quarta-feira, 31 de agosto de 2016
segunda-feira, 29 de agosto de 2016
sexta-feira, 26 de agosto de 2016
quinta-feira, 25 de agosto de 2016
Flor amarela
Tinha uma flor amarela, simples, em cima de pedras de uma calçada. Ela saía da terra, onde estava acompanhada de grama, ervas daninhas, outras nem tanto, e parecia querer beijar o lado bruto, pétreo, brilhante ao sol do meio-dia. A sombra do caule e daquele minúsculo buquê a acompanhava. As pessoas passavam perto, algumas quase pisavam a flor - e ninguém prestava atenção naquilo, apesar de o amarelo parecer a cabeça de um cogumelo de bomba atômica visto de cima no deserto. Sentei perto e fiquei observando. Ver deus seria isso? Eu já vi, mas foi no galho de uma araucária centenária balançando num dia de céu cinza e vento forte. Silêncio. Deus é silencioso, luminoso e nunca fez uma oração para ser decorada. Um menino parou ao lado. Três anos? Se deitou e colocou o rosto perto da flor. Pensei que ia arrancá-la. Não. Ele primeiro a cheirou e depois a beijou. Aí, levantou e foi correndo feliz pela calçada. A mãe enxugou uma lágrima.
Atraso Pontual
De Paulo Leminski
Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?
quarta-feira, 24 de agosto de 2016
Dois
No meu reino só cabem duas pessoas - e eu não me suporto. Brigo constantemente porque sempre acho que o outro falhou e ele me diz claramente que a cagadona é minha. Não tenho lembrança de quando descobri esse mala que me atormenta diariamente e muitas vezes nos meus sonhos. Às vezes entramos num acordo, mas logo há esfaqueamentos mútuos, cuspidas, chutes no saco, etc. Quem inventou isso foi um grande filho da puta - e não me importo se algum de vocês pensar em deus, qualquer que seja. Eu queria ser feliz, mas uma vida inteiramente assim com certeza seria um porre sem a mínima graça. Mas também não queria o tormento, o fio da navalha rondando a retina da alma, o sangue explodindo na cara, a morte sempre na espreita, os outros querendo entender. Caralho! Eu não entendo porque tenho essa outra pessoa aqui dentro - e não há como assassiná-lo. Talvez isso seja vida. Talvez isso seja resultado do vírus nosso dos infernos. Como vou saber? Entendo tiro de calibre doze no céu da boca. Deve ser por isso.
Amar você é coisa de minutos…
De Paulo Leminski
Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui
segunda-feira, 22 de agosto de 2016
Editar é viver
Agarrei a testa com força, fechei os olhos, forcei o pensamento tentando criar algo novo, uma história, um delírio, a descrição de uma cena nunca vista, algo no futuro... Nada. No cinema mudo do quengo só fatos ocorridos durante a longa e estafante vida. Escrever sobre o passado é muito bom, porque dá para distorcer - e tudo é distorcido porque é assim mesmo. Também podemos editar do jeito do que a gente quer. Viver para contar, como disse o grande Gabo. Aquele teste para entrar na empresa gigante e começar a ganhar dinheiro escrevendo, mesmo sem nunca antes ter escrito nem bilhete com poema panaca para a namorada. Tempo de máquina de escrever, mas quem disse que a datilografia era dominada? O melhor foi a o teste de reportagem onde, numa mesa do restaurante da tal editora, entrevistamos, eu e outro colega que tentava o milagre, as estrelas de uma revista de informação semanal. Claro que não sabíamos quem eram e muito menos que o que iria analisar nossas invenções estava ali. Ele mesmo perguntou porque um dos atrevidos não anotava nada. Apontei o indicador para têmpora direita e expliquei que guardava tudo ali. No dia seguinte, por ter ali se alimentado, o outro aprendiz foi parar no pronto-socorro com intoxicação ´- e não pode escrever seu texto na data prevista. Claro que era mais um molho para a reportagem, colocado bem no final do catatau escrito primeiro à mão e depois catando milho durante horas para deixar a coisa impressa na lauda. Os dois passaram na peneira e até hoje enganam por aí. Faz tempo... Ah, sim, veio uma ideia sobre o que poderia inventar como ficção futura: ao tentar limpar a máquina de escrever velha, ele prendeu o dedo de tal forma nas engrenagens, que morreu ali, pois morava sozinho e não dava para carregar o trambolho até a rua para pedir socorro.
