quinta-feira, 30 de junho de 2016
Viagem na escuridão
No último vagão do trem de carga. Estava lá o menino no meio de uma aventura que começou com a família perdendo o trem que a levaria para uma chácara de um parente. Aconteceu numa baldeação. Então surgiu a carona. Embarcaram lá atrás no começo da madrugada. O céu nublado e nenhuma réstia de luz dentro ou fora daquela serpente sobre os trilhos. O som alto da locomotiva e o chacoalhar não assustaram o garoto. Os olhos, verdes, estavam arregalados. A sensação era a de estar entrando no desconhecido e, por mais paradoxal, ele morria de medo do desconhecido. Mas ali, não! O tempo deixou de existir. Ninguém falava - e a máquina que puxava uma infinidade de vagões, rasgava a escuridão impetuosamente. Até que parou, como o previamente combinado. Todos desceram, andaram um pouco e, na porteira da chácara, estancaram ao ouvir as feras chegando. O menino então teve medo, porque os latidos eram apavorantes. O mais velho da família falou algo em tom alto. Os cães reconheceram e se acalmaram. Entraram. A casa pareceu um castelo de contos de fadas. No dia seguinte, o garoto pode ver o sol nascendo dentro do lago envolto em neblina. Aí teve certeza de que a viagem na escuridão foi apenas uma preparação para o deslumbre.
quarta-feira, 29 de junho de 2016
Pança
Foi de repente. Um dia ele estava olhando uma foto onde se viu posando de sunga numa praia deserta. Corpo seco, esguio - magricela na língua venenosa dos amigos. Foi então que resolveu se olhar no espelho, só de cueca, quarenta anos depois. De frente, ainda se sentiu aliviado, apesar dos peitos flácidos. Mas de lado... Aquilo não era barriga, era uma pança que caía - e em forma de dobra na linha da cintura. Ficou triste. Pensou em como tinha chegado àquilo e só lembrou do tempo em que era viciado em hambúrguer gorduroso e muita, muita Coca-Cola. Assim é que se punia da depressão que tirava sua vontade até de respirar. O que fazer com a pança? Foi para a academia. Enganaram o bicho dizendo que em pouco tempo estaria em forma, parecendo os artistas das novelas da Globo. Passado um ano, continua na mesma - até porque não parou de comer o que gosta, ou seja, muito pão e massas, sempre com um tipo de doce nos finalmente. Pensa que ligou. Agora revela para todos que, quando vai fazer suas séries de exercícios, reclama com os professores afirmando que só vê gente cada vez mais peituda - e ele se esforça, se esforça, mas só a barriga é que aumenta.
terça-feira, 28 de junho de 2016
Bimba de boi
Durante muito tempo os assassinos do oco do nordeste, aqueles bichos ruins, aqueles que cuspiriam na cara do Tinhoso se ele aparecesse, essas pestes só temiam uma coisa se fossem pegos pela polícia: a bimba do boi. Instrumento utilizado nas masmorras das delegacias, era produzida a partir do nervo do pinto do animal. Um peso de ferro era colocado numa ponta, a outra presa num varal alto - e aí, esticado até o máximo, secava sob o sol ferrado daquelas bandas. A bimba vergava, mas nunca quebrava. E cada lambada dela cortava o tecido da roupa, a pele, a carne e, se quem batia era violento, chegava ao osso. Quem não confessava até o que não tinha feito? Às vezes a resenha saía completa só ao se mostrar a ferramenta de convencimento. Num cantinho discreto de casa eu tenho uma, cerca de metro e meio de comprimento, furada numa extremidade e com uma tira de couro para encaixar no punho para não sair na hora da pancadaria. Nunca usei. Mas já tive vontade. Principalmente de dar na boca de alguns imprestáveis. Toda vez que penso nisso, bato com a palma da mão na minha e, como fazia mamãe, peço perdão pelos pensamentos. Mas que seria bom fazer o estrago...
