terça-feira, 30 de junho de 2015

palavras na mesa

De Roberto Prado

sombras se esgueiram
entre vírgulas
separadas por tontas sílabas
que se espantam

nesta mesa, caros amigos,
como em tanta véspera
o que ainda me separa
de minha santa ceia?

MPB4 Amigo é Pra Essas Coisas


O poço

O mistério do poço era o poço. E o balde. E a corda. E tudo desaparecendo naquele buraco. O menino olhava a mãe sair do casebre com a bacia de alumínio, deixá-la no chão, tirar aquela tampa de madeira, destravar a manivela e descer o balde cinza, de metal, cuja alça estava com a corda amarrada bem no meio - e que antes de desaparecer sempre balançava mesmo sem vento, sem nada. Depois tinha aquele barulho que mais tarde ele ouviu na voz de Luiz Gonzaga, mas no caso era a caneca entrando na água quando ele voltou ao nordeste e levou uma chamada de Januário. Tibung! Aí ele via a mãe com a mão esquerda segurando "os quartos", como ela dizia, e enrolando a carretilha grande, fazendo força, até aparecer o balde chorando. Ela o tirava na mira do buraco e depois despejava a água limpa na bacia, que levava pra dentro. Naquele dia o menino reparou que a mãe esqueceu de fechar a tampa do poço. Ele foi lá olhar. Se esticou até conseguir ver tudo - e era escuro, e parecia que um monstro iria sair dali e puxá-lo. Mas ele olhou direito e viu, lá embaixo, no fim do mundo, um pedaço do céu e algumas nuvens que estavam acima dele, pois olhou para verificar. E aí se viu naquele espelho. Era uma cabecinha de alfinete. Quis saber também se podia aparecer  a mãozinha dando tchau. Apareceu. E as duas, daria? Deu. E aí foi sonho ou pesadelo porque sumiu tudo que o amparava. Lembra que escutou um grito. Depois, ainda tonto, um braço segurando seu corpo e ele subindo na corda até os olhos se ofuscarem com a luz do sol. Ouviu gente rindo, chorando, foi abraçado, beijado, tudo mais. Falaram em milagre e ele foi colocado na cama depois de tomar banho quente. Foi assim que o mistério do poço aumentou muito mais para ele.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

vazia

De Alice Ruiz

A gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia

Ultraje a Rigor Ciúme


Animal!

Queria ser famoso, celebridade, essas coisas de agora. Quinze anos. Entrou numa academia. Como era pobre de subúrbio da caixa prego, teve de ir para uma que se chamava Hércules. Os pesos estavam enferrujados. O dono tinha sido mister Carapicuíba em 1953. Estava entrevado e babava por um canto da boca. Mas os exercícios estavam lá. Ele puxou ferro durante três anos, cinco horas por dia - e ainda tomou umas bombas feitas para encorpar jegues a fim do abate para exportação de carne a países asiáticos. Um dia viu um cartaz escrito à mão num poste da vila. Teste para atores de novela. Ele foi. Tirou a roupa, mostrou o corpão dentro de uma cuequinha que comprou numa liquidação no supermercado, onde pagou R$ 6,60 por três e levou quatro. Disseram que foi aprovado e que no dia seguinte ele começaria as gravações. Estava lá. Era num quarto de motel vagabundo, tipo Iglu Inn. Tinha um cineasta com uma câmera na mão e uma mulher de 40 anos que só podia ficar com os braços esticados para cima para que mantivesse a altivez mamária. Ele encarou a missão. Recebeu elogio do diretor pelo desempenho. Da mulher, não - ela preferiu sair para fumar. Ele voltou para casa feliz. Lhe disseram que grandes atores de Hollywood começaram assim. Da Globo não conhecia nenhum, mas a emissora não deixa divulgar um treco desses. No dia seguinte tinha outro capítulo. Lhe informaram que ia ser sexo animal.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Sem nome

