segunda-feira, 19 de maio de 2014

Mais uma dose... de lactose

Foi a empregada quem lhe deu a triste notícia. O neto dela não dormia mais, a barriga crescia como a de menino nordestino que come barro com calango - e a criança não parava de peidar. Foram ao médico. Ele matou a charada na hora: lactose. A receita: um mês sem tomar leite e, principalmente, sem comer queijo. Essa era a perdição do guri. Se pudesse, comeria uma barra inteira de queijo prato de uma só vez. Sete dias depois, cadê os peidos, cadê o barrigão? Desapareceram. Ele ouviu a história e olhou a pança. Também era viciado no produto. Leite? Só duas gotas no balde de café da tarde. Teria de fazer a experiência, afinal, mesmo que diminuísse de peso a custa de exercícios, nada de o bucho murchar. Também peidava feito doido, mas conseguia se controlar em locais públicos. Resolveu fazer a saideira. Comprou todos os tipos possíveis. Começou a comer na sexta à noite e só parou no domingo. Depois, não saiu mais dali. Os vizinhos desconfiaram. Chamaram a polícia. Foi encontrado em estado de decomposição, caído no meio daquela montanha de produtos de origem francesa. Os ratos de assustaram com os intrusos. Tiveram de chispar do banquete.

descascando cebola

De Roberto Prado

dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minhalma doutro mundo

Wilson Simonal Meu limão, Meu limoeiro


quinta-feira, 15 de maio de 2014

O último pastelão

De Roberto Prado

você perdeu meu antigo prazer simples
a diversão tola dos troços aéreos que falava
de ver a graça pura das velhas boas trapalhadas
de sentar pra rir daqueles meus bobos tropeços
pensando bem/ninguém perdeu nada

Do lado de cá estarei lá

Tem certeza que ouviu a voz no meio da madrugada. Acendeu o candeeiro e a primeira coisa que viu foi a Winchester 44, cano sextavado, encostada ao lado da cama daquele barraco no meio do nada. "Do lado de cá estarei lá". Enrolou o fumo de corda na paia, como dizia, tragou e começou a pensar naquelas palavras. Muito sábias, concordou consigo mesmo. Ele mesmo, ali, naquele chão pisado só por Antonio das Mortes num passado que ficou apenas na lembrança dos moradores mais distantes. Ele mesmo era temido em toda a região - e não via motivos para tanto. Tá certo que não deixava ninguém chegar perto da sua choupana e quem fizesse isso teria um dos joelhos estraçalhados por um tiro certeiro. Não lembra quantas vezes isso tinha acontecido, mas com pena mesmo ele ficava do susto que tomavam o bode e as cabras que criava ali ao lado, no cercado de terra batida. Concordou então que, de fato, do lado de cá com certeza estaria do lado de lá, no medo do que pensavam nele. Então apagou o cigarro num copo com água e o candeeiro com um soprão - e foi dormir sossegado.

Erasmo Carlos Sentado à Beira do Caminho


quarta-feira, 14 de maio de 2014

radical livre

De Roberto Prado

morri de vivo
porque menos mal assim

mas antes de luto
meu estúpido estudo
sobre o valor nutritivo
da raiz do capim


Profissional

Primeiro queria ser motorista da Viação Cometa por causa do boné que os motoristas usavam quando ele, criança, viajava no Flecha Azul. Depois sonhou ser astronauta porque queria saber como eles faziam cocô e xixi dentro daquelas roupas e daquelas cápsulas espaciais do tempo do Yuri Gagarin. Aí começou a perceber que um salto como esse seria alto demais partindo do subúrbio da grande cidades. Fez testes para entrar em bancos, mas não foi aproado porque era um cata-milho juramentado na datilografia. O pai olhava torto e o obrigou tirar a carteira de trabalho ainda na adolescência. Foi vender fundos de investimento, mas era tão tímido que engasgava na hora da enganação. Polícia Federal e Polícia Militar foram as tentativas seguintes. Reprovado por inanição. Aí fez um vestibular para o curso de letras numa faculdade caça-níquel. Passou, mas o pai teve de pagar as mensalidades achando que poderia ser reembolsado no futuro. O canudo ele deu de presente para a mãe antes de meter o pé na estrada com uma mochila nas costas. Hoje é borracheiro ao lado de um posto de gasolina na entrada de Santarém, no Pará. Está feliz porque acorda e vê da sua janela o rio Amazonas.

