sábado, 30 de novembro de 2013

Sesta

Sábado é a sesta da semana, com a vantagem de no dia seguinte a preguiça continuar.

sexta-feira, 29 de novembro de 2013

quinta-feira, 28 de novembro de 2013

A Felicidade Silvinha Telles


que se foda

De Paulo Leminski

   - que tudo se foda,
disse ela,
   e se fodeu toda.

Beijo para as árvores

Ao subir as escadas o vento lhe chamou atenção. Saía de casa para o anexo em cima da garagem, onde se escondia e fingia trabalhar. Parou. Olhou na direção de onde vinha. Pela primeira vez reparou as árvores da rua paralela. As copas, umas grudadas nas outras, balançavam pra lá e pra cá. Então ele começou a decifrar a conversa entre elas. Eram poemas em forma de zumbidos, muxoxos, estalidos. Palavras indecifráveis mas que faziam sentido para ele, que parado ficou antes do último vencer o último degrau. Ele ouviu quando uma falou para outra que estavam sendo observadas. E aquilo se espalhou. Então as pequenas flores amarelas se transformaram em olhos. E estes eram doces como as curvas das montanhas na linha do horizonte. Ele sorriu por dentro e por fora porque vivia ali um momento raro e mágico. Então mandou um beijo, assim, como se faz, colando ele na mão e assoprando. O beijo enfrentou o vento e entrou nas árvores. Houve um arrepio e, logo em seguida, um agradecimento. Ele então entrou no escritório, fechou a porta, ergueu a persiana da janela e viu as árvores, agora imóveis. O vento foi embora. Mas elas estavam brilhantes, com a luz da mãe natureza.

quarta-feira, 27 de novembro de 2013

Sem pandeiro

Não sou poeta e não sei tocar um instrumento. Tentei haicai e caí em depressão. Fui de caixa de fósforos e quase incendiei o acervo de discos onde estava toda a obra de Ciro Monteiro. Conheci Leminski mas ele não me conheceu. Foi numa noite fria, tomamos conhaque e quem desmaiou foi a mulher de um amigo dele. Quase escrevi algo num guardanapo do restaurante, mas derrubei um copo e tudo ficou melado. No passado achava que ame-o ou deixe-o era poesia. Mas aí soube que os gorilas diziam isso para quem estava pendurado no pau-de-arara. Acho que traumatizei. Assim aconteceu com o pandeiro. Fui numa festa onde apareceu um regional para tocar chorinho. Não sei por que entrei numas de bater no couro que estava esticado em casa, bem longe dali. Mandaram buscar. Eu não toquei nada e quase fizeram da minha cara um instrumento de percussão. Agora, velho, continuo na mesma. Sem poética. Sem fazer um som. Minha voz é horrível para cantar. Desafino até para repetir um maluco que gravou algo falando em esperma entrando.

hoje

De Paulo Leminski

   que dia é hoje?
um dia, eu soube
   hoje me foge

Nelson Gonçalves Boneca de Trapo


terça-feira, 26 de novembro de 2013

Assim falou....

Não aguento mais! Vou acabar me afogando na merda das informações. Me jogam todo dia na cara. O motoqueiro que manda dois jornais para a grama. Caem perto do cocô da cadela que aduba a grama e tem mais consistência. As revistas lixos que assino também chegam assim, para foder o final de semana. E tem o noticiário em todos os duzentos canais abertos e a cabo da televisão. Todo mundo falando asneira, com cara de seriedade e com os jornalistas balançando a cabeça em aprovação como idiotas que são. E na internet? As mentiras chegam pelo celular, notebook, PC, pelo cano do esgoto, no rolo do papel higiênico. Chega!!!! Eu quero voltar pra Bahia e fazer um casebre em Arembepe. Puta merda!! Tem Camaçari ao lado e cagaram no mar!! Floresta amazônica, lá no meio do nada. Como? Tem antena parabólica? Enfiem no rabo! Vou procurar uma loca. Loca, não louca, e ler Zaratrusta de trás pra frente e de ponta cabeça. Ou queimar o livro porque tem um "assim falou" no título do Nietzche. Calma benzinho! Estou escrevendo um negócio aqui. Já vou!!!! Está começando a novela? Tchau pra vocês.

