sexta-feira, 31 de julho de 2015
quinta-feira, 30 de julho de 2015
não tem cura
De Paulo Leminski
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
Se...
Se ele fez curso por correspondência para aprender a escrever... Se tinha 45 anos e estava matando cachorro a grito sem dinheiro pra nada... Se estou lendo a história dele e depois de 130 páginas cheguei ao ponto do início da trajetória de um dos grandes mestres da escrita... Se grandes problemas com álcool o atormentavam e pretendia ser um grande romancista no estilo clássico... Se trabalhou em empresas petrolíferas dos Estados Unidos e foi educado na Inglaterra depois de passar períodos na Irlanda, origem da família da mãe... Se pilotou aviões numa guerra, mas não esqueceu sua vontade de se tornar um nobre no estilo inglês... Se Los Angeles e os assassinatos, corrupção na polícia e na política formaram o painel dos livros que o tornaram famoso... Se esteve em Hollywood e é clássica a sua trombada com Hitchcock... Se Philip Marlowe é o detetive mais cultuado, o mais durão - e que serviu como luva para a fachada de Humphrey Bogart... Se para ele não importava o esclarecimento da trama, mas sim como ela era contada... Se Raymond Chandler não existisse...
quarta-feira, 29 de julho de 2015
Lasque-se
Tá olhando o que aí? Não quero saber se a mula é manca ou se você está mais por fora do que umbigo de vedete. Aqui não tem nhenhenhem. Abriu o espaço em branco, eu meto os dedos. Se sai sinfonia, maracatu, congada, bolero, samba atravessado, o problema não é seu - é meu. Leitor é para ler. E fim de papo. Melhor, meio. Estou virado pelo avesso. Com a macaca. Quem não gostar que se arranque com uma quente e outra fervendo. Texto tem que ter música e porrada, mesmo carinhosa. Aprendi no muque, tateando feito cego em muro chapiscado. Saí do escuro analfabeto e fui olhando e lendo. Encontrei meu time e eles estão aqui ao meu lado. Na estante. Quem quiser entrar nele tem de me convencer. De cara, nas primeiras linhas, com soco no estômago ou magia encantadora ou ainda uma mão a me puxar pelos caminhos. Os deles, que também são meus - e vice-versa. E você? Continua olhando aí? Entendeu o que eu disse ou faz parte da multidão de ignorantes que faz deste país aquilo mesmo que vocês sabem? Nem sei porque botei isso aqui. Vai ver é porque estou triste, sem saber. Não, não é fuga, babaca. É arrancar de dentro e jogar no espaço em branco. Não gostou? Lasque-se.
terça-feira, 28 de julho de 2015
O espinho sou eu
Eu sou o espinho. Ninguém nunca deu bola pra mim. Só a quem furei - e ceguei um olho. Nunca me procuraram. Nem quando aconteceu (e faz tempo!), nem depois. Resisti a tudo e estou aqui, perdido na caatinga e com o mesmo gosto daquilo que vazei. Já sei que apareci em filme, mas ninguém sabe mesmo o que aconteceu. Filme é invenção em cima da invenção que vai sendo inventada de conversa em conversa. Quando entrei no olho dele, sem querer, o capitão não gritou. Só caiu para trás com a mão tapando onde havia o furo. Homem temperado, aquele. Amargo e doce. Anjo e demônio. Justiceiro. Amado e odiado. Caçado durante anos. E eu aqui me achando - porque furei ele. Quando soube que caiu em emboscada em Angicos, verti uma lágrima. Sim, porque o mandacaru onde nasci chora. Desgraceira aquela que fizeram cortando a cabeça de quase todos do bando. Maldade. Mas aí que a fama aumentou. E eu aqui, no oco do mundo. Várias secas e chuvas depois, ainda espero. Não sei o que. Não quero fama e, pensando bem, se pudesse teria evitado aquela desgraça. Aí, talvez, quem sabe, Virgulino Ferreira da Silva tivesse durado mais tempo. Lampião com os dois olhos seria mais difícil de matar. Mas ele não morreu. Nem eu.
