quinta-feira, 29 de outubro de 2015
Dois amigos
Afogados. Perdi dois amigos assim. Nas férias escolares. Não voltaram para a classe. Recebemos os avisos como se fossem bilhetes frios e mal escritos. Afogados. Evitamos falar a respeito, mas a morte trágica fica dentro, como uma sensação ruim. Mil afogados tem a letra de uma música. A conversa no terreiro com os santos que descem para tentar proteger o menino do tiro de misericórdia. Os afogados falam com a gente. Um dos meus quase enlouqueceu uma colega. Fomos à igreja que ficava perto de onde ele morava. Mandamos rezar missa. Ele queria ficar em paz. Ficou. Ela também. Afogados. Tenho esses. Não tenho queimados. Outro tipo de grito que fica no ar. É o desespero da hora sem saída. É a entrega da alma diante da impotência diante da morte. Ficam os recados. Da fragilidade humana. Do pode acontecer. Do aconteceu. Meus amigos. Para sempre.
quarta-feira, 28 de outubro de 2015
Sentinela
São três da madrugada. O calor é infernal. O ar tão pesado que daria para cortar com a faca que tenho aqui na cintura. Minha arma principal, porém, é outra. Tenho um fuzil automático que pode cortar o corpo de uma pessoa com uma rajada. Nunca atirei em ninguém. Nem sei porque me deu a louca de vir para essa fronteira. Estou cercado de florestas. Minha guarita é minúscula. Não vejo nada, apenas ouço. Os bichos, os fantasmas, o som do tropel das amazonas que saem em busca de carne humana. Minha farda pesa duzentos quilos. Não posso dormir. Espero um inimigo que nunca apareceu. Defendo minha pátria. Lá embaixo do barranco tem um rio. Ele tem águas barrentas e muito, muito peixe. Às vezes tenho pesadelo acordado quando estou de sentinela no meu turno da madrugada. A água sobe e inunda todo o quartel. Um jacaré enorme entra na guarita e minha cabeça fica presa dentro da boca dele. São três da madrugada. Uma estrela cadente risca o céu lá para os lados de não sei onde. Alguém deve ter visto a mesma coisa neste mundão escuro.
LIÇÃO
De Helena Kolody
A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
terça-feira, 27 de outubro de 2015
No banco da sogra
No banco da sogra viajei num Karman Ghia. Eu não era nem sogra, nem sogro do dono do carro. Apenas uma criança que, encantada com aquele carrinho vermelho, foi do Rio de Janeiro e a Vassouras. O motorista era um desconhecido, mas a namorada dele morava com uma tia querida que me dava o colo que nunca tive em casa. Nunca mais esqueci o possante e a praça antiga da cidadezinha. Anos depois, num dia de sol em que fui à janela do prédio público para olhar as árvores, tive uma visão - e alucinei. No pátio coalhado de carros novos, mas em cores sóbrias, estava lá o esportivo tão vermelho quanto aquele onde sonhei acordado nas retas e curvas de uma estrada sem trânsito. Desci correndo e, ao segurança, perguntei sobre o dono. Fui lá falar com ele. O carro era do pai e estava guardado há tanto tempo que os pneus ressecaram. Foi a única reposição que fez depois de tirar da cabeça do velho a ideia de vender a joia. No final de semana seguinte acabei com minha inveja boa que senti. Fui à feira e comprei vários, cada um com uma cor diferente. Entraram na coleção de um sonho de verão.
segunda-feira, 26 de outubro de 2015
O banquete do Macau
Estava tudo cinza. A cidade, o ônibus que sacolejou do subúrbio até o Centro. As pessoas também. Aqui dentro tinha uma luz. Eu ia ao show. O teatro ficava embaixo de um viaduto - desses que invadem salas e, de repente, um carro entra pela janela e pela goela de alguém vendo televisão. Entrei. Quase ninguém naquela sala gigantesca. Cinza escuro. As luzes se apagaram e o artista apareceu. Ele e o violão. O microfone solitário sorriu com a companhia. Não houve aplausos. Ele sentiu o silêncio e começou a cantar. O som do violão cortava o coração. A voz envolvia a alma. Os óculos redondos ressaltavam não os olhos, mas os dentes proeminentes. Ele atacava a vida que, naquela tarde de domingo... era cinza. Viu a luz aqui dentro. Gritou "cuidado!", há um morcego na porta principal. Depois disse que estava cansado, mas que não ia ficar parado lamentando o eterno movimento dos barcos. Então se foi, em silêncio, mas feliz por ter feito. Ficou aqui dentro. Anos depois, em outra cidade, num palco redondo de teatro pequeno, cantou aquele que, disse, considerava o verdadeiro hino nacional brasileiro: Carinhoso. Explicou: todo brasileiro sabe cantar. Apoteótico Macau. Herdeiro de Morengueira. Ele, Jards Macalé - o do Banquete dos Mendigos e do brilho no cinza de sempre.
