquanto mia
no que será que ele tanto pensa?
ao me ver – como um rei, atende o súdito:
sua resposta é sempre um gesto súbito

Milton Banana Trio O Barquinho


Amigos mortos

Não acontecia sempre, mas ele via. Ele via seus mortos queridos em corpos de outras pessoas depois que os amigos partiram para sempre. Via também em nuvens, como naquele dia em que estava indo para a praia e parou no acostamento para conversar com o Julio. Ultimamente tem visto muito o Pedro. Agora mesmo, quando saiu do banco, onde foi pegar um dinheiro para pagar a diarista, lá vinha o Pedro do mesmo jeito do Pedro, só que num corpo mais mirrado e parecendo falar com as pedras das calçadas. Era ele, teve certeza. Passou perto, sentiu a força estranha que no passado os uniu em amizade, gosto pelas mesmas mulheres, música e literatura. Ficou feliz por ter visto bem de perto. Da outra vez ele estava muito longe e não deu para olhar direito. Então, chegou em casa radiante por saber que o Pedro está muito bem – assim como o neto do Pedro, que também é Pedro, mas não se parece nada com o avô.