Palhaço Nelson Cavaquinho


terça-feira, 13 de maio de 2014

mentira

De Marcos Prado

a mentira é a melhor é a melhor amiga das artes
nela, gelatinosa, as glosas seculares
minúcias de paisagens inexistentes
um coração onde cabe um milhão diferentes

dondoca de agora, amanhã de coturno
segue sempre os passos de um antigo perjuro
a arte imita a arte que imita tudo
e é profunda, é verdade, bem no fundo

mas somos piores que os pintores de florença
ridículos comparados aos poetas de provença
michelângelo cagaria em cima de nossas estátuas
bethoven se limparia com as nossas pautas

que é a nossa dança diante de um delírio índio?
que é um soco nosso perto de um clay vindo?
por que, se finda é a arte, continuar mentindo?
repetir o que se repetiu de novo se repetindo?

Ouro Verde F.C.

A Copa do Mundo era disputada todo domingo no campinho descaído do terreno baldio da vila, perto da encruzilhada. O adversário era sempre o mesmo, a turma da rua Central, que ficava a duas quadras dali. O horário do jogo também não mudava, para aproveitar o fim da missa das 10h na igreja da praça. O povo que voltava livre dos pecados parava atrás do gol para assistir a disputa. O time tinha nome e técnico. Era o Ouro Verde Futebol Clube, dirigido pelo Foguinho, um ruivo que não podia fazer parte do escrete porque era perna-de-pau e mais velho que todos os jogadores. O vestiário ficava nos fundos da casa do Lupe, ao lado do campo de terra batida. Ele era baixinho e canhoteiro, ou seja, nosso craque. A gente se trocava ali, num barracão onde o pai dele guardava ferramentas e outras tranqueiras. Um dia resolveram construir uma casa no nosso templo de jogo. O campo se foi e não dava para fazer outro- os terrenos que sobraram eram pequenos demais para para traçar as quatro linhas. Tentou-se passar para o futebol de salão, mas não deu certo porque a turma da Central não quis mudar para este esporte. Ele lembrou disso tudo quando voltou lá quarenta anos depois. Jogava de lateral direito, era um jogador regular, mas gostava tanto daquilo que guardou para sempre a camisa do Ouro Verde e pediu aos filhos para que a colocassem no caixão quando partisse para sempre.

Orquestra Tabajara


segunda-feira, 12 de maio de 2014

Revolta divina

Zumbis estavam reunidos na porta lateral da igreja em reforma. Ele viu isso depois de ter jantado numa mesa ao ar livre numa viela ali perto. Voltava para casa, um estúdio na cobertura de um prédio velho. Parou e entrou no meio deles. O templo estava aberto. Ninguém barrou sua entrada - e ele viu. Mais zumbis à meia luz naquela imensidão de espaço. Cristo olhava lá do altar. Se pudesse, taparia os olhos com uma ou as duas mãos. Um palco tinha sido improvisado embaixo da cruz. Música experimental, disseram, foi tocada ali. Muitos dos seres presentes sob aquele teto altíssimo estavam bêbados e drogados. Numa das laterais, um bar improvisado, com propaganda de cerveja e tudo mais. Vários barris de chopp se amontoavam sob duas telas grandes da Via Sacra. Ele fez o sinal de cruz credo e foi dormir. Sonhou com uma revoada de anjos armados atacando os zumbis. Era a revolta do Céu.

Manezinho Araujo Pra onde vai Valente


quinta-feira, 8 de maio de 2014

Reclamação

No balcão de atendimento, nem esperou a funcionária perguntar o motivo da presença - foi logo despejando tudo. Não aguentava mais o tormento diário. Todo santo dia precisava chamar um guincho para levantar da cama. Era assim desde que se entende por gente. Nunca se divertiu quando criança, foi obrigado a frequentar a igreja e odiava as rezas, cânticos e achava que um dia a hóstia seria consagrada e servida com arsênico. A escola sempre foi uma câmara de tortura - e ler Rosinha Minha Canoa quase deflagra um surto psicótico. Obrigado a trabalhar num banco, achou que queriam que se suicidasse ao ser escalado para o caixa. Um dia foi mandado embora porque tentou esganar um cliente que insistia em receber um centavo a mais de troco. Nunca namorou, não se definiu sexualmente, ou melhor, se achava uma ameba sem tesão. Teve de trabalhar para não morrer de fome, apesar de achar qualquer tipo de comida um entrave para a vida, uma perda de tempo - ainda mais porque depois tinha que defecar a parte ruim, apesar de achar que não existia uma boa. A atendente ficou atônita. Ele disse que estava ali para reclamar dele mesmo. Chamaram os seguranças. Foi arrastado para fora. Voltou para casa e dormiu. No dia seguinte tinha um guincho a chamar.