caminho de espinho

De Paulo Leminski

   longo o caminho
de uma flor
   só de espinho

Minha Candidatura Caco Velho


segunda-feira, 25 de novembro de 2013

flauta índia

De Paulo Leminski

a flauta índia
diz sempre
                    não ainda

Filme Triste Trio Esperança


Catarro

Sempre gostou do som do catarro. O som da palavra, não o produzido por aquele velho puxando a lesma do fundo da alma para emplastrar o que aparecesse na frente. Catarro, catarrento. Mas até aquele dia não tivera a experiência de produzir em seu corpo uma quantidade suficiente para encher um copo americano, por exemplo. Tinha pensado nisso numa noite mal dormida. Visualizou a imagem ali ao lado, em cima do criado mudo, no lugar onde, em muitas casas deste país, ainda existe a dentadura mergulhada e sorrindo para quem quiser ver. Tossiria de três a cinco vezes e aí faria o esforço para tirar a gosma, a placa catarrenta para cuspir dentro do copo. Conseguiria seu intento? Na noite seguinte foi derrubado por uma febre altíssima. Achou que poderia ser delírio. Não era. A garganta trancou e ele sorriu, mesmo sentindo uma facada no gogó. Ficou quase sem respirar, mas foi paciente consigo mesmo. Sabia que, a qualquer hora, a qualquer minuto, começaria a expectorar, como dizia a propaganda daquela pomada, a tal da Vic, mais antiga do que ele mesmo. No dia seguinte tossiu duas vezes, mas o que saiu foi sangue. Não ficou assustado. Forçou, então, e mais sangue saiu. Junto, contudo, estava lá! E assim foi até a noite. Trocou o copo por um maior, porque era muito sangue para pouco catarro. Pensou em separar tudo depois. Mas não teve tempo. Sentiu-se fraco. Chamou então um irmão que morava próximo. A cena de horror deflagrou o sinal para a ambulância, a UTI do hospital e um tratamento intensivo. Disseram que rompeu uma veia interna. Ele perguntou sobre o catarro. Nem responderam. Voltou para casa duas semanas depois. Mandou fazer um quadro do tamanho de uma das paredes da sala com a palavra. Deixaram de aceitar convites para almoçar ou jantar na casa dele.

sexta-feira, 22 de novembro de 2013

Serpente de aço

Viu a lâmina na vitrine de um loja de aeroporto. Alemã. Tinha um desenho e o cabo era de madrepérola. Atração fatal. Comprou, despachou, pegou, guardou. Ficou muito tempo sem vê-la. Lembrou que, quando criança, se alguém escondesse algum objeto do resto da turma, perguntavam se estava chocando. Sim, este estava chocando a serpente. Ele apenas esperava o sinal. Qual? Não sabia. Sentia. Ele veio no dia em que viu uma propaganda partidária. Aquele rosto tomando conta da tela não era de um humano. Era a própria besta do apocalipse. As palavras que saíam daquela boca fediam. Ele sentiu isso sentado na poltrona da sala onde morava sozinho. Foi ao ninho e pegou a serpente. Era pequena ao ponto de desaparecer se ele fechasse a mão em torno dela. Estudou os hábitos da besta. Queria fazer a coisa de dia, diante de muita gente. O melhor lugar era um restaurante que o escroto frequentava com os puxa-sacos de sempre. Foi lá. Entrou. Chegou perto alvo. Chamou-o pelo nome. Recebeu de volta o sorriso fabricado do candidato. O golpe foi certeiro. Na carótida. O sangue espirrou como em filme de samurai. Ele saiu devagar do lugar. Ninguém o incomodou. A luz do sol o fez colocar o óculos escuro. Voltou a pé para casa. Cumprira a missão divina. Guardou a serpente manchada de sangue. Ficou esperando um novo sinal.