O homem de ferro
De Marcos Prado
Êxtase sob dureza!
Voltemos à idade do ferro!
Ferro! Sobre ferro!
Não haverá terra pra suportar o que peso!
Morte lenta a quem enferruja!
Abelhas dentro da armadura!
Merece chumbo a cultura!
Um homem se conhece pelo tamanho da ferradura!
Não haverá mais remédios!
Os belos serão os bélicos!
Elmos no lugar de cérebros!
O ferro-velho tomará os cemitérios!
Êxtase sob dureza!
Voltemos à idade do ferro!
Ferro! Sobre ferro!
Não haverá terra pra suportar o que peso!
Morte lenta a quem enferruja!
Abelhas dentro da armadura!
Merece chumbo a cultura!
Um homem se conhece pelo tamanho da ferradura!
Não haverá mais remédios!
Os belos serão os bélicos!
Elmos no lugar de cérebros!
O ferro-velho tomará os cemitérios!
sexta-feira, 19 de agosto de 2016
quinta-feira, 18 de agosto de 2016
PENÚLTIMA
De Marcos Prado
Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem
sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
Marcos Prado
Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem
sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
Fura meias
Como vou pensar no paraíso se estão enfiando agulhas embaixo das unhas dos meus pés? É uma frase forte? Não dá para saber - e que os ativistas sob o calor dos edredons não pensem em tortura de militares, policiais, etc. É só uma frase de alguém que teve o rumo da vida normal atropelado por uma enfermidade, que não é fatal, mas tirou sua energia e dificultou a respiração e o simples ato de tomar um copo de água. Quanto sacrifício, mesmo sem dor, apenas com um incômodo que grudou na alma como se dela insista em nunca mais sair! Será isso um exercício de paciência para, depois, dar valor à vidinha normal e saudável? Quantas perguntas! Não há respostas - e se alguém falar sobre isso, como aconselhamento, corre o risco de levar um contravapor, para deixar de ser besta. O paraíso é visto num álbum de fotografias de vários lugares do mundão. Olha lá a felicidade num barquinho singrando o Rio Amazonas e vendo um transatlântico iluminado navegando em sentido contrário! Praias, lagoas, sítios. Tudo devidamente grudados no papelão cinza por cantoneiras daquelas. As unhas estão intactas. Falta cortar. Estão a furar meias. Vai ver que é isso.
quarta-feira, 17 de agosto de 2016
Dinheiro na conta
Juro que ouvi. Apertei um botão do rádio do carro emprestado e lá estava o pastor, de voz rouca, ouvindo os milagres dos fieis que tinham ido ao encontro do manto sagrado, divino, ou algo parecido. Os médicos em geral são considerados uns paspalhões que não conseguem resolver o que uma passada de mão no tal pano dá um jeito – e automaticamente. Entrou no ar, então, uma mulher de voz esganiçada, para contar o que aconteceu com ela. Disse que estava matando cachorro a grito, como todo brasileiro normal, mas que depois de ter ido à tal igreja, começou a aparecer dinheiro na conta dela. “Numa semana tinha cinquentão. Na outra, mais de mil e quinhentos”. Até o guia espiritual, que já ouviu milhões de histórias malucas, não acreditou muito e perguntou se ela tinha certeza. Ela disse que sim. Era o que eu precisava. Fiz um cavalo de pau na caranga e parti direto para o templo, a fim de me enrolar no manto e ficar esperando depósitos vindos de qualquer lugar daqui ou do além. No caminho, entretanto, o bom senso me pegou pelo colarinho. Imaginei então a cena do microfone desligado e o pastor pedindo para a mulher doar todo dinheiro que entrava para a igreja – afinal, é assim que Jesus Cristo salvador quer.