Supremacia da fórmula

De Roberto Prado

com a ajuda do meu céu
de nuvens esparsas fiz uma você
agora que eu passei para o papel
não está mais aqui quem te vê

Sabiá Cynara e Cybele


quarta-feira, 7 de maio de 2014

Se o corpo abandonar minha alma

De Marcos Prado

se o corpo abandonar minha alma 
não tenha de mim uma idéia falsa 
não chore,mantenha a calma 
estou morto por minha causa 
cuidado:assim como sua mala 
o meu caixão não terá alça 


Não se Vá Jane & Herondy


Nascido para voltar

Cinquenta anos depois ele voltou para a encruzilhada onde nasceu. Asfaltaram tudo, não havia mais terrenos baldios e desapareceu o morrote onde, com sua turma da rua, várias guerras foram deflagradas, lancinantes cavalgados, bólidos de papelão pilotados. Algumas casas teimavam em se manter como velhos retratos num álbum guardado no fundo de uma gaveta esquecida. No lugar onde morava, o casarãoda frente deu lugar a um caixote horrível de três andares. Ele chegou mais perto e viu que havia um corredor numa das laterais. Lembrou dele, agora bem mais estreito, onde certa vez quase perde o saco num carrinho de rolimã. Então notou que lá no fundo ainda estava em pé a meia-água onde passou os primeiros anos de vida. Caminhou até lá. Um cachorro latiu. Só parou diante de uma grade que separava os fundos do prédio do quintal da casinha. O telhado tradicional tinha sido substituído por amianto. Não havia mais o poço onde um dia pensaram que ele tinha caído. Nem o minúsculo banheiro onde tomava banho de água gelada saída de um cano sem chuveiro. Era tudo muito pequeno. Ele chorou e teve certeza do quanto tinha crescido por ter começado a aventura ali.

terça-feira, 6 de maio de 2014

Linchamento

Por que será que começaram a me linchar neste terreno baldio? Entrei aqui para descansar um pouco nesta longa caminhada sem rumo. Me perdi porque perdi o gosto de viver e nunca tive coragem de me matar. Nasci de uma mãe e um pai que nunca conheci. A primeira lembrança que tenho é o cheiro do lixão onde um dia acordei. Sobrevivi comendo restos. Tomei poucos banhos na vida. Os trapos que me cobrem achei por aí. Nunca roubei, nunca matei, nunca feri, nunca entrei numa igreja, mas já segui de longe uma procissão. Cristo não salva. Não entendo o ser humano. Me olham com dó, me olham com raiva. A primeira pancada que levei foi na boca. Quase engoli os restos dos meus dentes podres. Vi quando chegou o primeiro gritando que eu era o tarado do bairro. Não sei o que é sexo. Nunca tive vontade. Depois vieram os outros. Me furaram, cortaram o meu pinto e um cachorro vira-lata saiu com ele na boca, o sangue deixando um rastro. Agora tem um garoto com cara de anjo erguendo uma barra de ferro. Ele e outros me chutaram e me arrastaram antes. Vai acertar minha cabeça. Que bom. Finalmente vou descansar. E nem pedi este favor. Obrigado.

Tristes homens azuis

      de Marcos Prado 
       
    não é blues,tristes,não é mesmo 
    a tristeza não faz um homem azul 
    o branco é branco,o negro é negro 
    ninguém é triste,não há blues 
    só existem,tristes,os tristes homens azuis eles se vestem de branco e de negro 
    e os outros vêem azul 
    porque não são brancos nem negros 
    os tristes homens azuis
    ninguém nasce azul 
    não se põe no mundo 
    alguém azul 
    mas quando a noite baixa 
    se levantam 
    os tristes homens azuis

Baden Pawell Samba em Prelúdio


segunda-feira, 5 de maio de 2014

Passarinhos

      de Marcos Prado  
       
    passarinhos
    piem na minha janela
    façam uma serenata para mim esta noite
    eu preparo as pipocas
    e a mesa com frutas
    vocês cantam e comem
    eu bebo e dançose a canção for triste
    choramos todos juntos
    se for alegre,barulho!
    os vizinhos que se fodam
    caso eles dindon
    eu abro a porta:”entrem”
    se não quiserem
    cagamos na cabeça deles
    e recomeçamos 
    na mesma nota
    quando amanhecer,eu sei,
    vocês tem trabalho
    podem ir,mas já estão convidados
    para a noite que vem
    e podem trazer o resto da turma 