Penúltima
De Marcos Prado
Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem
sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
Como posso agora estar alegre?
era de se esperar que eu desesperasse
talvez mais tarde eu desintegre
entre o penúltimo gole do último porre
e leve ao meu lado os que me seguem
sim,
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
mas aprendi que o céu é mais embaixo
ainda não sei o quanto dei
a tantas quantas amei
ainda não sei ao certo se eu errei
segunda-feira, 27 de junho de 2016
Não pedi
Estava morto lá nos confins e não pensava nada. Aí me chamaram - e não houve tapa na bunda. Me arrancaram com ferros e ouvi os gritos de alguém. Depois disseram que era minha mãe e que meu pai tinha ajudado a me dar vida e tirar do escuro. Que coisa esquisita! Todo mundo nasce assim, mas antes inventam uma história de cegonha que é uma ave e até hoje não sei como ela arruma aquele pano para pendurar no bico para voar carregando gente. Quer dizer que se ela passa numa zona de conflito no Oriente, baubau? Já me atrapalhei nos pensamentos. Antes não tinha nada disso. Eu não incomodava ninguém - e vice-versa. Fui para as escolas e de tudo o que aprendi, utilizei só três das operações matemáticas. Eu queria ser artista porque um dia vi um quadro do Siron Franco. Mas nem pintar o sete eu sei. Fiquei distante do mundo, ouvindo música, comendo sanduíche de queijo e salaminho com manteiga. Disseram que eu tinha de trabalhar. Reclamei no velho estilo de que eu não pedi para entrar nessa barafunda. Nem ligaram. Agora tenho de ir. Me deram um emprego no governo. Não preciso fazer nada. Ainda bem.
quinta-feira, 23 de junho de 2016
Enigma
Fui procurar o hotelzinho no meio do nada naquela estrada só de retas intermináveis. Talvez por causa das piadas do Mineirinho, sei lá. Achei, na Belém-Brasília. A noite chegando, estacionei o carro, notei que não havia mais nenhum veículo, entrei e um senhor de sorriso franco me atendeu. Havia todo tipo de quarto, porque eu era o primeiro a chegar naquele dia, naquela semana, naquele mês, naquele ano. Perguntei a ele como sobrevivia. Com o rosto me apontou uma máquina encostada na parede. Parecia uma jukebox, mas não havia música ali. Ele pediu para eu apertar o botão verde. Fiz isso. Não aconteceu nada, mas imediatamente me deu uma sensação de bem estar, de dever cumprido e... uma preguiça! O senhor disse que era assim mesmo e que foi um viajante estranho que deixou o trem ali, sem cobrar nada. Ele, o dono do hotel, apertava o botão todo dia logo cedo. Há décadas. E ficou feliz, com ou sem hóspedes. Coisa estranha, mas muito boa. No outro dia eu lhe disse, antes de apertar o botão verde, que aquilo era um enigma, uma coisa enigmática, mas com certeza o inventor era certamente um vagabundo daqueles, no bom sentido. Aí eu apertei o botão. É o que faço há anos. Eu e o dono do hotelzinho na reta da Belém-Brasília.
quarta-feira, 22 de junho de 2016
Grampola
Chutei a lata, como fazia no tempo em que isso não era politicamente incorreto. Dela caiu um papelzinho dobrado. Peguei a lata, coloquei numa lixeira próxima. O papel foi para o bolso. Abri quando cheguei em casa, num dia em que, como dizia meu pai, tudo estava aquela graxa. Li: "Desajustado, caminhando sem rumo num mundo desconsertado, procurando quem dê jeito. Pode? Esqueceu? Esse só volta quando o pino da grampola fuder de vez!" Gostei do pino da grampola, porque o resto era uma ladainha que, de outras formas, ouvi desde que nasci em meados do século passado. Grampola. O que seria? Gosto de palavras sonoras. Essa me lembrou Grapette, aquela que quem bebe repete. Não achei a dita no gugol. Liguei para amigos. A explicação mais lógica foi de um que disse que tal palavra deve ser sinônimo de parafuzeta. Fui dormir satisfeito. Sonhei com o pino da grampola, mas não lembro como era. Fudeu.