Minha vida Meu amor
De Dalton Trevisan
Olha minha vida meu amor
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula
Olha minha vida meu amor
Há muito não és mais meu
Toda a loucura que fiz
Foi por você
Que nunca me deu valor
Por isso perdeu tua mulher
E teus filhos
Não posso com esta cruz
Acho muito pesada João
Você vem me desgostando
A ponto de me por no hospício
Uma vez conseguiu
Mas duas não
Aqui ô babaca
De tuas negras
Que nem os filhos se interessou
De batizar na igreja
Você só vai no bar do Luís
Outro boteco não achou
Mais perto da tua família
Só me operei que você obrigou
Agora não presto
Já não sirvo na cama?
Quis fazer de mim
A última mulher da rua
Mas não deixei
Por tua causa amor
Eu morro pelada
Abraçada com os dois anjinhos
No fundo do poço
Amor desculpe algum erro
E a falta de vírgula
sexta-feira, 23 de outubro de 2015
quinta-feira, 22 de outubro de 2015
A casa
Já encomendei o projeto. Mandei uma foto da paisagem que quero ver do janelão. Ali de cima dá para enxergar onde termina o pedacinho de terra e começam outros e mais outros e mais outros até chegar no pé daquele morro lá na linha do horizonte. Às vezes tudo fica verde, quando cai água do céu do sertão. Às vezes fica seco, mas os pés de manga, de jaca, ah! esses são como troféus eternos da natureza. E tem também aquele pé de não sei o quê que fica bem na quina de uma divisa e fica parecendo um grande buquê de flores exatamente quando os galhos secam. A gente olha e se deslumbra e se alumia como o sol que é forte desde que surge lá atrás da casa que um dia terei. Ela vai ser fresquinha, toda de concreto aparente, linhas retas, pé direito bem alto, um espação como se fosse um oásis dentro do oásis dentro do deserto. É ali que vou partir para os outros mundos dos livros, viajar nas músicas, escrever as histórias que, aleluia, tenho muitas pra contar. O projeto está encomendado. Quem vai fazer conhece muito bem o dono, porque sangue do meu sangue. Pode ser que nunca a casa brote naquele chão. Mas... precisa? Ela já existe.
o xerife
De Sérgio Rubens Sossélla
hoje, voltei a mesentir
o xerife da cidade fantasma da minha infância
quarta-feira, 21 de outubro de 2015
Ócio e ossos
Ficou viúvo, sem filhos, na casa do sítio. Trabalhava feito um condenado desde que os pais lhe deixaram aquela terrinha. Quando casou, para acabar com a solidão, se ferrou mais. A mulher era um o cão vestindo calcinha. Ele passou a se esfalfar mais no cabo da enxada. Sexo tinha data e hora marcada por ela - e ai se ele não funcionasse! Agora não queria mais lembrar disso. Depois do enterro se jogou na cama e ficou ali lembrando uma conversa que teve com parente da cidade grande. Era sobre um filme parecido com sua vida. O personagem ficou sozinho e nunca mais saiu da cama, do descanso. Um cachorro ia buscar as compras. A um amigo que o visitou, fez encomenda de alimentos para ser levado toda semana. Tinha dinheiro guardado para pagar. Assim ficou, como o do filme, durante meses. Só que o cachorro dele era um vira-lata vagabundo. O bicho ficava ali olhando, comendo uns restos que caíam ao lado da cama, etc. Até que um dia, sem mais nem menos, arrancou dois dedos dos pés do dono com uma só dentada. Gostou. Aí comeu todo o pé esquerdo. Depois, o direito - e continuou se alimentando do resto porque o homem desmaiou no primeiro ataque. O dono do animal não sabia que o ócio deixava os ossos molinhos.