Guinga Que nem Manequim


Em Paquetá, sem Fidel

Decidiu que iria passar o resto da vida em Paquetá. Este destino começou a tomar forma quando leu a famosa frase de Nelson Rodrigues sobre os guerrilheiros malucos dos anos 60 que queriam acabar com a ditadura militar e implantar um regime parecido com o de Fidel Castro no Brasil: "Mas Cuba é do tamanho de Paquetá!", disse o gênio, para dimensionar a sandice no país-continente. Mas também havia Luz del Fuego ali nas imediações e o fato de carros serem praticamente proibidos naquele pedaço de terra e pedra nas águas do mar do Rio de Janeiro. Atravessou dois estados, chegou à estação das barcas, entrou numa delas, desceu na ilha e viu que entre o sonho e a realidade um oceano os separava. Encontrou todos as pessoas com os olhos colados nos respectivos celulares, passando e recebendo mensagens. Veio um charreteiro oferecer o passeio para turistas. Aceitou, mas logo resolveu voltar quando foi deixado numa praia de águas poluídas e lhe sugeriram uma navegada no pedalinho em forma de cisne cor de rosa. "Pô! Se pelo menos fosse um boto!", ele pensou enquanto retornava para o continente e admirava a ponte Rio-Niterói.

sexta-feira, 2 de maio de 2014

quinta-feira, 1 de maio de 2014

O sol

        de Marcos Prado  
           
      o sol 
      do outro lado 
      da cidade parecia 
      iluminar 
      a china
      simples: 
      abri 
      a cortina

Na praia, do lado de dentro

Viu a foto antiga e agora sabe porque tinha tanto medo. Na frente do ônibus que levou os amigos do bairro suburbano para a praia, todos fazendo pose. Ele, menino de cinco, seis anos, não estava lá. Mas ao observar a imagem com atenção, se viu olhando para a câmera por dentro do veículo, exatamente no canto onde o vidro do para-brisa faz uma curva. Cabeça grande, cabelo cortado no modelo "topete de bode". Ali se sentiu protegido, se sentiu em mais um útero - mas continuava só. Não lembrou se o chamaram para se expor. O fato é que só apareceu na sombra, em pleno dia de sol brilhante. Ficou ali até o dia em que tomou coragem de olhar para si mesmo - não para os fantasmas que via na areia, no mar, no mundo. Não pensou que o clique da câmera poderia mudar tudo isso. Machucou-se todo, mas sobreviveu. Aí saiu do ônibus e foi dirigir a própria vida.

Aquarela Toquinho


quarta-feira, 30 de abril de 2014

Penúltima

      De Marcos Prado 
       
    Como posso agora estar alegre?
    era de se esperar que eu desesperasse
    talvez mais tarde eu desintegre
    entre o penúltimo gole do último porre
    e leve ao meu lado os que me seguem 
    sim,
    perdi a razão do que eu achava e do que eu acho,
    mas aprendi que o céu é mais embaixo
    ainda não sei o quanto dei
    a tantas quantas amei
    ainda não sei ao certo se eu errei 

Carrossel

Na cidade milenar e moderna ele viu um carrossel girando como num filme antigo ou sonho. Havia os cavalos, enormes, multicoloridos. Cada um espetado por aquela haste metálica que o sustentava e o fazia subir e descer, enquanto percorria a pista em círculo, para encanto da criança que o montava. Mas ele gostou mesmo de outro quatro patas, o que estava acima do teto -e que também girava, mas sobre o próprio eixo. Era um puro-sangue da raça dos carrosséis. Branco, como o do grande herói daquelas terras, um general baixinho e conquistador. Ele ficou olhando admirado o cavalinho e só voltou à realidade quando um menino lhe puxou a blusa para chamar atenção. Não era conhecido. Ele olhou em volta e não viu ninguém que identificasse como parente. O menino disse que queria subir no cavalinho. Ele perguntou em qual deles. O menino apontou o que pairava acima de todos.

Banda de Pífanos de Caruaru


terça-feira, 29 de abril de 2014

Bola

De Marcos Prado


Não se afobe com essa menina,
é preciso classe para dominá-la.
Calma, ela é que o ensina
onde se deve ou não tocá-la.
 
Por ter as formas perfeitas,
e os macios, simétricos gomos,
é mais carinhosa com quem a ajeita
do que quem a persegue como gnomos.
 
Apesar de ser o centro das atenções,
e ter poder sobre o mundo todo,
ela rola, humilde, entre as paixões,
exposta ao sol, à chuva, ao lodo.
 
Não se incomoda que a matem no peito,
que a chutem, que a dividam, que a isolem,
que a levem no bico, e, com efeito,
ela procura o ângulo que lhe escolhem.
 
Carente, ela também busca o abraço
daquele que melhor a encaixe,
do que a tem ao alcance do braço,
dona absoluta do seu passe.
 
Com o tempo, seus parceiros mudam.
Alguns, com ela, conseguem glória e dinheiro
e pensam que a dominam. Mas não se iludam:
ela sempre comemora o gol primeiro.
 