terça-feira, 16 de agosto de 2016
Cova funda
Nunca tive medo da morte. Questão lógica. Nasceu, morreu. No meio tem um monte de atrapalhadas. Alguns momentos de extrema felicidade - e muitos de monotonia total. Desde que me entendo de gente, sempre falei sobre o vestir o paletó de madeira com a maior naturalidade, mesmo porque um avião poderia cair na minha cabeça a qualquer hora. Gostei de saber da moda no México onde uma funerária atende os pedidos do morto (quando vivo) e faz o velório nos lugares que ele mais gostou em vida. Tem um lindo, do sujeito sentado à mesa do bar e o resto em volta na maior naturalidade. Acho que ali, em vez de um gole ao santo, davam ao morto presente. Meu sonho nunca chegou a tanto. Primeiro porque velório não é uma palavra do meu dicionário. Acho tudo aquilo uma hipocrisia só. Por isso resolvi cavar minha cova desde que consegui sobreviver até os quarenta anos. Cavava devagar, num terreno à beira de um lago, silêncio quase total. Devagar, mas constantemente. O buraco passou - e muito! - dos tradicionais sete palmos. Mais parecia um poço. O tempo foi passando e eu me dedicando cada vez mais. Virou vício. Até que um dia me toquei e resolvi fazer outras coisas. Não deu. Morri atrofiado.
segunda-feira, 15 de agosto de 2016
Atrás da porta
Disfarcei bem porque sabia que em casa ninguém ia entender. Aproveitei um momento em que estava sozinho e levei o objeto para trás da porta do banheiro do escritório. Dificilmente entrariam ali. Fiquei sossegado. De vez em quando dava uma olhada, passava a mão na lâmina - mas também não entendia porque tinha comprado. Nada a ver com apoio a movimento ou reverência ao famoso símbolo vermelho. Sim, comprei uma foice, dessas que toda hora vemos nsa mãos de integrantes do MST em manifestações. Novinha, cabo de madeira comprido... uma arma e tanto. No dia em que descobriram, por acaso, a presença dela como parte integrante da coleção de armas brancas, comecei a pensar de fato no motivo de tal aquisição. Provavelmente um filme daqueles de fotografia deslumbrante, com o camponês usando a ferramenta para cortar algo cor de ouro, seguindo a sinfonia do vento. Pode ser. Pode não ser. Sei que ela está lá quietinha com sua lâmina curva, muita afiada, esperando algum movimento. Nisso eu não penso.
sexta-feira, 12 de agosto de 2016
quinta-feira, 11 de agosto de 2016
Surto
Me convenceram. Sou candidato. Não tenho um puto de tostão furado. Disseram que isso faz parte da estratégia. Para enganar os que estão em situação igual. Eles vão votar em mim, garantiram. Me convenceram porque acreditam que sou honesto. Caso raro. Precisam ter mais gente para que o partido a consiga o que quer. O que? Fazer o bem para o povo, me disseram. Mas quando ouvi isso, todos na minha frente estavam olhando para o chão. Teve gente que se virou. Acho que riam. Passaram uns dias e um jornalista veio me entrevistar. Foi a primeira vez na minha vida. Eu disse que não sabia o que faria caso fosse eleito. O mané deu uma risadinha, como se soubesse de tudo. Vi minha cara na tv durante a campanha. Uma vez só. Fui um dos mais votados. Eleito, foi aquela badalação dos donos do partido. Já falavam dos planos para mim, do que eu poderia ganhar falando em nome dos durangos. Renunciei antes de assumir o mandato. Ninguém entendeu. Expliquei - e não acreditaram. Quando aceitei o convite, estava em surto psicótico. Depois, passou.