terça-feira, 21 de junho de 2016
Espírito de porco
O espírito de porco é tão espírito de porco que ele não sabe que é espírito de porco. A vida dele é porca a tal ponto que ele só olha para os outros torcendo para que a desgraça aconteça. Assim, vai se sentir feliz na pocilga em que vive. Conheci alguns. Espírito de porco que se preze acha que é diferenciado, como dizem sobre jogadores de futebol. Ele se dá o aval de analisar pessoas - para desejar o pior. No ambiente de trabalho acontece muito. Vi uma vez uma mulher solitária, que falava como se tivesse sentada num toco, dizer para o chefe sobre um colega: "Não falei que não era para contratar aquele drogado?" Talvez o alvo do veneno tenha escutado tal coisa enquanto estava internado, pois nunca mais voltou às catacumbas - e se tornou uma pessoa feliz, ao contrário daquela encrenca. O espírito de porco pensa no pior e, se possível, não deseja isso na cara daquele que ele acha que é vítima. Não tem coragem. O espírito de porco tenta envenenar atrás das moitas e ficar escondido. Seu destino sempre está traçado: caminha célere para morrer com a boca cheia de formiga, depois de tomar formicida com guaraná.
se tocou
De Alice Ruiz
Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou
Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou
segunda-feira, 20 de junho de 2016
Fim de tarde
Vi o quadro e entrei nele. Não lembro quem pintou, onde foi que o encontrei, nada. Especial ele era porque não tinha nada de especial. Uma casa grande, algumas árvores em volta, um poste com uma luz amarelada na frente e um céu… Foi aquele céu azul, sem uma nuvem, naquela hora entre o fim do dia e o começo da noite. Sim, foi ele que me atraiu para dentro da tela como um imã de ilusão. E a mistura daquela luz natural com a elétrica me fez querer conhecer o lugar, rodar o mundo atrás daquele momento. Para bater na porta do casarão e saber quem mora lá dentro. Uma família ou uma donzela de contos de fada a esperar um olhar iluminado? Nunca mais vi a tela, apesar de procurar feito um louco nos museus. Outro dia, andando pela cidade, aquela luz me encantou de novo. Parei o carro e havia um poste com luz amarelada em frente a uma casa no alto de um terreno que começava no final de uma rua sem saída. A casa era parecida. Abri o portão e entrei. Não precisei bater à porta ou me anunciar. Eu moro nela.
Amor
De Paulo Leminski
Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
Amor, então,
também, acaba?
Não, que eu saiba.
O que eu sei
é que se transforma
numa matéria-prima
que a vida se encarrega
de transformar em raiva.
Ou em rima.
quinta-feira, 16 de junho de 2016
Mato
A casinha era pequena, mas jeitosa. Na frente e atrás havia terra suficiente para dois jardins, um ou jardim e uma horta. Nunca fiz nada porque, mais do que achar um saco o cultivo e o trabalho para preservar tudo. sempre fui da opinião de que mato é lindo. Ele não precisa de cuidados especiais. Aliás, não precisa de cuidado algu. Nasce, cresce e sobrevive como manda a natureza. A variedade de espécies é enorme - e, ao crescerem, as plantas vão se entrelaçando como numa enorme suruba vegetal. A chuva lhe dava o alimento água e o sol incrementava o crescimento, além dos adubos naturais do subsolo. Eu olhava aquilo e sentia prazer. Os vizinhos, não. Achavam que aquilo poderia juntar bichos peçonhentos ou algo assim. Coisa de doidos. Um dia fui mandado embora do trabalho. Me tranquei em casa para meditar. Não sei quanto tempo fiquei. Ao tentar sair, não consegui. O mato lindo tinha engolido a casa. Fechei a porta e fui dormir. Poderia ter aberto caminho até o portão da frente ou a um dos muros de trás para sair. Mas achei que se eu cortasse aquelas plantas maravilhosas elas iam chorar. Fiquei ali. Estou aqui. Sem cachorro.