Ficou na dúvida se tinha ou não perdido a memória. Não completamente, mas para as coisas que vinham de repente - e nada. O nadador do filme "Enigma de uma vida", por exemplo. Foi assim que ficou preocupado. Lembrava dele atravessando várias piscinas dos vizinhos e também entrando no mundo das drogas por acaso, já velhinho, em "Atlantic City", ou ainda aquele beijo famoso na areia da praia em "A um passo da eternidade", ou, mais ainda, o caminhoneiro apaixonado por Anna Magnani em "A rosa Tatuada". Mas... cadê o nome? Não quis ir ao Google, apesar de saber entrar e se perder ali. Queria lembrar pelas próprias pernas, se é que elas têm a ver com isso. Os dias se passaram e ele ali com as cenas, o rosto, o corpo, o sorriso do ator na cabeça - e nada. Fez esforço para esquecer o esquecimento. Esqueceu. Mas aí vieram outros apagamentos, sempre com ator ou atriz da tela grande. Achou melhor procurar um médico. Foi. Este deu risada quando ouviu o drama. Disse que passava por isso também. Ele contou o primeiro caso. O doutor também conhecia todos os filmes daquele ator, mas não recordava o nome.

Voos

De Sérgio Rubens Sossélla

um passarinho
e uma borboleta
o que eles são?
dois vôos.

Zeca Baleiro Lenha


quarta-feira, 24 de junho de 2015

Filosofia

Achou a filosofia bem filha da puta. No bom sentido, se é que poderia ser classificada assim. A frase veio do nada, mas o fez pensar em quantos seres filhos da puta, no mau sentido, tinha conhecido em tantos anos de existência. Não, não tinha a ver com as mães dos tais, porque elas nunca merecem, mas com o caráter filho da puta dos crápulas que, do nada, demonstraram porque eram filhos da puta. Teve um que, do nada, foi pedir sua cabeça ao chefe do local onde trabalhava. Teve outro que ficou lhe devendo uma fortuna por trabalho feito e certa vez, ao ser cobrado, resmungou: "Você só pensa em dinheiro!" Cortou dos pensamentos as revelações dos descasamentos, porque estas eram clichês conhecidos em todas as Varas de Família. Lembrou de um amigo empresário de jogador que, no meio de uma madrugada, ao saber que sua estrela tinha caído com o carro dentro de um rio canalizado, e às vésperas de ser vendido por milhões, gritou: "Este filho da puta quer me foder!!" Não era o caso de caráter, apenas de bebedeira. Então ele se debruçou de novo sobre a frase que desencadeou tudo rapidinho, e repetiu em voz alta, olhando nos próprios olhos diante do espelho: "Ser filho da puta não é um ideal a ser alcançado. É, sim, uma grande filhadaputice".

querer

De Paulo Leminski

isso de querer
ser exatamente
aquilo que a gente é
ainda vai nos levar
além

Demetrius Ritmo da Chuva


terça-feira, 23 de junho de 2015

Lembra

De Alice Ruiz


Lembra o tempo em que você sentia
e sentir era a forma mais sábia de saber 
e você nem sabia?


Carmem Miranda Rebola a Bola


Branca

Quando a endorfina bateu ele estava vendo um documentário sobre uma expedição ao K2 que deu merda. Morreram vários alpinistas e os que se salvaram pareciam ter pirado, além de perderem dedos dos pés e das mãos. Um dos guias virou capa da National Geographic, mas não quis falar sobre o que aconteceu. Andando e correndo há mais de duas horas na esteira, velocidade oito, ele ficou vendo aquela imensidão branca e as histórias de alguns heróis sobreviventes ficaram futucando a mente. Dois dias depois esqueceu tudo porque conheceu um grande homem, destes anônimos, que estão ali do lado, menino ainda atrapalhado com a turbulência da alma, perdido por um tempo na procura de algo que fizesse sentido, mas que só o afundou no mundo das drogas. Agora estava dando os primeiros passos depois de um longo tempo de internação, algo parecido como o do jogador Casagrande, até que numa noite, por estes encontros na encruzilhada da vida, alguém entrou trincado na cozinha de uma casa e jogou um pacote com algo  branco e muito perigoso - e não era neve. Os olhos do menino se arregalaram. Ele viu as pupilas dilatadas do cheirado, olhou de novo aquele pó branco, sentiu dor imediata no estômago, relembrou os tempos em que se afundava nas carreiras e trafegava só no universo paralelo, temeu por não aguentar aquilo - mas saiu dali com o coração apertado e aos pulos. Ficou assim por um tempo, trancado no quarto e com uma sensação ruim e boa ao mesmo tempo. Até que falou com gente do seu time, gente que já tinha passado por isso e ali, no relato, recebeu dele a carga reveladora da força da vida que aconteceu no instante mágico da hora da decisão, aquela entre ir por um caminho ou pelo outro, já conhecido e sofrido. E o menino soube então que tinha conseguido chegar ao ponto fundamental de ter o domínio para a escolha.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Necessidade de morrer

