terça-feira, 12 de janeiro de 2016

Olhos na calçada

Apertei a tela e ele abriu os olhos. Deitado sob a vitrine de um shopping de bacanas. Papelão no chão. Fones brancos como se fosse um jogador de futebol. Corpo todo magro. Poucos dentes na boca. "Está fotografando por que?", perguntou. Eu não soube responder. Fui flagrado num dia de sol 40 graus, asfalto ali do lado fervendo, cidade fervilhando, de passagem para algum lugar com ar condicionado a toda, carteira protegendo o cartão de crédito para sacar e comprar algo. Respondi invocado, depois de um tempo: "Porque quis". Ele estava de boné e a composição com o fone e os fios brancos me atraíram. Mas foi só isso. Fiquei sem jeito, saindo, ouvindo xingamentos, xingando de volta, talvez imaginando o fiapo de gente vindo atrás, faca na mão, furo no fígado, vai saber... Os olhos. Ficaram os olhos que olhei mais tarde, à noite, deitado na cama, correndo o dedo na tela, procurando a imagem. Captei que alma ali?, me perguntei. A dele, sem nome, ou a minha, sem identidade?Depois daquele momento de decisão, a de clicar, a de responder, a de ir embora, pensei em voltar, em apagar a foto, em pedir desculpas, em perguntar por que ele deu aquele pulo e quase se levantou da cama. Não fui. Fiquei carregando a imagem para sempre, eu sei, porque mesmo que tivesse deletado, ela estaria presente. Não, não com pena porque era pobre, largado, deserdado, talvez alcoólatra como eu, mas porque houve o encontro. O que pensou de mim, um galalau de olhos verdes, careca, cem quilos, bem nutrido... Jamais imaginaria que estive perto de onde ele está, abandonando tudo por desesperança, por nada fazer sentido. Se fosse eu ali, na hora, e alguém a apontar o celular para o clique, o que faria? Talvez mandasse um beijo, se acordasse na hora. Talvez um murro na cara, uma cusparada, uma cabeçada no nariz. Nos incomodamos do nada. Acho que é isso. Por existir. Por não saber. A proteção. Queremos, sem ter. Não, não nos fotografem, não nos joguem na cara os erros, principalmente o de estar aí, na calçada, no Rio de Janeiro, no meio do tumulto, querendo sair para algum lugar que não existe. E o Cristo lá em cima, de braços abertos, pedindo paciência. 

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