Esta é a bola, genial, feminina,
fascínio de quem defende e ataca.
Aos grossos, ela, cruel, fulmina.
Aos artistas, ela brinda o gol de placa.
 

Milagre na catedral

Entrou na catedral milenar e se sentiu como o arquiteto humano achou que o arquiteto de tudo recomendou. Um ponto minúsculo visto por algum marciano lá da casa dele. Fez o sinal da cruz e, assim que beijou a própria mão, foi invadido por uma luz que entrou pelo lado esquerdo. Na parede havia um vitral gigantesco, mas em meio aos desenhos e cores e santos uma janelinha se abriu. E ele viu o telhado de uma construção ao lado. Era o contato com ele mesmo, ou seja, o real. Ficou ali parado, hipnotizado. As pessoas que passavam começaram a parar e olhar na mesma direção. Também pararam. Também se imobilizaram. Bastou um se ajoelhar e os outros fizeram o mesmo. Foi então que alguém disse que aquilo era um milagre, que um anjo tinha por ali entrado para abençoar a todos e ao templo. Ele então viu uma pomba pousar no telhado vizinho e, logo em seguida, um macho. Este rodopiou, se achegou e subiu na fêmea.

Toninho Ferragutti Forró Classudo


segunda-feira, 28 de abril de 2014

Raul Seixas Caubói Fora da Lei


Esporte porreta

O porrete estava na vitrine de uma loja de antiguidades. Trancado a chave. Ele entrou e nem perguntou o preço. Comprou, para espanto do comerciante. De madeira, datado do início do século passado. Ele lembrou de alguns filmes do Chaplin, com o policial sempre manuseando o cassetete à espera de um erro alheio. O primeiro a quem mostrou a peça sacou logo a ironia e foi atirando: "Muito sangue deve ter banhado a sua compra". Ele riu e pensou: se não fosse isso este animal não estaria aqui no bem bom usufruindo as benesses de uma nação civilizada. Levou então o porrete para o lugar onde coleciona armamentos. Colocou-o ao lado de uma borduna e de uma bimba de boi. Agora procura um taco de beisebol utilizado pelos italianos do Bronx. Ele gosta deste esporte.

sábado, 26 de abril de 2014

Boemia

Eu voltei, como Nelson Gonçalves na boate da avenida São João - mas sem brilho, sem álcool, só com a boemia e o radar limpo para ver as almas tristes, alegres, atormentadas, esfuziantes... enfim, se ver.

Aquarela do Brasil João Gilberto


quinta-feira, 27 de março de 2014

Livre

Uma despedida sem palavras. Era o que queria. Mas, de repente, eles foram se juntando naquele pátio e ficaram em silêncio esperando as palavras. Porque durante todo o tempo em que ficou ali - e foram anos, conversou, acalmou, orientou, enfim, levou a palavra, sem ser pastor, padre ou monge. Quando entrou ali era um jovem que sabia ter perdido o futuro imediato. Iria pagar seu pecado por um bom tempo. Trancado, começou a pensar em si mesmo. Tirar todas os entulhos foi penoso. Até o dia em que se sentiu ele mesmo. Assim começou a falar com os outros. Não contava dias, horas, nada. Até quando lhe falaram que podia ir embora. Ele olhou-os nos olhos e começou a chorar. Não falou nada - e todos entenderam. Saiu da prisão com a certeza de que ali dentro finalmente tinha alcançado a liberdade.

bambu

De Paulo Leminski

soprando esse bambu
só tiro
o que lhe deu o vento

Siba e a Fuloresta Pisando em Praça de Guerra


quarta-feira, 26 de março de 2014

Longe da vaca preta

Era pobre. Mas limpinho, como dizem por aí. Lembra que um dia conheceu os carrinhos do autorama da Estrela na casa de um amigo classe média. Ele achou demais o brinquedo e o lugar onde estava. O polaco tinha um quarto só para ele. Depois foi este mesmo amigo que o apresentou ao hambúrguer e à vaca preta. . Ele não ficou pensando se um dia teria dinheiro suficiente para essas coisas. Não pensava. Tocava o barco, ou melhor, a bicicleta que um dia comprou. Mas ele queria uma moto e um Puma amarelo-canário. Amor à primeira vista. Anos mais tarde, profissional mediano, comprou a moto, que não sabe dirigir, um autorama, que fica dentro da caixa. Mas viciou em comer hambúrguer, tanto nas lanchonetes como os que ele mesmo fazia. Hoje lamenta a pança - que poderia ser maior se entrasse na vaca preta, mas ele não gosta do nome.