De Miguel Sanches Neto

Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra

Tonico e Tinoco Moreninha Linda


O bichinho

Entrou no consultório do oncologista como se estivesse adentrando a sala de cinema para ver um filme musical dos velhos tempos. Ouviu toda a explicação do doutor sobre os perigos do câncer na próstata - e a dele estava dando todos os sinais de ter o bichinho do ham-ham, como ele costumava brincar. O médico disse que o perigo são os tipos mais agressivos, que em seis meses saem do casulo - e aí é só resta encomendar o caixão. Ele riu. Em caso de detecção a tempo, dá para fazer tratamento com raios que o partam ou cirurgia para extirpação. Nos dois casos perde-se um pouco a virilidade. Ele riu mais ainda. O especialista contou então que todos os homens que sentam naquela cadeira sempre ficam apavorados - e perguntou por que ele não. Durante 40 anos, explicou o paciente, flertou com a morte sem saber - e conseguiu sobreviver. Não tinha medo porque estava diante de um doutor que aparentava saber tudo e explicava de forma simples e direta, ao contrário dos candidatos a deus que encontrou na vida. No caso da virilidade, ele disse que, se ficasse totalmente brocha, não se incomodaria pois há muito tempo não funcionava. Nessa o homem de jaleco branco também riu. Depois de todos os exames feitos, inclusive com biópsia sofisticada, comprovou-se que o bichinho ainda não tinha aparecido. Mas ele estava preparado para a chegada. Rindo.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Francis Hime Trocando em Miúdos


Do limbo

 O cordão umbilical quase me matou no parto de cócoras. Minha mãe era índia Xucuru e sobrevivente do grande massacre sempre escondido nessa Terra Brasilis. Nasci na aldeia em cima do morro e minha tribo nunca deixou os brancos chegarem muito perto. O contrário sempre aconteceu. Um dia eu desci a ladeira. Literalmente. Comecei tomando Pitu misturada com Jurubeba. Dormia na rua, comia restos, me banhava no açude público. Um pária. A degradação que vem de dentro pra fora. Acordei então na lama de um grande chiqueiro de uma fazenda próxima. Cagado e melado. A lama tinha a cor cinza. Pensei no tal limbo que um dia um padre enganador falou para meus irmãos da tribo. Quando desci ao inferno encontrei-o bebendo cachaça também. Até brindamos. O limbo é isso, pensei. E eu sou feio. Aí veio uma chuva daquelas raras. Temporal. Levantei e fui correndo para um pasto que havia ali perto. Um raio cortou no horizonte e se enfiou na terra. Fiquei limpo. Continuei a correr. Subi o morro. Minha mãe estava na porta da maloca. Ela abriu o sorriso mais lindo que já vi. Descobri que, eu mesmo, sou lindo. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Gestos

Esticado no sofá ele olhou para os pés e descobriu, depois de velho, que fazia a mesma coisa que o pai. O pé direito passava por cima do esquerdo e nele se apoiava. Ficou ali olhando enquanto a televisão emitia sons sem interesse e a luz azulada iluminava a sala - e os pés. Estava descalço e, pimba, olha lá os pés do pai, dedos compridos como os das mãos... Os das mãos? Olhou com as costas voltadas para o rosto, mas a uma certa distância. Então lembrou que também sempre repetiu outro gesto - o de passar a mão direita na cabeça, a partir da testa até chegar à nuca e ficar ali por um tempo, normalmente quando sentado à mesa e num sinal claro que não estava contente com a vida. Não, ele nunca esteve de bem com a vida e era calado, e balançava a cabeça negativamente sem dizer nada quando se deparava com coisas que achava erradas - e elas eram muitas, principalmente a própria existência. Mas isso nem ele nem o pai sabiam direito. Descruzou então os pés, olhou a tela de tv e viu uma bunda rebolando até perto do chão. O pai tinha razão.