a voz
De Sérgio Rubens Sossélla
a vozque disse
no princípio era o verbo
transferiu-se do gênesis
e me espera no apocalipse
(minhas mãos vazias que o digam)
quarta-feira, 10 de agosto de 2016
um bom poema
De Paulo Leminski
um bom poema leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
um bom poema leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto
Telefone
Que doce ingenuidade era dele! Achava que era só entrar numa loja e comprar um aparelho de telefone e, pronto, podia falar com o mundo. Nunca fez isso, mesmo porque tinha medo das modernidades e, pelo que lhe falavam, o telefone custava os olhos da cara. Nunca teve um automóvel, apesar de ter passado um período de bonança nos negócios. Como dirigir uma geringonça daquela? Era do tempo do lampião a gás. Mais que isso: de onde veio, quando a noite caía, a lamparina era quem iluminava. Por isso, nunca esquecia as noites de lua cheia no sítio, pois tudo ficava como se dia fosse. Foi embora antes que a revolução dos computadores tomasse conta do mundo. Sim, ainda pegou a expansão da rede telefônica e, lá para onde voltou, nos grotões do fim do mundo, instalaram um aparelho onde podia falar com os filhos que estavam a léguas de distância. Não era de muito papo, e sempre meio desconfiado, mesmo porque quase não gastou nada para ter o aparelho falador que era da cor cinza. Um dia recebeu um telefonema de um parente da Europa. Não acreditou que aquilo era possível. No que fez bem. O outro queria uma grana emprestada.
terça-feira, 9 de agosto de 2016
Ó, céus
De Roberto Prado
nenhum pio
nada de nuvens
não há azul
ó, céus!, que são tantos,
que cada um tem o seu
e ainda tem quem não veja
quando a gente cai do céu
Miau
Sou do tempo do seja o que deus quiser ou, num melhor tradução, foda-se o mundo porque não me chamo raimundo. Quando descobri que o mundo tinha um acelerador só pra mim, pisei até o fim – e dá-lhe postes pela frente para desviar ou se esborrachar. Podia sair da casa dos pais com mochila nas costas e cantando Sá, Rodrix e Guarabira. A outra opção era casando. Fiz a mais tresloucada. Com pouco mais de vinte anos já era pai, depois vieram mais dois filhos e nunca os avós receberam um pedido de socorro, mesmo porque não concordavam com a primeira patuscada e eram pobres. Vida que segue. Hoje todos as crianças são adultas e, como diziam antigamente, com orgulho, formados. Mas… cadê meus netos? Essa moçada parece encruada. Sabem tudo de internet e o caralho a quatro, agora caçam pokemons e eu pergunto se dá para fritar o bicho pra gente comer. Eles riem na minha cara, porque sou um velho dinossauro. A que teria mais chances de me dar o “filho com açúcar”, a mais nova, não sei porque cargas d’água é a mais equilibrada e ajuizada da tropa. E o que ela fez? Cria duas gatinhas que eu já chamo de netas. Miau!
segunda-feira, 8 de agosto de 2016
Murrasco
Murrasco. A palavra veio no meio de uma conversa - mas só na minha cabeça. Não soube o motivo e não sabia o significado. Passei quase 24 horas encafifado. Claro que procurei no gugol e nos dicionários tradicionais. Nada. No meio da madrugada ouvi uma voz. Era da minha mãe: "Onde você esteve, peste, que está com esse cheiro de murrasco?" Seria o que o cheiro? Mais alguns dias com aquilo martelando e lá vem de novo minha mãe, que deus a tenha, falando em fogueira, em fumaça. Era isso! Aquele cheiro que fica impregnado até na alma se ficamos perto de uma fogueira ou mesmo churrasqueira fumacenta. Murrasco! Então pensei nas festas de fim de semana dos bacanas de Brasília, onde carnes nobres são servidas, etc. Os poderosos se entopem de comida - e os pobres empregados ficam com o murrasco. Assim é.