segunda-feira, 27 de julho de 2015
O filme da morte
Planejei minha morte há muito tempo. Morte para o cinema. O roteiro veio no dia em que me disseram que tenho fogo no rabo. Minha mãe falava diferente. Ela era mais direta e dizia fogo no cu - por isso me sinto liberado para dizer qualquer palavrão, em qualquer lugar e, se for o caso, para qualquer pessoa que ultrapasse a linha imaginária riscada no chão. Misturei Hitchcok com De Palma, dei um toque de Fellini no script e fiquei com ele guardado aqui, na cachola, até a hora - não da minha morte, mas da filmagem. Sei que o cenário será todo branco, com flores, caixão e o terno. Sei que no close do rosto, sem algodão nas narinas, vou abrir os olhos e, depois que a câmera se afastar, pegarei o celular no bolso do paletó e discarei para alguém. Direi então "agora baixei o fogo" - e depois de guardado o aparelho, continuarei como antes de abrir os olhos, mortinho da silva. The end.
sexta-feira, 24 de julho de 2015
quinta-feira, 23 de julho de 2015
Madrugada São João
A madrugada da avenida São João não é para amadores. A esquina com a Ipiranga, que o baiano rico disfarçado de pobrezinho imortalizou na música para os basbaques, ainda não tinha sido tomada pelo restos de gente do crack. Os bares com quinhentos metros de fundo ficavam abertos até amanhecer - e a lamentar somente o fim da boate Oasis e os salões de bilhar onde reinava o gênio Carne Frita. Mas havia a aura, nebulosa, cores esmaecidas, mulheres sambadas da vida, aprendizes de malandros, malandros em fim de linha, uma cerveja por favor. Às três da madruga, depois do trabalho pesado, o primeiro gole era como voltar à terra, apagar a fadiga, olhar em volta e pensar no que fazer até o primeiro ônibus chegar junto com o raiar do dia. O subúrbio dormia à espera. E um sebo com livros e revistas antigas também, ali na porta de aço ao lado. Foi assim que ele viu a mulher dos sonhos na capa de O Cruzeiro. O que mais chamou atenção foi a cintura de pilão. Pagou o preço. Caminhou até o Vale do Anhangabaú, desceu a ladeira Porto Geral e ficou encostado no poste do ponto abraçado e com ela no peito. Durante todo o trajeto até a vila olhou-a apaixonado. Abriu a porta da casinha de fundos e foi dormir de roupa de tudo no colchão de palha. Estava feliz por ter encontrado. Guardou-a para sempre. Marta Rocha.
quarta-feira, 22 de julho de 2015
pesadelo
De Paulo Leminski
acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver
meu sonho virar pesadelo
acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver
meu sonho virar pesadelo
Sórdido
Aquele boteco sórdido tinha de existir. Não, ele não queria beber lá, porque já tinha passado o limite entre a vida e a morte e sobrevivido. Mas queria conhecer porque, quando bebia, desde a hora em que acordava até onde não lembrava mais, fazia sempre em botecos como aquele descrito pelo mestre da escrita. O bar era tão absurdamente sujo que os frequentadores puxavam para dentro os cachorros sarnentos que passavam na calçada em frente. O que mais interessava, contudo, era a imagem de Jesus Cristo com tapa-olho. Se a visse, achava que entraria numa nova dimensão da vida, agora regada a água e suco. Procurou em todo o Rio Grande do Sul, porque a indicação era de lá. Um dia, chegou lá. Entrou e logo se ajoelhou para a imagem. Fez então sinal da cruz e rezou um Pai Nosso. Depois, pediu ao dono do bar para chegar mais perto do que buscava - verificou então que, realmente, havia uma barata esmagada no olho esquerdo de Jesus. Chorou de emoção. Ia saindo quando lhe perguntaram se queria comer algo. Ele pensou duas vezes e ... por que não? Disse sim, afinal, não tinha morrido com todas as porcarias que mandou pra dentro nos tempos das bebedeiras. Olhou um prato sujo em cima do balcão e pediu o último quibe que estava ali. Lhe disseram que não era quibe. Alguém abanou a mão logo acima do quitute e todas as moscas voaram. Surgiu então um ovo cozido e descascado. Ele dispensou a iguaria - e saiu feliz agradecendo Luis Fernando Verísssimo.