terça-feira, 20 de outubro de 2015
Armas
A gorda encostou as carnes e perguntou que negócio duro era aquele. Eu disse que era uma arma. Ela achou engraçado. Eu disse que era verdade e levantei a camisa. O cabo do 32 apareceu. Ela fez os dentes desaparecerem imediatamente sob os lábios pintados de vermelho cheguei. Estávamos encostados no balcão de uma padaria de bairro. Ela queria comer um doce. Eu queria fugir dali porque era muito tímido. Sabia que ela era puta, muito simpática, mas puta falada. Ela queria me levar e eu não saberia o que fazer. Era o nó que travava tudo. Paguei o doce e fui embora. O revólver era dessas loucuras que jovens fazem quando têm dão chance. Aquele era um Rossi. Do meu pai. Ele me emprestou porque eu tinha andado mais de ano fardado e, achava o velho, seu filho podia andar com o berro que guardava com carinho em cima do guarda-roupa do quarto. Se algum ladrão entrasse naquela padaria, adeus doce, adeus puta, adeus vida. Eu não saberia o que fazer, apesar de ter a sensação de segurança. Nunca mais quis saber da arma. Nunca mais vi a puta. A padaria continua no mesmo lugar depois de anos. Ninguém encosta mais carnes em mim. Nem gordas, nem magras. Sou um velho. Estou num asilo. Conto histórias que os outros não ouvem, mas riem.
segunda-feira, 19 de outubro de 2015
No mar
É como jogar bilhetes ao mar e não esperar nada. Dentro do navio à deriva. Há uma chance de a coisa ser lida se você colocá-la dentro de uma das garrafas que, há muito tempo, estavam cheias de um líquido que rasgava a garganta. Mas ela tem de ser engolida pela versão moderna da Moby Dick - e algum Mestre Jonas entre dentro dela para ler. Como as garrafas não existem mais e você fica naquela interminável sucessão de anoitecer, amanhecer, sozinho no seu barco, porque sempre foi assim, vá se conformando no fato de ainda ter alguma ideia e, melhor, papel e caneta. Quando isso terminar, terminou. O tigre dentro do barco naquele filme chato foi uma boa ideia de imagem, mas tem que puxar muito pela imaginação para fazer a a analogia ou algo parecido. Um dia vi um no convés, mas foi na fase do delirium tremens por causa da abstinência forçada. Depois descobri que era apenas um quadro chinês na parede e, outra vez filme, lembrei de Derzu Uzala e seu medo com o espírito que encarnava o animal. Alguma coisa bateu no casco. Vou ver. Voltei. A guarda-costeira de algum país. Vão me levar. Perguntei se na prisão poderia escrever. Disseram que sim.
sexta-feira, 16 de outubro de 2015
quinta-feira, 15 de outubro de 2015
O filósofo
O filósofo tinha quase dois metros de altura e, quando o conheci, perto dos oitenta anos. Andava meio adernado, curvado, mas falava de uma forma que iluminava qualquer alma atormentada. A coisa que eu mais gostava de ouvir era sobre o equilíbrio emocional. Coisa simples. Uma balança daquelas com dois pratos. No mínimo, dizia, era preciso que a gente desse valor às coisas boas, normais, para que um prato ficasse no mesmo nível do outro, aquele onde estão os tormentos que inventamos ou existem, mas que ganham um peso acima do que de fato têm. Ele bebeu pesado até os 60 anos. Contava sobre seu vício de uma forma exemplar. Tinha dinheiro, muito - sempre teve, coisa de herança. Poderia conhecer as melhores cidades do mundo, se instalar nos hotéis mais luxuosos, mas não saía da sua cidade. Por que? Ah, lá não tinha o bar onde bebia todo dia, explicava. Também se enganava ao enganar a mulher nas raras viagens curtas que fazia de carro. Um importado que, invariavelmente, tinha problemas na estrada e ele precisava verificar. Parava no acostamento, abria o capô, pegava um canudo que levava no bolso, abria o compartimento reservado para água e sorvia a vodka que colocava sempre lá. Ele foi embora há um tempo. Feliz. Sua balança sempre estava desequilibrada. Para o lado das coisas boas.
