quinta-feira, 31 de julho de 2014

Baixou!

De Alvaro Posselt

Noite do espanto
Fui baixar um arquivo
baixou-me um santo

Multidões

O Cantor das Multidões saiu do pequeno auditório e foi até a sacada do prédio que abrigava a rádio. Havia milhares de pessoas em todas as direções que olhava. Ele ergueu a mão direita espalmada e o silêncio se fez. Então cantou sem acompanhamento ou microfone. Sua voz era ouvida até por quem não conseguia distinguir aquela figura muito alinhada, gravata com nó perfeito e sapatos brilhantes que escondiam seu grande problema. Carinhoso já era um hino nacional - por isso foi cantada em tom suave por todas as vozes - e a cidade inteira a ouviu. O slogan da rádio viajou no tempo. Foi naquela sacada, o saudosista pensou, enquanto ouvia o barulho infernal do trânsito na esquina e via o prédio abandonado até a parte da loja de eletrodomésticos que se abria para a calçada. Lá de dentro vinha um som que poderia ser breganejo, funk, axé ou alguma coisa da moda atual. Ele enfiou as mãos nos bolsos e saiu cantarolando meu coração, não sei por que, bate feliz, quando te vê...

Armandinho e Yamandu Apanhei-te Cavaquinho


quarta-feira, 30 de julho de 2014

O jorro

De Nelson Capucho

não me xingue
não se zangue
é só o jorro

do meu sangue

Dentro da parede

Sempre tive medo do suicídio tradicional. Tiro na cabeça, enforcamento, salto do décimo quinto andar, navalha cortando os pulsos, coquetel de barbitúricos, escapamento de automóvel, gás de cozinha. Não pelo ato em si, mas o que antecede tal coisa. Nunca tentei. Mas a vida estava tão sem cor, que um dia, pensando nisso, enquanto assentava tijolo por tijolo numa parede na casa que ajudava a construir em bairro nobre, de repente a ideia começou a surgir e ganhar forma como aquele pedaço da obra. Fiquei até mais tarde e disse para o mestre de obras que precisava adiantar um serviço porque, no dia seguinte, tinha um compromisso inadiável que faria eu me atrasar um pouco. Ele aceitou. Então me emparedei numa reentrância que o dono da casa não gostou e mandou fechar. No dia seguinte ouvi meus companheiros iniciarem o acabamento que terminou na massa corrida e pintuyra. Fiquei quieto na escuridão. Sabia que a cada minuto o ar diminuiria e a cimento secaria mais, tornando quase impossível a saída. Desmaiei a não sei quantas horas ali dentro, um espaço razoável que dava até para se esticar. Acordei no hospital. Tinham arrebentado a parede e me salvaram. Eu quis saber como. O chefe contou que ouviram gritos. Eu sonhava que estavam me emparedando e entrei em pânico.

Sergio Sampaio Eu Quero é Botar o Meu Bloco na Rua


terça-feira, 29 de julho de 2014

Confissão

Atravessou a rua quando viu a igreja de torres altas. Lá estavam os sinos anunciando a hora. Para ele não era isso. Para ele era o sinal de ali entrar, depois de anos, e se confessar. Estava carregado de pecados, menos roubo e assassinato. Encontrou o frade franciscano curvado pela idade e pelo peso da barba. Disse o que queria. Ouviu como resposta uma pergunta: "É divorciado?" Ele não só era divorciado como já tinha morado e se separado com umas doze mulheres. Brincava que queria ser o novo Vinicius de Morais. O padre disse que ele não podia se confessar. Lei da igreja. Incrédulo, perguntou se teria de ir para o inferno porque tinha se divorciado. O velhinho não respondeu. Virou as costas e entrou na escuridão do templo. No outro dia ele voltou e encontrou outro padre. A mesma pergunta ouviu. Ele disse que não, não era divorciado. Entrou, fez a confissão de todos os pecados que lembrou e, no fim, revelou que tinha mentido. Ao próprio padre. Dito isso, saiu do confessionário sem ouvir a penitência e crente que tinha pavimentado o caminho da salvação.

Sergio Reis Menino da Porteira


segunda-feira, 28 de julho de 2014

Invernáculo

De Paulo Leminski

Esta língua não é minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.