quarta-feira, 15 de junho de 2016
Paçoca
Acabei de comer uma e, como das outras vezes, veio a expressão: firme na paçoca. Como firme? Por que? Paçoca que é boa desmancha até antes de chegar à boca. Lá dentro se dissolve e a sensação é muito boa. Doce. Firme na paçoca. Estava há um mês dentro do quarto, trancado, vendo direto tudo o que o Telecine podia me dar. Se pudesse, só deixaria os olhos de fora para me anestesiar com qualquer filme - daqueles de kung fu até os melodramas xaroposos. O que eu não podia era pensar - se é que estava pensando nesta fase negra. Aconteceu de eu acordar um dia e achar que não iria conseguir nem levantar. Lembrei do livro "O demônio do meio-dia", onde o autor, que descreve sua crise forte de depressão, tem que se arrastar até o banheiro para tomar banho, apesar de estar há dias fedendo e ter consciência de que deveria se limpar. É assim. Eu até que ia ao banheiro, afinal, estava a dois passos da cama na suíte do apartamento, mas o pavor de tudo era terrível. Passou, sim, a custa de remédios e terapia - mas foi pesado. Durante o tempo todo os amigos ligavam e alguns perguntavam seu eu estava firme na paçoca. Eu pensava um pouco e dizia que sim. Tinha a ver.
antigamente
De Paulo Leminski
Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.
Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.
terça-feira, 14 de junho de 2016
para aprender
De Paulo Leminski
Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.
Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.
Mergulho
Fiquei pagando trezentão por sessão do psiquiatra durante anos. Ia duas vezes por semana. Papai bancava. Era rico - até o dia em que foi atropelado por uma crise econômica em forma de Fenemê. Contei para o doutor. Ele encerrou o tratamento na hora. Me deu alta, mas como eu não tinha melhorado nada e continuava nas dúvidas do labirinto das trevas, encerrou o papo com um enigmático conselho: "Mergulhe em si mesmo para se encontrar". Lembrei do livro do Jamil Snege, o espetacular "Como eu se fiz por si mesmo", mas o buraco aqui era mais embaixo. Tive uma ideia e desci pendurado num balde num poço do terreno de um conhecido, lá nas quebradas do mundaréu. Mergulhei na água e subi. Pelado. O frio era de menos um, sem sensação térmica. Veio o momento mágico que eu tanto esperava. Me vi por dentro, se é que a frase exprime bem o que aconteceu. Aleulia! A fortuna gasta no divã teve resultado. Mas..., para encurtar a curta história, o que ficou claro foi o seguinte: mergulhei em mim pra me encontrar; achei muitos, mas nenhum era quem eu realmente esperava.
segunda-feira, 13 de junho de 2016
Rondon
Cobertor sobre as pernas, óculos de lentes grossas, fica vendo televisão durante um bom tempo. Gosta dos noticiários. Não fala nada, apenas balança a cabeça negativamente com a sequência de tragédias, roubalheiras, o incompreensível linguajar sobre economia e a idolatria por qualquer idiota que chute uma bola ou solte gemidos em forma de música de corno, como ele diz. O espaço que dão à previsão do tempo é outro absurdo que ele condena, mesmo porque jamais vai sair dali para enfrentar o calor infernal do sertão do Piauí. Mas outro dia ele levantou da poltrona para esbravejar. Nos temporais que derrubaram árvores em algumas grandes capitais, ele fez um discurso dizendo que tudo aquilo era coisa do homem, não da natureza. Lembrou então o longo período que passou na selva e garantiu que, apesar das chuvas constantes, nunca viu uma árvore caída pela força das águas que vinham do céu ou do vento. Depois, se acalmou, sentou de novo, olhou para o lado e pareceu dar uma piscadela para a foto do Marechal Cândido Rondon que tem em cima de uma estante e de quem foi grande amigo.