terça-feira, 21 de julho de 2015
longe da insensatez
De Nelson Capucho
o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia
do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
dos dias
o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia
do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
dos dias
Um caco de vidro
O caco de vidro escondido no terreno baldio. Fundo de garrafa se elevando em picos sujos pelo tempo. Ali, escondido, acompanhando o silencioso crescimento do mato em volta. Armadilha à espera de um pé descalço, com brancura ingênua como a brincadeira que leva aquele menino a correr olhando para trás no pique-esconde. O caco de vidro é o grito. Ele procura a veia, o osso, lacerando músculos, arrebentando a pele. Sangue regando a relva, manchas no céu, escuridão. Salvem o menino! O vidro, agora rubro, vai para o fundo de um quintal. Um martelo o estraçalha com raiva. Os pedaços jogados no lixo somem daquele pedaço de vila. O menino está salvo. Pé enfaixado e um sorriso nos lábios. Ganhou carinho e guaraná para tomar no bico Ali perto, numa casa de madeira, o chuveiro é aberto e alguém canta. Depois todos daquele universo desaparecem durante o sono. Os cacos de vidro continuam como sempre. Em silêncio.
segunda-feira, 20 de julho de 2015
De fianco
Abraçou assim, de ‘fianco’ – e era para ser assim mesmo no primeiro encontro depois de anos conversando através das estrelas. Para entrar na alma – como se isso precisasse. Apareceu lá no portão sem aviso, porque assim é que chegam as cartas importantes, escritas a mão, Parker 51, tinta azul lavável. Explicou que o escrever para quem escreve mesmo é uma herança de milhões de anos, muito antes de Homero soltar Ulisses no ar. Televisão e rádio e um locutor, que é poeta, poderia ser Super Big Boy com cultura. Dínamo a rodar e fazer a cadeira girar e o tapete persa a enrolar a seus pés. Uma imagem que remeteu a outra, outra pessoa, mas igual, explosão criativa, ansioso para fazer jorrar o que lhe alimenta, como se não pudesse perder tempo porque a gente não sabe o que pode acontecer agora. Um encontro entre os dois será o Big Bang. Depois, na saída, outro abraço de fianco – revelação em cima da revelação, porque já se sabia pelos sinais que furaram a cidade.
amor ao bar
De Marcos Prado
uma pessoa, agora sua íntima
foi parar um dia no hospício
não por uma obsessão legítima
nem por doença ou vício
ele foi por estar claro
que o álcool fazia-lhe mal
e porque o bar o
lembrava um hospital
essa pessoa, que sou eu
percebeu de si a manobra
o que de mim o álcool bebeu
dele ele fez sua obra
sexta-feira, 17 de julho de 2015
quinta-feira, 16 de julho de 2015
Cavalo com espora
De Luiz Antonio Solda e Paulo Leminski
Eu quero me afogar na salmoura
dormir na manjedoura
ser um monge de outrora
o dia inteiro fazendo hora
Cortar o mal com tesoura
eu quero o mal
mal quero
e tudo me apavora
O polvo
o povo
a pólvora
tudo enfim
que meu cavalo sente
quando me senta
espora.