Jorge Benjor da Capadócia


além das telhas

De Paulo Leminski

luxo saber

além desta telhas
um céu de estrelas

quinta-feira, 21 de novembro de 2013

dias de encher linguiça

De Paulo Leminski

home o circo está na cidade
todo mundo me telefonou
hoje eu acho tudo uma preguiça
esses dias de encher linguiça
entre um triunfo e um waterloo

Pra não dizer que não falei das flores Geraldo Vandré


Nua e descabelada

Foi presa por atentado ao pudor. Virou notícia no jornal porque entrou numa galeria de esgoto e deu o maior trabalho à polícia. Juntou multidão para ver o ocorrido. Aquela multidão que pede para pular quem está no terraço do prédio ameaçando suicídio. Ela estava nua. E era linda. Mas ninguém via o rosto. Descabelada, correu por entre bancários e automóveis. Não chovia. O sol era de derreter a moleira. O fedor do esgoto onde ela entrou era intenso, mas havia árvores em volta. Vieram os bombeiros. Entraram. Tiraram a moça, agora coberta por um plástico preto. Quando retornou à luz do sol, um policial pegou no queixo dela e ergueu o rosto. Ao afastar os cabelos, houve um silêncio no mundo. Ela tinha barba cerrada. Naquela hora, o caminhão velho do circo mambembe estava bem distante. O dono não queria assumir o filho que estava começando a crescer na barriga da descabelada.

terça-feira, 19 de novembro de 2013

Lucio Alves Helena, Helena, Helena


certezas de dúvidas

De Paulo Leminski

   nunca sei ao certo
se sou um menino de dúvidas
   ou um homem de fé

   certezas o vento leva
só dúvidas continuam de pé

Na área de preservação

O barco de alumínio com os três flagelos singrou as águas da baía na noite escura feito breu. O que tinham bebido não estava no gibi. Saíram quando um temporal se armava, apesar das recomendações contrárias. O motorzinho de popa gritava como um bicho a pedir socorro. Fantasmas de navios apareciam de repente como monstros saídos de um filme japonês. Uma luz nas trevas fez o comandante bêbado embicar o barco naquela direção. Na ilhota o casebre era o único a ter vida. Era um arremedo de boteco onde os três beberam mais e contaram que estavam indo para uma fazenda no pé da serra em área onde não se podia arrancar uma folha de grama, por causa dos ambientalistas. Quando saíram a chuva tinha apertado e as pequenas marolas quase afundaram o barquinho. Voltaram. Encharcados dormiram dentro do bar. No outro dia, de sol, saíram e enveredaram por riozinho que desembocava no mar. Chegaram à fazenda. Caminharam até uma casa que serviu de moradia para o dono, um dos três flagelos. Mais tarde comeram carne de tatu ensopada. Um dos três gostou de uma flor e ao chegar perto para sentir o perfume, foi picado na testa por um maribondo. Urrou de dor. Naquela hora sentiu que estava em outra dimensão, a dimensão dos bêbados. Tomou mais um gole e assim foi, junto com os outros, por uma semana. Até que conseguiram voltar. Como flagelos, para a cidade grande. Estavam bem diferentes. Inchados de cachaça.

segunda-feira, 18 de novembro de 2013

Periquito

De Paulo Leminski

Morreu o periquito,
A gaiola vazia
Esconde um grito

O bem do mar Dori Caymmi


Avisada


Eu bem que falei para ela esquecer aquilo. Não acreditou. Foi uma vez ao comício do maluco e se encantou como se ali estivesse a própria reincarnação do Jesus Cristinho. Filiou-se ao partido. Distribuía santinho em tempo de eleição. Uma vez ganhou o olhar do doido e quase teve um orgasmo. Chegou em casa contando para a mãe que ele tinha colocado os olhos em cima dela. Quando recebeu o convite para uma convenção da agremiação política dormiu com ele dentro da calcinha. Foi lá. Ouviu o discurso inflamado e as promessas de que tudo iria mudar quando ele, o destemperado, assumisse o governo e tomasse conta do Palácio. Ele ganhou. Ela precisou ser socorrida num posto de saúde depois que ouviu o resultado da apuração. Depois começou a prestar atenção nas atitudes do descerebrado. Ele empregou a família e até o cachorro de estimação ganhou uma sala na sede do governo. O sonho dela começava a desmoronar. Mas isso demorou todo o primeiro mandato e metade do segundo para ela perceber. Começou a sofrer. A dor era maior do que aquela quando o primo a enganara prometendo casamento. Além de tirar a virgindade dela, espalhou o feito para todo o bairro. Definhava a cada discurso. Espumava a cada notícia de roubo explícito. Um dia se jogou embaixo de um ônibus. Não morreu. Os socorristas estranharam que ela tinha uma foto do coisa dentro da calcinha. Mas na parte de trás e enterrada entre as nádegas.