O bife

Os meninos eram pequenos e moraram numa casa pobre. Mas naquele tempo pobre se dava ao luxo de ter empregada. Ela era magrinha, pequena. Ficava a parte da tarde ali, fazendo um servicinho ou outro enquanto a patroa trabalhava duro na máquina de costura. Jantava cedo. No cardápio sempre havia bife. O dela ia para o prato, mas ela não comia. Embrulhava e levava para casa. Aquilo intrigava os meninos que ela cuidava. Um dia eles resolveram segui-la. Achavam que ela guardava o pedaço de carne para ir comendo no caminho. Não era isso que acontecia. Foram até a casa dela, muito, muito mais pobre. Conseguiram ver que, assim que chegava, ela entregava o bife para a mãe, que a esperava na porta. E aí imaginaram o que acontecia. Aquele bife pequeno seria dividido para várias bocas.

Elza Soares Meu Guri


quinta-feira, 24 de julho de 2014

Virtual

De Bernardo Pellegrini

ser
sem

ter
sido

ter
sem

ter
tido

sentir
sem

ter
sentido

Chico e Caetano O Quereres


Aqui!

Perguntou e ouviu: “Nem longe, nem perto; aqui”. Ele estava no telefone de um orelhão que tinha sido queimado por alguns noiados que acham que a fumaça dá barato. Mas o aparelho funcionava. Discou porque precisava falar com uma atendente do serviço funerário. O motivo não importa. Do outro lado aconteceu uma voz tão doce que ele imaginou ter acessado uma linha do céu. Ficou encantado e engatou uma conversa. A moça era muito educada e amável. Dosava a seriedade com bom humor - e ele, já maluco, pensava em sexo. Ele queria saber o nome dela, onde trabalhava e o endereço. Ela só disse “nem longe, nem perto; aqui”.  Foi aí que desligou. Ele ficou com a voz e a indicação na mente por vários dias. Até que assumiu que também não estava nem longe, nem perto. E permaneceu na dele. 

quarta-feira, 23 de julho de 2014

Winchester 44

A Winchester 44 que deu o primeiro tiro no final do século XIX apareceu nas mãos dele porque tinha de aparecer nas mãos dele. Lembrou de Antonio das Mortes e engatilhou. Não havia balas. Ele não queria. Apenas para saber se a máquina estava funcionando. Quando apontou para o nada e olhou através da mira, foi que viu. Era a produção dela através dos tempos. Tiros em todos os cantos dos corpos, mas principalmente na cabeça, letais. Abaixou a arma. Não havia nem vivos nem mortos naquela paisagem do agreste nordestino. Um galo de campina voou, o xexéu de bananeira imitou o canto de outro pássaro, ele mirou de novo e mais e mais mortes desfilaram à sua frente. Foi aí que recebeu uma bala, uma única bala, de alguém que estava olhando a cena. Colocou, armou, apontou e atirou. Tudo voltou à paz. Ele então foi colocar o rifle para descansar numa parede da casa.

Noite Ilustrada Sem Compromisso


terça-feira, 22 de julho de 2014

Pastéis

De Dalton Trevisan

Uma bandeja inteira de pastéis. Como escolher um deles? São tantos.

— Fácil: deixe que ele te escolha.

Tela viva

Uma estrada e uma ponte que cruzava um lago, um mar. Ele não lembra bem. Estava viajando no banco do carona e um sacolejo o fez acordar e se deparar com aquilo. O sol tinha descido e a luz era a que antecede o breu da noite. Barcos minúsculos ainda se conseguia ver na lâmina da água escura. Parecia cinema. Ficou para sempre com aquilo na memória. Imaginava filmar ali, apesar de nunca ter empunhado uma câmera. Não sabia o enredo, nunca tentou fazer o script, mas tinha certeza de que aquilo precisava ser registrado -porque os personagens dispersos começaram a povoar sua alma. Ficou velho e nunca mais passou por aquele lugar. A cena nunca saiu da tela viva do da sua  memória.

Altemar Dutra Sentimental Demais


segunda-feira, 21 de julho de 2014

Fugaz

De Rodrigo Garcia Lopez


passagem por uma paisagem, 
lugar do onde, do ontem, do quando, 
quantas palavras ficaram faltando 
na boca cheia de imagens. 
o outro é aquele que ficou à margem, 
no espanto de um pronome, 
no corpo de uma brisa suave; 
o outro é como uma fome 
pluma à deriva, à distância, ou quase. 

estranho em sua própria viagem, 
garrafa com uma mensagem, 
olhar durando numa flor, 
sem nome, secreta, selvagem. 

Desterro, água bebida num trem, 
peça incompleta, festa adiada, vertigem, 
a cabeça sempre em alguém, 
eu outro, eu todos, ninguém.