encouraçado na geladeira
De Sérgio Rubens Sossélla
ao abrir a geladeira naquele dia
depois de alguns anos eu veria a cena
no encouraçado potemkin
quarta-feira, 14 de outubro de 2015
Um doce presente
Meu irmão bebia feito um gambá. Irmão de gambá, filho de gambá, gambá é. Um dia ele me contou que parou de entornar. Duvidei. Foi há quase trinta anos. Ele parou mesmo! Como estava muito distante, quis saber como aconteceu o milagre. Não, ele não foi ao AA e muito menos fez terapia. Gastava todo o dinheiro do salário pagando os tragos diários para ele e todos os amigos da birita. Andava armado. Não matou ninguém. Amém. Mas um dia, contou, que estava quase totalmente durango kid, e como também tinha o vício do cigarro, comprou um maço. Logo depois que pagou, viu um doce de padaria que mexeu com seus hormônios. Não pode satisfazer a fissura - estava completamente liso e quase louco. Aí resolveu parar com tudo. Foi o doce que tornou sua vida doce.
terça-feira, 13 de outubro de 2015
O rei e eu
Ninguém me contou. Vi. Ouvi. Estava lá. Presencial, como nos leilões com cartas marcadas. Levei uma revista embaixo do braço. Dentro uma foto de mil novecentos e pedrinhas. Nela, ele estava ao lado do outro. O rei e o príncipe. Anos depois, agora, o soberano estava ali, na minha frente. Entrei de sola dizendo que o time dele, o considerado melhor de todos os tempos, não era. Eu disse que tinha outro, muito melhor. Ele perguntou qual, sabendo que vinha alguma coisa que o faria rir. Eu disse o nome do meu. Ele riu. Depois assinou aquela foto. Eu pedi dedicatória para o meu pai, que já estava no céu, ao lado do príncipe. Ele chamegou. Ao sair dali, cercado de seguranças, entrou numa van e, ao ver uma criança ao lado da mãe, segurada pela mão, ali perto, na calçada, chamou-a. Abraçou-a, fez um agrado, algumas perguntas não respondidas. A criança era tímida, não respondeu nada, sorriu e depois voltou para a proteção maternal. Eu saí e, por coincidência, ouvi a senhora dizer para outra, uma amiga, enquanto caminhava como se tivesse recebido uma benção divina, que ele tinha pego sua criança no colo - como é que podia aquilo? Então a outra respondeu que era por isso que ele era o rei. Pelé.
sexta-feira, 9 de outubro de 2015
quinta-feira, 8 de outubro de 2015
A princesa etíope
A princesa etíope flutua como Didi em campo aos olhos de Nelson Rodrigues. Ela é tão nobre que esqueceu a nobreza que tem. Ela sabe decifrar os mistérios da alma. Transforma tudo numa sequência de palavras que leva, a um mundo desconhecido, mas sentido, quem as lê. É sentimento, que pode ser encantamento e tormento. A princesa etíope tem dificuldade de decifrar o que chamam de real. É como se estivesse atravessando uma ponte, segura, mas que dá medo. Ela olha para os lados, para o alto - e se ilumina. Mas a ponte está ali, um vento a balança um pouco e ela não sabe se segue em frente, mesmo tendo os passos firmes e a altivez de uma princesa. Suas mãos com dedos compridos seguram onde há de se segurar. Mas por alguns momentos ela acha que aquilo também não é seguro. E o instante do próximo passo, isso é o que fica dentro dela, inquietando, num jogo que às vezes a dilacera, mas ao mesmo tempo a reforça. Porque ela é a princesa etíope, escolhida para isso, para comandar o seu próprio ser. Essa a descoberta que está fazendo. Para o passo. Que será apenas um passo, antes do outro e do outro e do outro. Então ela caminhará sem a ponte. Flutuando, feito Didi em campo.
quarta-feira, 7 de outubro de 2015
Na calçada
A planta nasceu numa rachadura na calçada de cimento rústico. E a linha onde ela brotou, terminava/começava na base de um cano de torneira. Dali saía a água para regar as plantas daquele quintal com um pequeno retângulo de terra. Me encantei com aquilo. Visto de cima, era uma combinação de linhas, texturas, enfim, imagem. Ficou para sempre na minha mente, mas também numa fotografia feita em filme 35mm e ampliada no laboratório amador de um amigo. Sempre olho e, confesso, não sei que força ela me transmite. Há flores na pequena planta. A foto é preto e branco, ou seja, colorida, porque preto e branco são cores, apesar de pouca gente pensar nisso. Seria a força da natureza? Seria a proteção que aquela torneira parece dar à companheira de solidão? Será? Pra que saber.? Vou levar comigo para sempre, porque é assim - e não precisa de explicação.
