quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Bula no bule
No final da tarde a luz quente e dourada do sol fez o efeito. Na parede de frente da casa, ao lado da porta de entrada, a sombra da luminária se esticou, o branco da lâmpada apagada ficou mais branco, e o reflexo do vidro dentro da sombra parecia coisa acesa. Ele ficou olhando aquilo como se um novo milagre de Fátima tivesse acontecido. Tão simples, tão belo, ao contrário de tudo o que tinha acontecido até ali naquele dia. Contas atrasadas, a máquina de lavar pifada, alguém que o xingou por telefone, o salário cortado, uma suspeita de doença grave, a visão diminuindo, assim com a audição, dores nas juntas. Os remédios do psiquiatra pareciam não fazer mais efeito, apesar de ele estar bem melhor do que quando odiava a luz do dia e se enterrava embaixo de camadas de cobertores. Foi aí que lhe deu o estalo. Correu para a cozinha, procurou no velho coador de pano, esquentou a água, pegou o bule de alumínio que herdou da mãe, colocou a dose certa do pó de café, coou e tomou um gole na caneca decorada com flores. Voltou para frente da casa. O sol tinha baixado. Não havia mais aquilo que considerou "visage" - mas estava feliz. Uma talagada a mais e foi à escrivaninha tentar registrar aquilo. Pensou, pensou e escreveu, com a Parker 51 que amava: Coe o café, bula no bule e tome um gole".
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