Depois do jardim

Só depois dos 70 ele descobriu que era bonito aos 20. E muito mais magro. E com muito mais cabelo. E com muito mais energia. E sem saber de nada. E sem medo de arriscar. E sem saber dos perigos. Então olhou para a árvore do belo jardim do casarão e viu um pássaro pousar num galho com pouca folhagem. Conversou com a única pessoa que o ouvia - ele mesmo. Veio uma alegria intensa por estar vivo, por descobrir que o interlocutor era ainda mais jovem que aquele de meio século atrás. Havia o diálogo que antes era apenas um monólogo de quem estava do lado de fora e se sentia no comando. De repente uma brisa mais fria interrompeu tudo. Ele ajeitou a manta que cobria as pernas. Uma enfermeira disse que era hora de voltar para o quarto. Empurrou a cadeira de rodas que ajudava-o a não fazer muito esforço, apesar de ele ainda poder dar alguns passos. Voltou para o quarto do asilo e ligou a televisão. Não existia mais ele nem o outro. Era melhor assim.

Anastácia


quinta-feira, 17 de julho de 2014

Ratos

Ele conseguiu! Todos os líderes mundiais assassinos estavam ali à sua disposição. Ditadores, democratas de fachada, enfim, todos os que determinaram massacres sem dó nem piedade. Assassinatos com bombas, tiros, fome, epidemias, ignorância e mentiras. Olhou todos e notou que tinham a postura altiva daqueles que acreditavam ter feito o que precisava para que tudo se mantivesse sob controle. Tinham convicção absoluta nisso, daí a certeza de que eram psicopatas sanguinários. Ele não fez discurso, nada. Saiu da sala, trancou a porta a prova de som e abriu o compartimento por onde ratazanas famintas entraram sentindo cheiro de alimento. Eram milhares e o que mais chamava a atenção, além dos dentes, eram os olhos negros e esbugalhados. Ele então pode descansar um pouco. Então olhou a paisagem tranquila de um fim de tarde à beira de um lago longe de qualquer aglomerado urbano. No outro dia começou relacionar onde aqueles líderes poderiam ter deixado como herança seus rastros de ódio.

dito

De Paulo Leminski

tudo dito,
nada feito,
fito e deito

Emilinha Borba


quarta-feira, 16 de julho de 2014

Descompassado pela freira

A madre superiora saía na varanda da casa que abrigava a diretoria e batia um sino ouvido em todo o colégio. Soava como música dos anjos. Recreio ou hora de ir embora. Mas havia mais. Uma das freiras. Toda coberta de preto, só o rosto aparecendo naquela moldura branca. O menino estava no primeiro ano primário e quando a viu pela primeira vez se apaixonou perdidamente. Não queria saber de mais nada e rezava, pedia aos santos, a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Deus, enfim, que fizessem com que ela aparecesse todo dia, nem que fosse por uma fração de segundo. Quando isso acontecia, o coração batia descompassado como bongô, como mais tarde ele ouviu e concordou com o poeta Aldir Blanc. Sim, ele tremia mais que as maracas e nunca confessou isso ao padre no sábado porque, não, definitivamente não era pecado. Era como se fosse um milagre que ele ainda não entendia direito, mas sabia ser do lado bom da vida.

Lição

De Helena Kolody


A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.

Celly Campello Banho de Lua


terça-feira, 15 de julho de 2014

Pelos e pelos

Não tinha notado, mas um dia lhe contaram que seus pelos do nariz estavam saindo da cavidade. Disseram mais: que eles se pareciam com os das pernas de aranhas caranguejeiras. Só aí ele resolveu olhar. Também se assustou. Pegou a primeira tesourinha que achou e cortou tudo, mas sentiu uma dor profunda ao furar o teto interno de um dos túneis. Notou no dia seguinte que os pelos tinham crescido de novo, só que estavam maiores. Passou a acordar no meio da noite para cortá-los. Ao amanhecer, cortava de novo. Os pelos não cresciam durante o dia. Ele consultou médicos especialistas. Acharam que ele estava batendo biela. Partiu para o ataque agressivo e depilou com cera. Quando lhe arrancaram tudo, sentiu que sua massa encefálica tinha saído junto. Também não adiantou. Comprou um aparelho elétrico, um aparador de pelos que queimou no segundo uso. Lhe recomendaram xixi de lagarto. Conseguiu o produto depois de muito tempo. Deu certo. Não tem mais pelos no nariz - mas os dos ouvidos parecem touceiras.