apagar-me
De Paulo Leminski
Apagar-me
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.
sexta-feira, 10 de junho de 2016
quinta-feira, 9 de junho de 2016
Pelos
Os pelos do nariz saíam para fora. Nunca notei, mesmo porque não me olhava no espelho com medo do que poderia ver. Tinha cabelo comprido e barba enorme. Me escondia também com óculos escuros. No pinel um psiquiatra disse isso. Não gostei. Tirei tudo. Quase tudo. Ficaram os pelos do nariz. Tentei cortar com uma tesourinha pontiaguda. Furei uma das paredes internas da "nasa". Saiu muito sangue. Lembrei de um dia no banheiro do boteco - um tiro, e o sangue escorrendo sem eu perceber. Quem estava comigo na mesa se assustou. Mas isso é outra coisa. Os pelos, me disseram, me deixavam com a aparência de quem tinha duas tarântulas querendo sair dali. Um dia, numa farmácia, vi uma maquininha especial para aparar os tais. Comprei. Fui para casa, liguei e enfiei no buraco do meu lado direito. Aconteceu um problema. Houve um enrosco e a máquina foi lá pra dentro. Acho que atingiu meu cérebro. Desde então tenho visões e já fiz uma planta seca pela geada voltar a ser verde. A história se espalhou. Tem fila na porta de casa. Acham que eu sou santo. O problema é que parte da máquina de cortar pelos ficou para fora do nariz. Não sei se os estranhos vão entender o que aconteceu.
quarta-feira, 8 de junho de 2016
Autorizado pela mãe
Falar palavrão é uma coisa, xingar é outra. Mãezinha, que está no céu, uma santa, falava cu seiscentas vezes por dia. Coisa de nordestina arretada. E dizia com aquela cara triste, que não mudava nem se quem estava ao lado dela se rolava no chão de tanto rir. Cu da gota, cu da serena, cu de loca, cu da peste, cu da bobônica... E se encontrava na rua alguma mocinha de calça ou saia apertada, daquelas que tem as nádegas adernadas para o centro, repetia um dos seus clássicos: "Lá vai ela com o cu abotoado". Sempre achei, portanto, que estava liberado para disparar os meus palavrões em qualquer lugar, a qualquer hora, porque minha mãe autorizou, mesmo sem documento assinado. Foi ela,aliás, que, na minha tenra idade, me batizou para o que desse e viesse. Ao olhar pra mim, criancinha de cinco anos, decretou: "Mas não é que esse meu filho tem uma cara de puta santa..."
Que botijão a pariu?
De Marcos Prado
1
gorda
dizem que me chamou de vagabundo
pela enésima vez
saiu banha dos meus olhos quando
soube
como escorre sua menstruação oleosa
e seu corrimento
meus olhos derreteram nesta tarde
por sua causa, porca máter
obesa
você me chama de vagabundo
de inútil e aproveitador
me conte uma história boa, suína
algo que justifique sua vida mesquinha
e que solte o seu rabo colesterolizado
gorducha
eu te conto uma história
que entra dentro de uma história
que explica uma história
que eu ainda não contei
como não conto com você, pelancuda
2
dragão
faço do teu nariz
tomada
do teu bafo
gasogênio
da tua bosta mole
metano
qual foi
o seu trabalho
neste mundo
javali fêmea?
onde estão os seus méritos?
fritando alguém?
refogando algo?
ensebando quem?
