quinta-feira, 6 de novembro de 2014
O inferno
O inferno somos nós, não os outros. Cada um tem o seu, particular, porque o demônio toma conta e não há água benta no mundo, ou benção do Papa, ou oração ao Menino Jesus de Praga, ou confissão e comunhão com meia dúzia de hóstias, ou descarrego no terreiro, ou a mão na cabeça do pastor evangélico, enfim, não há nada que o tire quando se instala. Ele pensou em tudo isso naquele dia da semana em que quase tudo deu errado, a começar pela quina pontiaguda da cama que atacou exatamente o ponto onde reconstruiu o tendão que liga os músculos da coxa ao joelho direito. Foi assim que saiu do mundo aparentemente normal que vivia - e foi se arrastando pelas labaredas do dia, onde os outros sobreviviam como sempre - mas ele, não. Porque cada palavra, cada olhar, cada interpretação que dava ao que entrava no ser era pesada demais. Até o cachorro da vizinha, para ele, merecia uma bola de carne com veneno para parar com seu latido esganiçado antes de o galo cantar, galo este que não existia na vizinhança, mas ele jura que também ouviu um, doido, às três da manhã. Depois teve de entrar em engarrafamentos, viu a temperatura da água do carro velho subir a ponto de explodir tudo... Pensou que seria melhor assim, se fosse um carro-bomba, para sair daquilo e ir direto para o... Enfrentou a burocracia oficial em busca de documentos perdidos, notícias dos casamentos anteriores, um parente no hospital, olha ali o seu guarda te multando. À noite, tomou um banho quente e quase virou um animal sem pelo nenhum porque o aquecedor despirocou e um jato fervente lhe caiu nas costas. Foi dormir. Sonhou que teve um sonho. Acordou de volta ao inferno dos outros. Não o seu. Passou rente à quina da cama. Jura que viu ela mandar um beijinho para seu joelho.
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