Dalva de Oliveira Estrela do Mar


terça-feira, 16 de junho de 2015

A última paçoca

Quem comeu a última paçoca? O grito foi ouvido até do outro lado da rua. Gutural, como se dizia no tempo do Underground, ou seja, quando Tião Macalé tinha dentes. Ele tinha escondido a última no fundo da gaveta onde jogava todos os cartões de visita e contas pagas. Viciado era - mas duro também. Comprava de caixa, naquelas lojas onde se vende doces de pacoteira para bares da periferia ou aniversário de pobre. Comia uma por dia, sagradamente. Quem comeu a última paçoca?, berrou de novo. O grito bateu nas paredes e só não voltou porque ele saiu da minúscula cozinha, onde tinha revirado tudo, e partiu para procurar no quarto e até no banheiro. Nada. Ele então se jogou no sofá que tinha uma lençol em cima para cobrir as marcas do tempo e ficou olhando para o teto e para o nada ao mesmo tempo. Sentiu de novo o gosto dela na garganta, mas não quis gritar mais. Foi então que lembrou que morava sozinho - e que a última paçoca ele mesmo tinha comido no dia anterior, logo depois da penúltima.

feliz

De Paulo Leminski

jardim da minha amiga
todo mundo feliz
até a formiga

Germano Mathias Joga a Chave


segunda-feira, 15 de junho de 2015

Meu tio

Eu tenho um tio que poderia ter sido campeão mundial de boxe. Ele continua sendo um bloco monolítico de ossos e músculos com uma cabeça grande, pescoço curto, e uma força que derrubaria Rocky Marciano e aguentaria todo tipo de pancada. Ele não sabe disso. Trabalhou no batente pesado como quem vende algodão doce para crianças. Fez isso a vida toda, nunca reclamou, nunca foi visto triste, adorava caminhões e se sentia um felizardo ao ser escalado para carregá-los de mercadorias pesadas e perigosas. Tomava uma cachaça por dia, depois do expediente. A cara que ele fazia, quando a mardita descia goela abaixo, era digna de um quadro do Lucien Freud. Meu tio se aposentou e disse que ia passar uns dias na casa de uma irmã que morava nos cafundós do país. Saiu de casa, filhos criados, e quase não voltou mais. Achou que deveria curtir a vida adoidado depois dos sessenta. Tomava marafa o dia todo, andava pelas ruas da pequena cidade feito um desvalido, ria à toa e dizem que andava com algumas raparigas. Um dia os filhos lhe imploraram para voltar. Ele retornou para a antiga casa. Sua cama continuava no quarto separado, porque durante muitos anos foi assim, desde que as crianças eram crianças e ninguém sabe porque aconteceu a separação sob aquele teto. Agora ele tem quase cem anos e cuida das plantas do jardim, de um cachorrinho que parece um chaveiro para ele. Não pode beber mais, mas continua uma fortaleza. Toda vez que lhe perguntam como está, diz que com a cabeça entre as orelhas e em cima do pescoço. Meu tio é um campeão.

Sem acerto

De Dalton Trevisan

Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.

Vicente Celestino Porta Aberta


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Arco-Íris

De Helena Kolody

Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino 
que há pouco chorou

Mario Zan Quarto Centenário


Estômago

Ainda bem que ouvido não tem estômago. Ele leu aquilo e foi como se uma flecha com veneno tivesse atravessado seu cérebro. Pensou: como alguém consegue tal poder para nos desnortear? Foi o irmão que mandou na tela branca do computador. Assim, sem mais nem menos – e ficou em silêncio, sem explicação, que também não foi pedida. E se tivesse estômago, o que aconteceria? Ele pensou logo nas conversas de políticos, nos gritos dos militantes, na arrogância das ordens policiais, nos xingamentos entre desconhecidos no trânsito… Sim, pensou em coisas ruins, porque aí o ouvido poderia vomitar. Mas as declarações de amor fariam tão bem, alimentariam o estômago da alma. Êpa! O ouvido tem alma ou é da alma? Estava pensando em tudo isso quando lhe colocaram bem na frente o prato que pediu naquele restaurante caído: rabada com polenta e agrião.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

De Dalton Trevisan


De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe — uma semente negra de mamão.