quinta-feira, 4 de agosto de 2016
Hora da cobrança
A fatura do corpo um dia aparece. É a cobrança. Ela veio com a idade, exatamente quando ele achava que estava numa fase esplendorosa. Tinha passado por tudo na época em que se achava imortal. E não é que era mesmo! Experimentou todas as drogas lícitas e ilícitas e o máximo que ficou marcado no corpo foi uma cicatriz no meio da testa - porque acertou um poste durante uma apagamento de bebedeira. Sobrevivente, espantou a todos por virar um careta que só tomava água. Até que um dia... Acordou estranho, corpo ardendo em febre. O primeiro espirro foi tão forte que quase uma ponte-móvel voou boca afora. No segundo, escorreu aquela nata do nariz. Ele chamou a mulher e pediu um papel para escrever o testamento. Ela disse para se acalmar, afinal, aquilo era apenas uma gripe. Ele não ouviu. Pediu que telefonasse para um amigo dono de hospital. Queria reservar uma UTI.
Por um lindésimo de segundo
De Paulo Leminski
tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu
tudo em minha volta
anda às tontas
como se todas as coisas
fossem todas
afinal das contas
tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu
tudo em minha volta
anda às tontas
como se todas as coisas
fossem todas
afinal das contas
quarta-feira, 3 de agosto de 2016
No paraíso
Uma pequena enseada com areia fina e branquinha, uma montanha protegendo-a - e esta coberta por um manto de mata explodindo de verde. Olhei e pensei no quanto tinha esperado pelo momento. Viajei anos, comi o pão que o diabo amassou, sobrevivi a tudo, inclusive tentativa de assassinato. Fui atrás porque a cidade grande caiu sobre minha alma num dia em que acordei e vi que não havia cor no céu. Sem família, sobrevivendo de um trabalho escravo que me esgotava os nervos e rendia apenas para a comida mínima e o aluguel da pensão, o que poderia me impedir? Família eu não conhecia desde que nasci. Fui e, agora, estou aqui, num canto desconhecido do Brasil. Sentei e depois deixei meu corpo cair na areia. Ouvia só o barulho do mar e o canto de alguns pássaros. De repente me cutucam. Era um sujeito estranho, de óculos escuros e chapéu de abas largas. Ele pediu para que eu me retirasse dali. Isso mesmo! Nem perguntei por quê. Ele avisou que a praia tinha sido alugada para que gravassem um comercial de cerveja. Saí correndo. Agora não sei mais para onde ir.
VÔO
de Nelson Capucho
não existe sorte
azar não existe
tudo é risco
arrisque
leão de zôo
tem os olhos tristes
não existe sorte
azar não existe
tudo é risco
arrisque
leão de zôo
tem os olhos tristes
segunda-feira, 1 de agosto de 2016
Colonoscopia
Seria o fim? O médico examinou e balançou a cabeça negativamente. Não mentiu. Disse que estava preocupado com aquela barriga grande e dura. Pediu todos os exames possíveis, mas o que encafifou o paciente foi a tal de colonoscopia. Ok, ele tinha relatado o aparecimento de sangramento, mas nunca tinha feito tal prospecção, apesar de já ter quase 70 anos. Fez os outros, mas ficou preocupado com aquele, apesar de muita gente que já tinha se submetido ao tal ter tentado lhe acalmar. Ele sabia que seria anestesiado e só voltaria depois de tudo terminado. O medo dele eram as fotos do seu interior. A preparação para tal exame foi um martírio. Ele acha que colocou a alma para fora na véspera. Fez a coisa, o resultado saiu na hora. Olhou as fotos, horríveis, mas leu que estava tudo dentro da normalidade. Ao voltar para casa, com uma médica da família que o acompanhou no dia de céu azul e sol forte, de repente falou, do nada, enquanto esperavam o sinal abrir para seguir caminho: “No fim de tudo o fim prevalece”.
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