na geladeira
De Sergio Sossélla
ao abrir a geladeira naquele dia
depois de alguns anos eu veria a cena
no encouraçado potemkin
terça-feira, 6 de outubro de 2015
A vida
Olhei pra trás e não me vi. Abri o álbum de retratos da família. Pregado entre quatro cantoneiras está lá um adolescente cabeludo, magricela, sunga diminuta, pose diante de um mar calmo em praia deserta. Eu era razoavelmente bonito e me achava o mais horrível dos homens. Numa outra foto parecia o homem das cavernas, barba enorme e desgrenhada, cabelo batendo no meio das costas, comendo caranguejo, um fio que parece de baba escorrendo e pedaços de carne branca penduradas no cavanhaque como se aquilo fosse árvore de natal de trogloditas. Numa outra, ao lado de uma bomba de posto de gasolina, cabelo curto, barba aparada, jaqueta de couro preta, o rosto seco, mas macilento indicando o drogado disfarçado. Agora estou aqui, muitos e muitos anos depois. Gordo, careca, surdo, dificuldade em dar mais de dez passos, sozinho num barraco de fundos depois do final da periferia, pensão por invalidez mental, filhos em outros planetas, mulheres nem em pensamento. Uma cadela me acompanha. Achei na rua. Entrou no cio outro dia. Tranquei a porta. Uma matilha tenta derrubar a porta. Ela fica esganiçando alucinadamente o tempo todo. Só há uma coisa a fazer: ligar a televisão e colocar no volume mais alto. Olha lá o Luciano Huk oferecendo baile de debutantes para meninas pobres que dançam com o galã da telenovela na versão atual de rainha por um dia do seu Silvio Santos. Será isso a vida?
o xerife
De Sérgio Rubens Sossélla
hoje, voltei a mesentir
o xerife da cidade fantasma da minha infância
segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Na paisagem
Quando vejo alguém falando em pragas que assolam o Planeta, fico puto. A praga maior, a que originou todo desequilíbrio e fez desencadear todas as outras, não é citada. Ele escreveu isso sob a luz de uma lamparina, com caneta Bic escrita fina, tinta quase no fim, em papel de embrulho amassado. Foi dormir pensando nisso. Morava num deserto onde, de dia, esquentava a mais de quarenta graus. Na primeira vez que esteve ali, vindo do Sul, onde nasceu, havia muita mata, muitos pássaros, muitos bichos. Depois de anos teve de se entocar na casinha que os pais deixaram, pois uma confusão terminada em sangue o obrigara a fugir, a se esconder. Aí já não encontrou mais nada - nem o pasto, a primeira praga. O açude secou, os bichos sumiram de morte morrida ou matada, os povos se arretirou, como falavam por lá. Ele ficou porque já não tinha forças nem ânimo. Andou ,muito por aqueles lados e viu o uso de herbicidas, viu o assassinato da terra, viu a morte em várias versões, e viu a maior praga, que era como no sul, onde morava em favela: o homem, a espalhar a doença e transformar tudo em amebas pestilentas. No dia seguinte guardou o papel com carinho. Pensou em pedir para alguém o colocar em seu caixão. Talvez pudesse apresentar sua descoberta lá do outro lado, para o todo poderoso. Quem sabe... Mas aí achou que a fome estava fazendo-o delirar demais. Rasgou o que escreveu e ficou olhando a paisagem esturricada.
sexta-feira, 2 de outubro de 2015
quinta-feira, 1 de outubro de 2015
Zé Tom
Toquei a campainha. O Zé abriu e eu vi o Tom. Todos. Porque ele sempre foi assim. Pega tudo, desde o sotaque do Cabral até o zunido do computador. Passa pelo batuque do saravá, índios marcando o compasso no terreiro da taba, samba, rock, smetack, jackson, aquele. O gravador ligado e uma torrente de informações impregnando a fita cassete. Existe rock brasileiro era o mote. Naquela sala de um apartamento simples saiu toda uma enciclopédia de vida musical como o próprio. O Zé do Tom. Quarenta anos depois ói ele mais Zé do que Tom, porque alucinadamente brasileiro. E manda tomar no toba quem renega o forró em Limoeiro, o som das máquinas e o olhar brasileiro de quem mostra as costelas, com olhar esbugalhado na frente do mar e recebendo nas costas toda a energia. Aquela. Que tomou conta quando ele abriu a porta, deixou entrar e sair. Tom Zé.
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