terça-feira, 6 de outubro de 2015
A vida
Olhei pra trás e não me vi. Abri o álbum de retratos da família. Pregado entre quatro cantoneiras está lá um adolescente cabeludo, magricela, sunga diminuta, pose diante de um mar calmo em praia deserta. Eu era razoavelmente bonito e me achava o mais horrível dos homens. Numa outra foto parecia o homem das cavernas, barba enorme e desgrenhada, cabelo batendo no meio das costas, comendo caranguejo, um fio que parece de baba escorrendo e pedaços de carne branca penduradas no cavanhaque como se aquilo fosse árvore de natal de trogloditas. Numa outra, ao lado de uma bomba de posto de gasolina, cabelo curto, barba aparada, jaqueta de couro preta, o rosto seco, mas macilento indicando o drogado disfarçado. Agora estou aqui, muitos e muitos anos depois. Gordo, careca, surdo, dificuldade em dar mais de dez passos, sozinho num barraco de fundos depois do final da periferia, pensão por invalidez mental, filhos em outros planetas, mulheres nem em pensamento. Uma cadela me acompanha. Achei na rua. Entrou no cio outro dia. Tranquei a porta. Uma matilha tenta derrubar a porta. Ela fica esganiçando alucinadamente o tempo todo. Só há uma coisa a fazer: ligar a televisão e colocar no volume mais alto. Olha lá o Luciano Huk oferecendo baile de debutantes para meninas pobres que dançam com o galã da telenovela na versão atual de rainha por um dia do seu Silvio Santos. Será isso a vida?
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