Assinatura

De Dalton Trevisan

no muro o caracol
se derrete nos rabiscos
da assinatura prateada

Zé Geraldo Milho aos Pombos


segunda-feira, 14 de julho de 2014

Encontro com Anna Magnani

Ele viu Anna Magnani no rosto da prostituta da Casa de Pedra. Queria ser o motorista de caminhão alucinadamente apaixonado por aquelas olheiras, mesmo estando longe de ter qualquer traço da fachada e do corpo de acrobata de Burt Lancaster. Cinco "velho Jack" regados a muita cerveja sempre faziam isso com ele. A vida se transformava em película e o coração era mais romântico que um casal enamorado dançando na penumbra ao som de um bolero. Anna veio a um sinal. De perto ele sentiu o perfume do jardim daquele lar doce lar da viúva de A Rosa Tatuada. E mergulhou sem se preocupar se teria águas calmas ou um precipício a espera. Acordou no dia seguinte - e Anna não era Anna. Ela perguntou se ele estava bem. Ele disse que sim. Ouviu o choro de uma criança dentro da casa de madeira. Não se importou. Pagou e saiu caminhando com o sol lhe ferindo os olhos. Estava numa rua de terra vermelha. Caminhou como nos finais de vários filmes. O dele demoraria muito para terminar.

Vida

De Antonio Thadeu Wojciechowski

Vida/ um ano a mais/ um ano a menos/ que diferença faz/ quando já somos/ mais ou menos/ mais suaves/ mais sábios/ mais fortes/ mais justos/ e de mais a mais/ cromossomos/ um ano a mais/ um ano a menos/ a vida é cais/ e lá vão nossos sonhos:/ barcos pequenos/ um ano a mais/ um ano a menos/ lendo os sinais/ nos esquecemos/ e quando nos lembramos/ é tarde demais/ um ano amais/ outro odiais/ um ano demais/ outro de menos/ um ano tanto fez/ outro tanto faz/ um ano como nunca ouve outro/ um ano sem pagar e só levando o troco/ um ano que vem/ um ano que vai/ e os mesmos ais/ mais amenos.

Rafael Rabello Tico Tico no Fubá


quinta-feira, 10 de julho de 2014

Homenagem

Em homenagem aos jogadores da seleção brasileira, estou em outros mundos e não sei fazer nada em campo.

terça-feira, 8 de julho de 2014

Comunhão

De Miguel Sanches Neto

Uma de minhas namoradinhas
era pobre de pé no chão
casebre de madeira e manhã
e tinha tanto piolho
que acabei herdando-os.

Quando brigamos,
eu quis romper para sempre.
Com pente fino
expulsava os piolhos
de minha cabeleira
e ia, um a um,
estalando-os nas unhas.

(O sangue que saía era meu e dela.)

Um corpo na água

O corpo apareceu boiando na água límpida. Estava inchado e em decomposição. O primeiro que viu não acreditou naquilo. Ficou observando alguns detalhes. Não podia ver o rosto, mas prestou atenção nas orelhas que lembravam um personagem de seriado interestelar. O cadáver vestia uma jaqueta vermelha e a calça jeans era apertada nas canelas. Isso fez inchar ainda mais a parte visível até chegar à meia. O espanto do curioso foi passando com o tempo e ele resolveu não chamar a polícia por acreditar que não iam acreditar no que falaria ao telefone. Ele virou o corpo e levou um susto. O rosto era angelical - e não estava inchado. Lembrava o anjo de Morte em Veneza e a expressão era de que tinha morrido feliz. Um suicídio? Talvez. Então a testemunha pegou o copo e derramou o líquido no rio caudaloso. O corpo deslizou devagar e seguiu boiando, agora em águas barrentas. O copo foi lavado e colocado no escorredor. Ficou ali por um bom tempo até que outra pessoa o pegasse para tomar água. Nunca mais apareceu um cadáver naquela casa.

Paulinho da Vila Timoneiro


segunda-feira, 7 de julho de 2014

Poesia mínima

De Helena Kolody

Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos

Não há mais

Havia. Não há mais. Um verbo que rasga o peito, queima a memória e verte lágrimas sentidas. Ele então olhou-se no espelho e se sentiu velho e cansado. Estava no banheiro de uma pensão barata numa vila que brotou junto com o garimpo descoberto no meio da floresta. De dia o sol queimava a pele. À noite a lua trazia junto o som dos demônios da mata. Alguns goles de cachaça serviam para embaralhar tudo. O copo da cerveja quente o levou até aquele espaço de dois por dois, chão de terra batida com um buraco cimentado onde todos se aliviavam. Ba parede aquele pequeno espelho, que refletia um pouco da luz da lamparina colocada em lugar estratégico - e os rostos daquela multidão de desgarrados da vida, anônimos feito as árvores que os cercavam. Havia. Não há mais. Ele pensou e sentiu o cheiro das roupas de cama limpinhas onde um dia deitou. E o cheiro da mulher amada, as vozes dos filhos que reinavam pela casa. Por que agora estava ali? Aconteceu como num corte abrupto de filme, no tempo exato da passagem de um fotograma para outro. E o passado foi derretido na chama de uma vida de erros.