quinta-feira, 14 de novembro de 2013

quarta-feira, 13 de novembro de 2013

vampiro

De Paulo Leminski

    impuro espírito
raro respiro
    o ar aqui tenta
arquiteto
   um vago voo
                       vampiro

Sem mosca

Chegou em casa repetindo sem parar: "Em cu raspado não senta mosca". Foi dormir dizendo essa indecência, e a mãe, Filha de Maria, devota de tudo quanto é santo, auxiliar do pároco da vila, enfim, uma santa com passaporte carimbado para o céu, não soube o que fazer naquela noite. Levou-o para o quarto e antes de deitar, sozinha na cama grande, porque o marido já tinha morrido há alguns anos, ficou pensando no tal do cu raspado. No dia seguinte acordou cedo, esperou a hora do seu filho único levantar, entrou no aposento dele, abriu a janela, o sol iluminou tudo, ele abriu os olhos e falou de novo. E foi repetindo, feito disco furado, até que ela resolveu chamar o benzedor. O velhinho, seu Januário, disse que aquilo era coisa do demônio, porque nunca, em oitenta anos de atividades rezadeiras, tinha escutado tal coisa. Enquanto ele benzia e colocava uma imagem na mão do garoto, este não parava de dizer a frase da mosca e do cu sem pelos. Foi só Januário sair e a preocupada mãe se esbaforir atrás dos amigos do filho para tentar saber o que tinha acontecido na noite anterior. Encontrou o mais chegado, perguntou se o filho bebeu demais ou feito outra besteira. Não, nada disso, foi a resposta. A única coisa diferente foi uma quenga loirinha e novinha que tinha aparecido não se sabe de onde e o menino se encantado de de virar o olho. Tímido, tentou falar com ela, mas a mulher não quis nem saber. Mais: diante da insistência do garoto, que fez até declaração de amor sem nem saber o nome da rapariga, ela falou bem alto e, segundo o amigo, a frase parecia foi como uma pancada que o menino recebeu no meio da testa. "Em cu raspado não senta mosca".

Nara Leão e Roberto Menescal Por Causa de Você


terça-feira, 12 de novembro de 2013

rosa rilke raimundo correia

De Paulo Leminski

Uma pálpebra,
mais uma, mais outras,
enfim, dezenas
de pálpebras sobre pálpebras
tentando fazer
das minhas trevas
alguma coisa a mais
que lágrimas

Zeca Pagodinho Deixa a Vida me Levar


O Fenemê disse alô

Era do tempo em que telefone se chamava macaco. Porque todos eram pretos. E grandes. E pesados. Armas usadas em alguns assassinatos passionais. Ele guardou um em casa, porque os filhos achavam demais enfiar o dedo nos números para discar um por um. Também diziam que era um absurdo sustentar aquele peso para dizer alô. Escondeu o macaco num baú e viu a telefonia brasileira chegar na era digital e o escambau. Resistiu o quanto pode a ter um aparelho celular. Mas quando o de linha foi colocado no lixo que não é lixo, achou que deveria ter um. Para falar com os velhos amigos que ainda estavam vivos. Para recordar - porque, como disse o Gabriel, aquele, é preciso viver para contar. As teclas eram minúsculas e ele não enxergava os números. Trocaram por um de tela e ele se atrapalhava todo. Tanto que o manuseio interferia até no problema da próstata que o fazia ir ao banheiro duzentas vezes ao dia para o alívio do xixi sagrado. Cansou mijar na cueca, calças, bermudas e levar esporro da mulher, velhinha mas pentelha como sempre. Um dia olhou aquela tela acesa por um toque e resolveu acabar de vez com a relação. Foi até uma avenida perto de onde morava e colocou discretamente o aparelho no asfalto. Ficou olhando da calçada. Teve sorte. Passou um caminhão enorme em cima. Ficou muito feliz, principalmente porque o bichão era um Fenemê do seu tempo.