Pena Branca e Xavantinho Calix Bento


Capacidade

De Paulo Leminski

Transar bem todas as ondas
a Papai do Céu pertence,
fazer as luas redondas
ou me nascer paranaense
A nós, gente, só foi dada
essa maldita capacidade,
transformar amor em nada.

terça-feira, 25 de março de 2014

No terceiro andar do outro lado do mundo

Do outro lado da linha, do outro lado do oceano, do outro lado do mundo, a menina dizia que a mãe estava brigando com ela. E estava mesmo! Ele ouvia a voz da mulher ao fundo - e o som que recebia era o de uma dupla em dissonância. As duas, pelo jeito, se amavam - e se odiavam muito em momentos como aquele. Quem estava ao telefone disse que a mãe tinha ameaçado se jogar pela janela. Ele perguntou em que andar estavam. Terceiro. Ele, tranquilo, bem humorado, contou que, se a que tentava despencar não morresse, ia dar um trabalho danado na sequência - porque iria se quebrar toda. "Você não conhece minha mãe?", disse a voz bonita e aparentando segurança, querendo insinuar que pai e mãe tinham ficado juntos o tempo suficiente para conhecerem os defeitos do outro.Ele então respondeu que não conhecia mesmo, até porque nunca tinha casado - e não tinha filhos. O telefone foi desligado abruptamente. Ele nunca soube nem o nome de quem estava falando lá do desconhecido.

indicação

De Paulo Leminski

ao que tudo indica
só ver como tudo fica

Mania de Você Rita Lee


segunda-feira, 24 de março de 2014

Prezadíssimos Ouvintes Itamar Assumpção


queima

De Paulo Leminski

   A quem me queima
e, queimando, reina,
   valha esta teima.
Um dia, melhor me queira.

Patinete Rosebud

Quando viu o trenó do Cidadão Kane ele entendeu tudo. Rosebud para ele não tinha nada a ver com genitália da amante do poderoso Hearst. Era o patinete que construiu no tempo em que morava no quarto e cozinha da rua de terra que era o caminho para a longa descida de asfalto. Pirambeira. Lembrou do nome que todos os meninos da rua davam para aquela ladeira. Só então se deu conta da quantidade de crianças que havia naquele canto pobre da cidade grande. Todos eram criativos para as brincadeiras. Que, sim, tinham sua temporada marcada no calendário. A dos patinetes ele não recordava quando era, mas fazer o veículo exigia talento e uma boa dose de sorte para achar a madeira - aquela que ladeia qualquer cama normal. Uma sola de sapato velho fazia a junção entre as duas partes - e rolimãs azeitadas eram as rodas. A velocidade da máquina era incrível e a descidona interminável. Duro era subir tudo de volta para chegar de novo ao topo... e descer. Não faltava energia. Rosebud. Ninguém dava nome aos patinetes, mas eles acompanharam para sempre todos aqueles meninos que se dispersaram por aí.

quarta-feira, 19 de março de 2014

Cavalo na chuva

Uma hora e meia depois daquele sacrifício de pesos, esteira, etc, ele saiu trôpego da academia sonhando com o banho quente para curtir o melhor momento dessas coisas: o depois. Foi aí que viu o asfalto molhado e a chuva forte caindo do céu escuro. Reflexos das luzes dos carros bailavam na língua escura da rua e só então se deu conta que nunca tinha pilotado assim. Olhou a moto azul e lembrou do cavalo de aço de um tempo qualquer. As drogas naturais do corpo circulavam no cérebro como se bailassem numa sinfonia que só dava prazer. Ele montou, apertou o botão de partida, primeira engatada e entrou na experiência inédita. De calção, camiseta, um tênis velho de cadarço esgarçado e capacete com viseira aberta. Os pingos pareciam setas endereçadas do nada a entrar na alma com a suavidade dos deuses. Frias, sim, mas quentes o suficiente para fazer o coração descompassar. Ele então soltou um grito tão forte que logo um relâmpago cortou o céu no horizonte e o trovão veio depois para responder que, sim, era isso mesmo.

Na cara

De Paulo Leminski

   Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
   Só existe um segredo,
Tudo está na cara.