Duas mães
O psiquiatra perguntou se ele lembrava de alguma coisa antes dos três anos de idade. Só vendo as fotos, disse o paciente, com 35 anos de divã. O doutor queria saber como a mãe o tratava naquele início de vida. Ele só lembrou da história do leite condensado que tomava no lugar do leite materno - e brincava que tinha ficado um docinho para enfrentar a vida. Não tinha mais como perguntar para quem o pariu. Lembrou então que uma pessoa da família poderia informa alguma coisa. Era a irmã da mãe, que morava no mesmo terreno, mas na casa da frente. Fez o telefonema interurbano. Ouviu uma história linda. As duas eram costureiras, mas uma passava o filho para a outra porque era mais devagar, cautelosa com as encomendas. A tia contou que impulsionava a máquina com o pé direito enquanto a perna esquerda ficava de lado para sustentar e proteger a criança. Ele cresceu a chamando de mãe. Um dia chegou chorando desesperadamente naquela casa. Contou que alguém tinha-lhe dito que a tia não era mãe. Era - e só ele e ela sabiam e sentiam isso.
quarta-feira, 15 de julho de 2015
No centro do terreiro
Sentou no banquinho de palha bem no centro do terreiro. Fechou os olhos e as palmas das mãos foram colocadas para cima - por outras mãos. Recebeu apenas uma orientação: se deixar ir. Ele foi, sob o som do atabaque e músicas populares, para a viagem mais alucinante da sua vida. E quem agora lhe falar em outro tipo, quando se cavalga substâncias que podem levar à morte, ele sabe o que dizer. Até o dia em que foi gerado ele viu, porque cena de uma noite silenciosa, céu de estrelas e amor feito na rede. Do outro lado da estradinha estava o pé de manga centenário que o fez sofrer quando soube que foi derrubado. Mas ali, ao ver ele ser cortado, soube que tudo tinha vindo para dentro da sua alma, aquele gigante que presenciou tudo desde os tempos imemoriais dos antepassados estava eternamente salvo. Passou por tudo e acompanhou a mãe carregando uma sacola com comida para o pai caminhando na ladeira infinita, todo dia - e ela feliz porque ele só gostava do que ela fazia. O sacrifício da caminhada ladeira abaixo, ladeira acima, era o de menos. Teve cachoeira, teve pedreira, teve selva, teve rio, teve bola, teve gente. Era tudo vida. Ao abrir os olhos, continuou como sempre, com mais certeza de o normal é que é o delírio.
terça-feira, 14 de julho de 2015
Cariados
De Sérgio Rubens Sossélla
pesadelos
esses cariados buracos da noite
onde caímos e nos repetimos
pesadelos
esses cariados buracos da noite
onde caímos e nos repetimos
Leila na madrugada
Ela olhou do alto da banca de revista e soltou um palavrão. Gamei! Comprei o jornal onde aparecia com uma toalha enrolada na cabeça e um roupão cobrindo o corpão. Nunca mais nos separamos. Mesmo depois da explosão do avião em que estava junto com Agostinho dos Santos. Será que ele cantou só para ela, com aquela voz doce que entra e não sai mais da alma? Musa é musa – e por isso nunca tive inveja dos seus incontáveis homens. Porque Leila Diniz era todas as mulheres do mundo. Ela que foi professora de profissão e da escola da vida. Quando abri os olhos no meio da madrugada e apertei o botão para a tela acender, estava lá um filme com o nome dela – não com ela. Quase chorei de raiva, porque não se faz um lixo como aquele, supostamente para contar a história dela, onde, para começar, o corpo da atriz protagonista era uma tábua de passar roupa – e os coadjuvantes imbecis com roupas imbecis e falando imbecilidades. Desliguei, mas antes vi o final que era mais patético e retumbante do que o resto. Então, no escuro, ela apareceu com aquele sorriso, a voz acariciante e os olhos cujo brilho dizia: “Eles não sabem o que fazem”.