Titãs O Pulso


A dor

Imaginou que a dor era a mesma causada por um tiro. Não houve impacto, ela apenas apareceu e, no terceiro dia, estava insuportável. Naquele pedaço do corpo parecia haver um bombeamento especial de sangue no local que mantinha o latejamento. Tentou remédio, bolsas gelada e fervente - nada fez efeito! Como poderia trabalhar sentindo aquilo? Tudo tinha desaparecido e sua mente estava concentrada ali, naquele canto da cabeça, como se o local quisesse provar que poderia dominar tudo. E dominava, da forma mais terrível possível. Não lembrava mais a última vez que sentira dor em algum dente. Pensou nisso também porque talvez fosse parecido. Ali, naquela cavidade, havia um bicho feio com os dentes cravados na cartilagem e balançando a cabeça como um cão raivoso depois de morder a presa. Apelou para uma reza no nicho cheio de santos. Em vão. Tentou lembrar o que poderia ter deflagrado tal situação. Aí lembrou não só do cotonete, mas do personagem do comediante Agildo Ribeiro que se transformava ao introduzir a haste com cabeça de algodão num dos ouvidos. Foi isso que ele fez, tentando a imitação para ele mesmo ver no espelho. Bem feito!

terça-feira, 9 de junho de 2015

que volte!

De Paulo Leminski

Vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte
quem for louco
que volte


Toni Tornado, Trio Ternura e BR 3


Encontros

Eu vejo meus amigos por aí, quando menos espero. Eles aparecem até em forma de nuvens, como aconteceu naquela estrada onde até parei o carro no acostamento para matar saudade. Era o menino com quem trabalhei e aprendi a gostar porque ele fazia parte do meu universo como o ar que respiramos. Foi embora cedo, seis meses depois de aparecer a doença - e bem no dia em que andei de Maria Fumaça e viajei para o passado. Quando voltei ao presente recebi a notícia e chorei muito. O outro, um pouco mais velho, que encantou tempos depois por causa da mesma doença, vi outro dia descendo de um ônibus na rodoviária, enquanto esperava a filha. Ele passou bem pertinho de mim, tinha outro nome, outra história de vida, mas era aquele com quem dividi cultura e aprendi um pouco a escrever, mesmo porque sofríamos o mesmo tormento para começar um texto nas velha máquinas. Também o vi numa praça apinhada de gente num dia de sol escaldante - e ele olhou pra mim e esboçou um sorriso, tímido que era. Meus amigos aparecem, sinto saudade e também vontade de viver mais um pouco - até para novos encontros com Julio e Pedro.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

imperativo da primavera

De Roberto Prado


humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos Dança das Cabeças


Olho seco

Olhou direto para o sol do meio-dia depois de ter ouvido centenas de vezes o disco de Egberto Gismonti com este nome. Surtou, cegou, mas não sentiu. A música tinha invadido o seu ser e o anestesiado para a dor. Nunca reclamou. Só pediu óculos escuros de aros redondos, feito um Lennon dos trópicos escaldantes. Lhe deram uma caneca de alumínio, daquelas que ainda ficam embaixo das torneirinhas dos filtros de barro do país desconhecido pela maioria dos habitantes. Foi então para uma esquina que ele conhecia desde criança, sentou e começou a emitir sons que dizia ser música - a do sol do meio-dia. Raramente ouvia o tilintar de uma moeda. Não ligava. Com o passar dos meses e anos se rebatizou como Cego Aderaldo, nome de música do mesmo Gismonti. Até o dia em que alguém duvidou da sua cegueira. A peixeira que carregava atravessada no cinto às costas surgiu feito raio. O sino da igreja tocou doze vezes. A lâmina brilhou e sangrou. Deus então matou. A polícia veio. Ele só disse uma frase: "Olho seco é mais embaixo".

