terça-feira, 4 de novembro de 2014

Cadáveres

"Não sei como vocês conseguem comer cadáveres". Ele ouviu isso de um menino uruguaio que estava internado na clínica psiquiátrica. Todos ali, de alguma forma, tinham surtado no mundo normal. Ele mesmo tinha chegado ali num charuto, ou seja, enrolado e imobilizado em faixas, porque chegou em casa de madrugada e destruiu com um machado a tv que estava ligada na sala. A mulher pensou que iria assassinar a família toda - por isso pegou os filhos e saiu correndo para a rua e pediu socorro. Não adiantou ele explicar que não era nada daquilo, que seu ódio era contra a televisão e a merda que espalhava. Foi contido. Não resistiu. Doparam-no e ele ficou do jeito que era: calmo. Comer cadáveres! O gringo falou aquilo no dia em que, raro, serviram bife para os pacientes. Alguém então disse que aquilo era de soja. O menino ficou mais possesso. Invadiu a cozinha, pegou uma faca, cortou a palma de uma mão e começou a beber o próprio sangue. Os olhos deles estavam esbugalhados. Eram bonitos. Verdes. Um dia os dois saíram daquela prisão de muros altos. O uruguaio sumiu no mapa. Ele ficou por aí, sempre lembrando dos cadáveres, mas pedindo carne mal passada para comer.

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