sexta-feira, 10 de julho de 2015
quinta-feira, 9 de julho de 2015
Dentro d''água
Ouviu dizer que, ao contrair uma gripe muito forte, a pessoa entra num estado como se estivesse por muito tempo com a cabeça dentro d'água. Tirou o termômetro do sovaco, olhou o mercúrio nos 40 graus, tossiu - e uma bola de catarro amarelo saiu do seu peito, atravessou a boca e foi parar num guardanapo de papel que tinha no criado mudo. Duas marretas batiam nas têmporas. A nuca espetada por uma adaga. Arrastou os pés e levou o corpo até o banheiro. Encheu a banheira com água morna. Entrou de roupa e tudo. Olhou o teto, fechou as narinas com o indicador e o dedão da mão direita. Afundou. Ficou até o pulmão arder. Quase explodiu. Tirou os dedos, a água entrou pelos dois buracos e depois pelo túnel da boca. Não sufocou. Achou estranho. Os olhos confirmaram que estava mesmo coberto pela água. Então apareceram pessoas conhecidas sorrindo. Ele sorriu também. Depois o céu em frente a uma casa que conheceu nos arredores de Londres. Aí vieram as montanhas em Palm Springs, o K2, o Kilimanjaro, o Fuji. Uma casinha em Arembepe, o mar de cana no interior do Brasil, uma passista de escola de samba, o Zé Trindade pulando de lado, Dick Farney e João Gilberto cantando, o salto do Morato visto de baixo... Tossiu. Sentiu-se afogado. Pulou para fora da água. Tirou a roupa. Se enxugou. Não sentia mais nenhuma dor.
quarta-feira, 8 de julho de 2015
Na batida do pandeiro
A prima batia no pandeiro, o pai dela girava o afoxé, um amigo dedilhava o violão de doze cordas e o líder empunhava o cavaquinho com um sorriso que iluminava o quintal. Chorinho. Era assim, todo sábado, no final da tarde. Eles se reuniam ali e descia tudo lá não se sabe de onde, porque ali Valdir Azevedo e Jacob do Bandolim não eram inimigos. Vai ver que era a presença de São Pixinguinha. Vai ver. O menino ficava encostado numa parede, dedo na boca, e lembrava de algumas músicas que escutava na rádio-vitrola de olho mágico. Ao vivo era outra coisa. Ele sentia o som até no umbigo estufado, principalmente o arrancado do pandeiro. Foi o primeiro instrumento que gostou. Queria saber tocar. Compraram um pequeno para ele. Era uma bateção só. Um dia, num casamento bem longe dali, estava lá o conjunto, e ele queria tocar junto - com o seu pandeiro. Tanto fez que foram buscar em casa. Ele acha que tocou junto. Ninguém reclamou. Depois disso guardou-o e ficou o resto da vida ouvindo o som que tirou do couro naquela noite.
terça-feira, 7 de julho de 2015
Antes e no tempo certo
Matei, sim. Foi consciente. Não foi violento, mas poderia ter sido. Num olhar, depois de um encontro sem querer na rua, me pediu. Pediu, não, implorou. Nunca vi olhos tão tristes. Sentamos para tomar um café no boteco sórdido. Só ouvi coisas maravilhosas de uma vida de realizações, de aprendizado constante, de viagens para lugares paradisíacos, de encontros com pessoas do bem. Mas o olhar do primeiro contato era um pedido. Havia dose suficiente em casa para dizimar uma manada de elefantes. Convidei para continuar a conversa. Fiz um chá decente, servi em porcelana chinesa. Aqueceu a alma e me olhou de novo como no primeiro contato. Fui até o armário, preparei a dose e quando voltei já tinha erguido a camisa do braço direito. Achei fácil a veia. Sou profissional. Injetei. Foi apagando com um sorriso beatificado. Tudo terminou rápido. Levei-o para uma praça bem arborizada. Ficou sentado num banco como se a admirar uma árvore centenária à sua frente. Ao retornar, chorei um pouco. Quando enxuguei as lágrimas, dei de cara com a fotografia que sempre amei. Dois olhos - e dentro deles o meu reflexo. Dois olhos que foram embora bem antes do tempo. E sem pedido.