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Viagem

De Paulo Leminski


Esta vida 
é uma viagem 
pena eu estar 
só de passagem.

Rosa Passos Você Vai Ver


Neblina

Chegou com os primeiros raios da luz do dia. A neblina cobria tudo. Estava perto da cidade, mas longe de tudo. Duas casas no fim de uma estradinha de terra pareciam cenário de filme de Bergman. Estacionou o carro, passou por entre as construções e seguiu uma pequena trilha em declive acentuado. Parou na beira de um lago - e não conseguia ver a outra margem. Respirou o ar frio da manhã e aquilo pareceu limpar toda a fuligem e o entulho da cidade grande e opressiva. Resolveu andar por aquela margem enquanto o sol, branco, tentava furar o branco da neblina. Estancou ao ver ancorado um barco simples de madeira que, cheio de água, mostrava apenas os contornos. Ele estava preso por uma corrente a uma estaca espetada num barranco. Ficou olhando aquilo como se fosse a tradução da imagem mais simples e encantadora que já tinha visto. Era muito mais do que aquele outro barquinho que encontrou numa vila do Rio Madeira, muitos anos atrás. Então, ouviu um chamado do dono da casa que acabara de acordar. Aí sentiu o cheiro do café que estava sendo coado.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Ipês floridos

De Helena Kolody

Festa das lanternas!
Os ipês se iluminaram
de globos de cor-de-ouro.

Pedro Bento, Zé da Estrada e Mágoa de Boiadeiro


Asteriscos da salvação

Foi aquele sorriso que o salvou. E o rosto lindo abaixo de uma cabeça enrolada numa toalha branca. Ele viu no alto na banca de revista e, garoto, ficou ali admirado até com o formato do jornal, tabloide, coisa bem diferente do que conhecia - e apesar de um diário no tamanho tradicional jamais ter entrado em sua casa. Era pobre. Mais que pobre. Vivia naquele gueto onde a palavra cultura poderia ser confundida com palavrão. E da boca daquela mulher linda saía um balão, desses de história em quadrinhos, onde vários asteriscos apareciam entre as palavras. Palavras, não! Palavrões. Ele identificou e gamou - porque sempre gostou de falar. Foi em casa, pediu uns trocados para a mãe, voltou à banca, comprou o exemplar e entrou num mundo onde está até hoje, algumas décadas depois. Conheceu os personagens da República de Ipanema do Pasquim, aprendeu que era possível escrever simples para passar qualquer coisa adiante, e quando, por acaso, se profissionalizou mexendo com as letrinhas, foi daquele jeito que começou a tentar escrever - e a treinar diariamente. Quanto à deusa que o levou a sair daquela vila, inclusive fisicamente, será eternamente musa. Leila Diniz.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

que seria de mim...

De Paulo Leminski

Rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?


Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Mulheres


A lua e eu

A lua grudou o olho em mim. Fiquei olhando direto para ela na noite fria e me veio a ideia de que era mesmo um olho. Tão lindo e luminoso que foi feito para encantar. Encantar e distrair do resto do seu corpo, que é o universo do escuro da noite. Não, eu não vi estrelas nessa noite em que parei hipnotizado por ela – e como estava andando sem rumo pelas ruas da cidade vazia, de repente o olho da lua se postou acima de um cartaz onde um casal se beijava. Aí eu pensei na lua cantada pelos poetas enamorados, mas logo veio a imagem do lobisomem e fiquei temendo pela mocinha. Não aconteceu nada e também não vi São Jorge porque tinha esquecido os óculos “de longe”. Nessa noite esqueci que a luz da lua ela recebe do sol, porque ela é prata doce e seu raio banhando as águas do Rio Amazonas, no meio da floresta, foi algo que já vi mas não não dei tanta importância como agora. É que naquela noite há muitos anos minha alma estava nublada. Mesmo assim, ficou na retina e hoje, ao ver este olho na cidade grande, eu enxerguei de novo naquela imensidão de silêncio. E descobri que o corpo que envolve esta lua está aqui dentro – e sou eu e é você e somos nós, mas só os que conseguem vê-la.