Almir Sater Peão


quinta-feira, 3 de julho de 2014

Na madrugada

A fotografia estava num álbum que há muitos anos ele não via. Lembrou dela no meio da madrugada da insônia constante - e a imagem apareceu como se tivesse a poucos centímetros dos seus olhos. Ele então resolveu escrever para quem estava registrada ali. Ao enfileirar as palavras que saíam como se ele estivesse num transe, descobriu o quanto conhecia aquela figura esguia a percorrer decidida uma ladeira e tendo ao fundo uma floresta iluminada. As revelações da cena congelada no instante do clique feito feito por ele, na verdade não eram revelações, mas sim a explosão de tudo que tinha trancafiado na alma e não sabia. A caneta acompanhou seu pensamento. Quando terminou, estava exausto e muito, muito feliz. Mandou a carta no dia seguinte, na primeira hora. Não esperou a resposta, pois aquilo que fez era uma a mais pura e sincera declaração à filha distante.

subtrações

De Roberto Prado

que tal pegar tudo que temos
e deste todo fazer a grande falta
um salto que cai, uma queda que salta
essa soma assim sem mais nem menos?
por que não juntar o nosso nada
o eterno que move, o nunca que repousa
e fazer destas perdas somadas
o achado de alguma coisa?

Cascatinha, Inhana Colcha de Retalhos


quarta-feira, 2 de julho de 2014

Na cama

De Dalton Trevisan

Na cama, diz o marido:
- Você é gorda, sim. Mas é limpa.
- ...
- Você é feia, certo? Mas é de graça.

Jair Rodrigues Disparada


Para engolir

O livro cheirava a mofo e havia túneis feitos por traças. Foi o único que ele encontrou na casa do bisavô paterno que herdou e estava fechada há muitos anos. Antes era uma fazenda. Foi engolida por uma cidade e estava cercada de favelas. Tentaram destruí-la, mas era impossível. Paredes de pedra, como uma fortaleza. Ele folheava as páginas escritas em latim quando um papel caiu sobre uma das tábuas largas do piso. Apanhou. Em letra garatujada estava escrito: “Coisa ruim eu não mastigo, engulo”.  Aquilo foi como receber um soco no estômago da alma, se curvar com a dor, recuperar-se e nunca mais esquecer. Foi também como o canto de um anjo empunhando uma espada vingativa e com o fio ensanguentado. Ele então saiu dali, foi para casa e a primeira coisa que fez foi jogar algumas mudas de roupa na mochila e sair para sempre sem dizer absolutamente nada para a mulher que o atormentava há 25 anos. Fez isso porque, se ouvisse algo, poderia lhe quebrar os dentes e ser preso. Engoliu e voou, sabendo que ela também faria o mesmo. 

terça-feira, 1 de julho de 2014

Desconstruído

Tem uma construção que vejo aqui da minha janela. Faz tempo que não ouço a música do Chico. Do compositor chegam as convicções do delírio, mas isso é coisa dele - a poesia, não, isso é coisa nossa! O céu está muito azul e, em vários momentos, a luz do sol e suas sombras fazem tudo se transformar em imagens lindas. Os pedreiros e ajudantes trabalham duro. Agora estão cobrindo o casarão com milhares de telhas. Daqui não vejo mãos calejadas, não sinto os corpos cansados, não sei a miséria que ganham, nem se têm mulher, filhos, nada. A vontade que dá é a de retratar as cenas, seja com câmera analógica, digital, em desenho ou em pintura. Não sei fazer nada disso. Ficam as imagens na retina da alma. Se fosse bilionário pagaria pelo que me proporcionam. Sou pobre e estou desempregado. Mas não gostaria de ser modelo ou inspiração para poesia subindo em construção e atrapalhando a vida.

BUSCA

De Nelson Capucho

a bordo de nau
sem rumo
só me encontro
quando fumo
nenhum minotauro
me assusta
meu labirinto
é apenas o que eu sinto

                        

Marina Lima Uma Noite e Meia