3
sou vagabundo
mas eu posso contar a sua história
bucho
placa de costela gorda
na boca de bebedor de cerveja
jogando truco
com o pessoal do almoxarifado
as estrias
a celulite
as cartucheirinhas
provam que você
trabalhou demais
coisa balofa
terça-feira, 7 de junho de 2016
A ferramenta
O que é que eu vou fazer? O cara mora aqui na frente do bar, pediu a ferramenta emprestada. Não sei dizer não - emprestei. Isso foi há seis meses. Todo dia eu dou de cara com ele quando levanto a porta do boteco. Ele parece que ri. Da minha cara. Aí vira as costas e vai embora. Não sei pedir o que emprestei. Parece até que eu é que estou fazendo uma desfeita. Isso sempre aconteceu comigo. Contei o caso para meu vizinho. Ele é encardido. Vi quando peitou o cara no portão da casa dele. Vi quando o outro, depois de um tempo, foi lá dentro e depois entregou o que emprestei. Meu vizinho me devolveu. Contou que o sonso quis dar uma de migué, mas foi lembrado só no olhar fuzilante. A ferramenta está enferrujada. Vou comprar outra. Preciso mudar de atitudes. Meu vizinho disse que era assim também, mas teve coragem para se transformar. Não empresta nada e, se tiver de cobrar, vai lá e fala. Eu queria ser assim, mas não sei dizer não. Acho até que se o cara da frente viesse me vender minha ferramenta, eu comprava. Só para não ter confusão. O que será que acontece comigo?
imperativo da primavera
De Roberto Prado
humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho
segunda-feira, 6 de junho de 2016
Última noite
Não tenho muito tempo de vida. Não, não é como na piada do Miojo, aquela dos três minutos e o que fazer, doutor? Ainda há uma noite. Mas como vou dormir? Poderia tomar um remédio daquele do Michael Jackson, mas o doutor não quis me receitar. Disse para eu aguentar firme. É sempre assim. Estes professores de Deus falam numa calma absurda, mas quando o calo aperta eles não vão se consultar. Conheço a raça. Por que tinha que acontecer isso logo agora que começo a conhecer as delícias da vida? É muito azar! Tomo um banho quente, pelando, abro a torneira fria, fico elétrico, me enxugo, vou para cama nu, entro embaixo das cobertas cheirosas e fico esperando a hora. Nada de dormir. Coloquei o despertador, daqueles antigos, só para me precaver. Sabia que não conseguiria pregar os olhos. Como, numa situação dessa? Vou embarcar daqui a pouco. O martelinho do geringonça começa a fazer barulho e eu realizo um sonho: arremesso o relógio contra a parede, com toda força. Talvez meu último ato violento. Então, me troco e vou. De táxi. Para onde? Ora, para o aeroporto. O vôo é às seis e tenho de estar lá às cinco. É o primeiro que faço na vida. Antes, sempre evitei. De medo. Agora, não dá mais. Adeus.
PARADA CARDÍACA
De Paulo Leminski
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
quinta-feira, 2 de junho de 2016
Mente
Conhecia muitos poderosos pela profissão que exercia. Desde sempre funcionário público concursado, eficiente, discreto, profissional, enfim. No palácio era chamado nas horas mais difíceis porque inteligente, rápido nas decisões que apontavam caminhos para saídas que não deixavam manchas no currículo do chefe - e muito menos no poder. Ele fazia isso pensando apenas nos interesses do Estado, e porque sabia que qualquer turbulência acabava prejudicando aqueles que tinham colocado aqueles senhores aparentemente sérios no comando de tudo. Até que um dia presenciou cena bárbara, que não cabe aqui relatar, tal a baixeza, a podridão, o mau-caratismo de quem a praticou. Resolveu ele mesmo denunciar tudo. O escândalo fez a casa cair, como se falava no bairro onde morava. Acabou ele também sendo exonerado mais tarde, pois os novos "patrões" não confiavam mais em seu trabalho. Um dia lhe perguntaram porque tinha feito aquilo. Respondeu de forma enigmática: "A mente não mente. O dono é quem manda mentir".
Aviso aos náufragos
De Paulo Leminski
Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?
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