segunda-feira, 11 de novembro de 2013

Dos dentes

Lembrou de uma reportagem da revista Realidade que relatava o trabalho de um funcionário do IML do Rio de Janeiro em tratar um caranguejo dentro do ralo do local onde os corpos eram lavados depois da autópsia. Ele engordava o bicho assim, com restos dos corpos, com sangue coagulado misturado com água. Depois, claro que comeu-o com o maior prazer tomando cerveja casco escuro, porque preferia essa às de casco claro. Lembrou porque começou a juntar o que tirava dos dentes depois das refeições. Tinha esquecido de quando a coisa começou, mas passou a ter o cuidado de fazer um bom trabalho com o fio dental e não mais pregar o produto da limpeza no azulejo branco do banheiro. Guardava tudo num lata que antes tinha abrigado um sorvete sabor flocos. A geladeira manteve por muito, mas muito tempo aquele material. Ele morava sozinho, não tinha como alguém mexer na produção. Um dia resolveu dar um destino àquilo. Fez uma sopa para uma visita inesperada e de quem ele não gostava muito. O outro adorou. Ele também. Lembrou do caranguejo do IML. Achou que a criação dele era mais gostosa, mesmo porque não deu tanto trabalho botar pra dentro.

quem sai aos seus

De Paulo Leminski

   vozes a mais
vozes a menos
   a máquina em nós
que gera provérbios
   é a mesma que faz poemas
somas com vida própria
   que podem mais que  podemos

Leandro e Leonardo Pense em Mim


quinta-feira, 7 de novembro de 2013

Asas de anjo

Começou a olhar aquela imagem do anjo protegendo duas crianças num caminho quando o que via começou a fazer sentido na vida - ou não. O quadro estava ali, desde sempre, pregado na parede acima da cabeceira da cama, segundo lhe contou a mãe. Não olhava para as crianças ou para o rosto do anjo, que flutuava, mas sim para suas imensas asas. Quando começou a excursionar com sua turma da rua para caçar pardais e pombas com estilingue, aumentou sua fixação por elas. Os bichos mortos a bolinhas de barro secas de um dia para o outro não lhe davam pena. Ele pegava um por um e abria as asas para ver se elas se pareciam com aquelas do quadro. Mas nada se comparava. Nem as de uma pomba toda branca que teve a cabeça quase arrancada por um pelotaço do bom de mira da molecada. Numa noite de insônia, ele jura que viu o anjo sair do papel, voar e ficar de frente para ele lá perto do teto do quarto. A voz não saiu para chamar a mãe e o pai. O anjo riu - e ele conseguiu levantar e acender a luz. O anjo estava no quadro. Conseguiu dormir. No dia seguinte, ao se levantar, encontrou no chão uma pena enorme. Guardou. Pediu anos mais tarde para que a colocassem no caixão quando morresse. Achava que, assim, iria voar para o Céu.

coração escrito

De Paulo Leminski

coração
PRA CIMA
escrito embaixo
FRÁGIL

Telefone Mudo Trio Parada Dura


quarta-feira, 6 de novembro de 2013

A cama da foto

Era adolescente quando se apaixonou por fotografia. Na verdade, a magia que o encantou era mais antiga, pois foi com sacrifício que pagou todas as mensalidades do Baú da Felicidade e conseguiu tirar uma maquininha de plástico que tinha o singelo nome de Tuka. Mais tarde teve a sorte grande ficar com uma maquinona emprestada por um funcionário da indústria automobilística, a fantástica Nikon F, que era usada por dez entre dez profissionais da imprensa e artistas em geral. Passou um dia com ela, quando fez aquela foto que nunca mais esqueceu. A cama de solteiro, toda desarrumada, ficava embaixo de uma janela - e a luz que ali penetrava foi perfeita para o claro/escuro eternizado no filme Kodak TRI-X e na cópia de papel. Não havia mais nada, apenas aqueles lençóis e um travesseiro que quase não aparecia. Quarenta anos depois ele achou a foto dentro de um livro, já amarelecida. Ficou olhando, olhando e descobriu que toda aquela confusão, aquelas dobras, tudo enfim, lhe apareceu como um presságio do que seria a sua vida durante muito tempo. Pensou nisso e sorriu. Mesmo porque, depois de velho, aprendeu a arrumar os lençóis  e dobrar as colchas assim que se levanta.