Toninho Ferragutti Na Sombra da Asa Branca


terça-feira, 18 de março de 2014

Para matar

Alguém um dia falou que levar um tiro é como se fosse um soco. Isso no primeiro momento e, claro, dependendo de onde a bala entra. Ser for na cabeça ou direto no coração, não dá para pensar se é soco ou sopro. Já era. Apaga para sempre e não vai encontrar São Pedro na porta de entrada como nas piadas. Ele pensava nisso enquanto limpava a Walter P38 que herdou de um soldado que lutou na Segunda Guerra Mundial. Nove milímetros, perfeita no seu encaixe, coisa de alemão. Colocou o pente cheio de balas e saiu na noite querendo uma encrenca para ver se a na prática a teoria é essa mesmo - ou outra. Lembrou do personagem de Feliz Ano Velho tentando pregar alguém na parede com tiro de calibre 12. Não era o caso. Um bêbado esbarrou no carro. Ele saiu de arma em punho fazendo mira num ponto abaixo da clavícula direita da vítima. O dedo no gatilho parecia pegar fogo, a respiração se alterou, mas ele não atirou. Aquele rosto ele conhecia, mas não sabia de onde. Talvez do seu tempo de bebedeiras monumentais. Talvez do seu tempo de morador de rua, largado da vida. Guardou o canhão, deu uma nota de cem para o amigo, foi para casa. Ligou a tv. Charles Bronson atirava. Desligou. Sonhou com um campo de girassóis.

sossegue coração

De Paulo Leminski

   sossegue coração
ainda não é agora
   a confusão prossegue
sonhos a fora

   calma calma
logo mais a gente goza
   perto do osso
a carne é mais gostosa

Cada Macaco no seu galho Riachão


segunda-feira, 17 de março de 2014

De Paulo Leminski

A vocês, eu deixo o sono.
O sonho, não!
Este eu mesmo carrego.

Uma camisa vermelha, 45 anos depois

Abriram um álbum antigo, pesado, daqueles em que as fotos ficam presas por cantoneiras. Era festa de turma, turma que se reuniu há quarenta e cinco anos num colégio público. Ele estava lá numa das imagens que aquela senhora guardara com devoção durante todo tempo. No colorido desbotado, ele ainda tinha cabelo no alto da cabeça, repartido ao meio e de onde saíam pequenas ondas para os lados. A camisa era vermelha e a calça de tergal marrom, onde se destacava o passador largo. Magro. Tinha uns quarenta quilos a menos. Olhou e enxergou o filho, hoje com 35 anos. Na retrato era adolescente de 15 anos - e não sabia o que fazer da vida. Hoje continua sem saber, mas se conformou com o que a vida lhe deu na procura. Seus amigos estavam todos naquele salão de festas de prédio classe média. Um bandeja com espetinhos vários circulava e um enorme bolo de chocolate esperava a hora do parabéns nesta data querida de 60 anos de um dos amigos. Descobriu que todos eram os mesmos de quase meio século atrás. Guris que se divertiam e ainda se divertem na gozação mútua. Um deles brincou a sério dizendo que o bom mesmo era que estavam todos vivos - e que não vai ser legal quando os encontros começarem a ser realizados em velórios. Será? Ele olhou de novo a foto e pensou neste desfecho natural. E ficou feliz porque até aquele momento todos tinham cumprido a trajetória normalmente, ou seja, acima da média - e sem saber ou pensar muito no por quê.

Carmem Miranda O que é que a baiana tem


quinta-feira, 13 de março de 2014

Cobre

Cobre o cobre. Ele não entendeu. Cobre o cobre repetiu o sujeito que que tinha barriga grande e se abanava com um leque comprado no Paraguai. O calor no ambiente era infernal. Teto de zinco, baixo, pouca ventilação naquele mocó na favela horizontal. Jogaram uma Colt 45 na sua mão, ele sentiu pelo peso que estava carregada e, sem querer perguntar mais, pediu o endereço. Foi. Era uma casa com varanda, plantinhas, florzinhas, um cachorro amarrado num fio. Bateu palma. O senhor que saiu forçou a vista para enxergar a visita. Perguntou o que queria. Ele disse que veio cobrar o cobre. O velhinho só disse que tinha pouco, estava fraco para o roubo. Ao ver o outro levantar a camisa para mostrar o cabo da arma, disse que iria lá dentro e voltaria. Foi. Logo em seguida ouviu-se um tiro. Foi na cabeça. A visita entrou e viu o crânio estourado do velho vertendo um sangue escuro que formava uma poça no piso de cimento queimado. Ao lado, um rolo de fio grosso. O cobre. Ele pegou e foi embora antes de a polícia chegar. Entregou para o barrigudo e contou o que aconteceu. O chefe cuspiu de lado e disse que o cobrado não rendia mais como no passado - e que tinham economizado uma bala.