segunda-feira, 6 de julho de 2015
Ilusão e guerra no céu
Foi a coisa mais linda surgida no céu da vila e também a mais destruidora. No tempo certo de soltar papagaio (lá a gente chamava de quadrado), a brincadeira era a mais ingênua e infantil possível, pois a graça era confeccionar os tais com papel de seda e varinhas de bambu, fazer um rabo de pano, comprar carretel de linha e colocá-los no ar. Ficavam lá sustentados pelo vento e colorindo tudo - cada criança encantada com o que tinha ao comando. Então, surgiu. Obra dos adolescentes baianos, filhos do único dentista da redondeza. O deles parecia com o nosso "lata de óleo", mas a construção era diferente. Na folha recortada em forma de retângulo, colavam duas cascas de bambu verde e a rabiola era feita de pedaços de algodão que iam decrescendo de tamanho e, ali, no final, amarravam lâminas de gilette - e toda nossa turma descobriu isso tarde demais. Obrinquedinho deles parecia uma serpente no ar, que ia para a esquerda, direita ou "desbicava" rebolando em mergulho ao comando da linha sobre o dedo indicador. Eles cortaram a linha de todos, durante vários dias - e lá ia o sonho dos ingênuos flanando sem amarras e sem destino até cair em lugares desconhecidos. Ninguém fez mais "quadrados" durante um tempo. Até um foi passar férias no Rio de Janeiro e de lá trouxe várias pipas e o segredo do cerol cortante, a mistura de cola e vidro moído que se passava na linha para as batalhas. A moda pegou, os baianos não levantaram mais vôos e o que era doce ilusão se transformou em guerra constante nos ares.
sexta-feira, 3 de julho de 2015
quinta-feira, 2 de julho de 2015
Choro e fortuna
Olhou algo e começou a choramingar. A mãe não entendeu. Ele não parou. E apontou o dedo. Para a tv. Era um pudim. A mãe não sabia como reverter a situação. Tentou de tudo. Colocou-o no colo, fez cafuné, andou pela casa. Nada. Ele não berrava. Choramingava. Por algum motivo ela lhe deu dinheiro. Cédula dourada. Ele parou com o choro na hora. Pegou o papel e ficou olhando. Só largou quando dormiu de braços e mãos abertas no berço. Sem querer descobriu a fórmula. Tanto que a mãe guardava as notas mais novas para ele. E guardava depois numa caixinha que deixou perto do berço, depois no criado mudo ao lado da cabeceira da cama. Quando cresceu, antes de dormir, ele olhava a quantidade de dinheiro que tinha acumulado. Não gastava nada. Aperfeiçoou o choramingo. Desenvolveu uma técnica. Às vezes bastava fazer um olhar desconsolado para ganhar algo. Expandiu o universo de doadores. Adolescente já tinha mais dinheiro que o pai. Virou empresário. Arrancava tudo dos donos do poder. Milionário, não se divertia, não comprava nada que não revertesse em mais dinheiro. Não casou para não ter herdeiros. Tratava os empregados a pontapés. Achava que todos choravam pitangas para conseguir mais salário e benefícios. Morreu assim. Ninguém derramou uma única lágrima em sua lápide, de mármore cinza, cor que ele mais gostava - a cor de seu cofre.
quarta-feira, 1 de julho de 2015
No escuro
Perdeu o show da Tina Turner e a visão - tudo ao mesmo tempo agora. Tinha comprado ingresso, viajou mais de mil quilômetros, mas antes de ver a energia negra de pernas luminosas, e bem antes de ver o marido que a espancava depois de cheirar cordas de coca, antes ele foi visitar um amigo na casa do litoral. E foi aí que se perdeu. Talvez tenha sido a carga de adrenalina recebida num passeio de moto - e sem capacete, mas a verdade é que saiu da garupa e entrou numa garrafa de cachaça que o tirou do compasso do tempo. Depois derrubou outra e mais outra... quando acordou, sabe-se lá quanto tempo depois, não estava enxergando nada. Gritou que estava cego, mas ninguém o ouviu. Sozinho, não tinha noção do espaço onde estava. A canela bateu em algo e a dor foi lancinante. Foi tateando tudo e descobriu um quarto. Achou a porta e, ao girar a maçaneta, tomou um banho de estrelas no céu, ao mesmo tempo que sentia a brisa do mar. O coração disparou e a lembrança voltou, como a visão. Tina Turner, àquela altura, cantava Acid Queem num estádio de futebol muito distante. Ele sentou na areia da praia e chorou. De alegria e tristeza.
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