Evinha Luciana


amar: armas debaixo do altar

De Paulo Leminski

para frei betto e frei leonardo boff


   santa é a gente
quando lá fora faz frio
   e aqui dentro está quente
- entre! Digo eu,
   hora de ser igual,
hora de ser diferente,
   entre você e entre

terça-feira, 5 de novembro de 2013

maravilharia

De Paulo Leminski

tanta maravilha
maravilharia durar
aqui neste lugar
onde nada dura
onde nada para
para ser ventura

Tonico e Tinoco Chico Mineiro


A caneca

Era grande e, bem areada, tinha um brilho que a tornava de prata pura. Repousava sobre uma pequena toalha de renda branquinha como algumas nuvens que o faziam parar e ficar olhando como se aquilo fosse um mistério. Seu contorno ganhava mais destaque porque tinha como fundo a cor de barro do filtro. Também tomava conta daquela casa pobre porque estava colocada numa posição em que era banhada pelos raios de sol da manhã que atravessavam o vidro de uma janela. Só tinha um problema. A caneca de alumínio era do pai, aquele mesmo de olhar duro e que metia medo sem dizer uma palavra, apontar o dedo ou erguer a mão. O senhor todo poderoso da casa apenas olhava. E o menino olhava a caneca que, para completar, tinha uma espécie de colar bordado perto da boca, uma linha fina, delicada, com figuras minúsculas entrelaçadas. Ele via o pai se servir da água e os olhos cerrados eram indicação de que o líquido era dos deuses. Um dia ele encostou o dedo no metal. Frio. No outro, abriu a torneirinha e escutou o som da água se acomodando naquela joia. Foi tudo muito rápido. Ele estava sozinho na casa e tomou um grande gole, fechando os olhos para imitar o grande senhor. Ao abri-los, encontrou o olhar pregado no rosto seco. Tremeu. Viu então, pela primeira vez, um sorriso que jamais vai esquecer. E ouviu: "É bom, né?"

segunda-feira, 4 de novembro de 2013

sorte e azar

De Paulo Leminski

   sorte no jogo
azar no amor
   de que me serve
sorte no amor
   se o amor é um jogo
e o jogo não é o meu forte,
   meu amor?

Pedro Sertanejo e Oswaldinho


Chumbo quente

Abriu a cortina, era noite, e todas as imagens de Exu gargalharam. Ninguém sabia daquilo, mesmo porque morava sozinho no sobrado abandonado. A chama da vela tremeu. Ele se arrepiou. Estava pronto. Saiu protegido pela capa da noite. O coração era uma pedra de gelo. Sabia o que tinha de fazer. Não podia adiar um minuto, senão seria enterrado pela culpa de não ter agido. Viu o carro do boy estacionado na casa de mais uma que enganava. Quando abriu a porta do motorista o soco inglês quebrou-lhe a mandíbula e ele desmaiou. Levou o corpo coberto de grifes para o sobrado. Escondeu o carro. Amarrou o sarado e tatuado. Vedou-lhe a boca e esperou acordar. Dois olhos arregalados de pavor. O maçarico derreteu o chumbo. Ele despejou devagar nos olhos abertos a força. O verde desapareceu. Ele então lembrou da filha usada, desprezada e humilhada. Pulsos cortados. Vida ceifada. Depois que deixou a encomenda na frente da casa dos pais dele, voltou a pé. Estava tranquilo. Subiu a escada de madeira. Entrou no seu quarto. Na frente do altar fez o sinal da cruz para todos os santos ali presentes. Dormiu como um anjo.

sexta-feira, 1 de novembro de 2013

Pastel e caldo de cana

Esqueceram? Eu não! Sábado e domingo, aqui, tem três dias. Por isso comi pastel de palmito e tomei caldo de cana. Na feira. De sexta.