Camisa de Vênus Deus me dê Grana


mao

De Paulo Leminski

um pouco de mao
em todo poema que ensina

quanto menor
mais do tamanho da china

quarta-feira, 12 de março de 2014

Pedras

Pintava pedras. Era escolhido por elas, dizia, sempre que andava pelas ruas do bairro. Tinha uma teoria para isso: contava que elas eram muito desprezadas e que o máximo de atenção que recebiam era um bico de algum moleque ou adulto nervoso. Levava as pedras para casa, dava um banho no tanque, deixava secar e depois pintava em várias cores. Guardava. Quando achava que alguém merecia, presenteava e pedia para guardá-la com carinho por toda vida. Numa festa do final de ano da empresa em que trabalhava, levou algumas delas para dar a seus colegas. Porque gostava muito deles e do ambiente formado. Fez discurso, apesar da timidez. Todo mundo gostou. Anos depois, encontrou por acaso um daqueles ex-companheiros. Lembrava até qual pedra tinha dado a ele.Perguntou por ela. O outro fez cara de espanto e disse que tinha jogado na cabeça do Paolo Rossi quando o Brasil perdeu para a Itália no estádio Sarriá na Copa de 82.

ave vento

De Paulo Leminski

   ave vento
   cheio de graça
   ave
tudo o que passa

Águas de Março Tom Jobim e Elis Regina


terça-feira, 11 de março de 2014

TV verdade

A primeira televisão ele nunca esqueceu. Era um caixotão quase do tamanho de uma cômoda, importada, usada durante muito tempo por alguma família de bacanas e que foi parar naquela sala da casinha nos fundos do quintal como uma maravilha do mundo. A imagem era de uma tela enfraquecida pelo uso, mas para o menino de oito anos a magia era até maior do que os vôos de Peter Pan e Sininho no álbum colorido que uma freguesa da mãe costureira lhe deu. Até o dia em que, sozinho na sala, viu primeiro uma fumacinha sair da parte de trás do aparelho, a imagem desaparecer em seguida e o fogo tomar conta. Saiu gritando desesperado pelo quintal e os vizinhos socorreram. A TV foi levada para fora da casa. Alguém queria jogar água. Disseram que, assim, iria explodir o tubo. Usaram então areia de uma obra vizinha. O menino chorou como nunca. Achava que o pai, quando chegasse do trabalho, iria brigar, pensar que ele era o culpado. O velho chegou e acalmou o filho. Prometeu que logo compraria outra televisão. Foi o que fez tempos depois. Essa, menor, mas também usada, tinha a vantagem de ser colorida. Um plástico com faixas em várias cores estava fixado na frente da tela. Era o progresso chegando à vila.

palavra minha

De Paulo Leminski

   Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
   a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
   mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
   palavra, palavra minha.

Roberto Menescal O Barquinho


segunda-feira, 10 de março de 2014

tudo nada

De Paulo Leminski

tudo dito,
nada feito,
fito e deito

A dos sensatos

Não queria mais a estranheza, o olhar pelo avesso, a dificuldade. Estava cansado porque tudo era muito pesado. Ao tomar água, por exemplo, ouvia o som de cacos de vidros sendo moídos e o grito interno dos órgãos sendo cortados. Ele sabia que não acontecia, mas sabia tanbém que acontecia - porque sentia. Uma benção com água benta aspergida lhe queimava a pele como chuva ácida. Ele pedia paz e o Cristo lhe dava uma piscadela sacana. Até o dia em que viu o filme do diretor doidão que resolveu fazer a coisa mais simples e linear possível, ou seja, a loucura em sua forma plena. Aquele pequeno trator cortador de grama o arrastou para uma realidade plena e plana, como um extenso campo de golfe. Ele caminhou assim por muito tempo até o dia em que ouviu uma voz saindo de um dos buracos. Resolveu olhar e então foi tragado para dentro da embarcação imóvel dos sensatos.

Hermeto Pascoal e Sivuca

sexta-feira, 7 de março de 2014

quinta-feira, 6 de março de 2014

Merda

De Paulo Leminski

Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam pobres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da mulher amada.

Jackson do Pandeiro e João do Vale Canto da Ema


Um pires com romeu e julieta

Ainda não dá, porque peguei uma ressaca de vida e estou com o gosto amargo a me achatar na cama. Ligo a televisão e procuro filmes - o resto é comédia horripilante da vida real. Tristeza tem fim, felicidade não pois sempre se busca a fim de evitar o desgosto do caminho da morte em vida. Era para não escrever, mas me ordenam como se isso fosse a penitência em moto-perpétuo. Claro que lembro de Edu da Gaita, mas ele era tão magro... e esses meus quilos a mais não querem sair, sempre estão convocando outros mais através de doces e massas e carnes e lactose, que é bom de comer e beber até o nome. Beijo e queijo. Poderia ser o prêmio pelo esforço neste dia onde as lâminas da persiana ficam parecidas com grades contra a luz do fim de tarde. Será que pirei ou quero apenas um pires para não comer romeu e julieta? A caixa da goiabada cascão cai na memória. Tenho que me cuidar.