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segunda-feira, 5 de outubro de 2015
Na paisagem
Quando vejo alguém falando em pragas que assolam o Planeta, fico puto. A praga maior, a que originou todo desequilíbrio e fez desencadear todas as outras, não é citada. Ele escreveu isso sob a luz de uma lamparina, com caneta Bic escrita fina, tinta quase no fim, em papel de embrulho amassado. Foi dormir pensando nisso. Morava num deserto onde, de dia, esquentava a mais de quarenta graus. Na primeira vez que esteve ali, vindo do Sul, onde nasceu, havia muita mata, muitos pássaros, muitos bichos. Depois de anos teve de se entocar na casinha que os pais deixaram, pois uma confusão terminada em sangue o obrigara a fugir, a se esconder. Aí já não encontrou mais nada - nem o pasto, a primeira praga. O açude secou, os bichos sumiram de morte morrida ou matada, os povos se arretirou, como falavam por lá. Ele ficou porque já não tinha forças nem ânimo. Andou ,muito por aqueles lados e viu o uso de herbicidas, viu o assassinato da terra, viu a morte em várias versões, e viu a maior praga, que era como no sul, onde morava em favela: o homem, a espalhar a doença e transformar tudo em amebas pestilentas. No dia seguinte guardou o papel com carinho. Pensou em pedir para alguém o colocar em seu caixão. Talvez pudesse apresentar sua descoberta lá do outro lado, para o todo poderoso. Quem sabe... Mas aí achou que a fome estava fazendo-o delirar demais. Rasgou o que escreveu e ficou olhando a paisagem esturricada.
sexta-feira, 2 de outubro de 2015
quinta-feira, 1 de outubro de 2015
Zé Tom
Toquei a campainha. O Zé abriu e eu vi o Tom. Todos. Porque ele sempre foi assim. Pega tudo, desde o sotaque do Cabral até o zunido do computador. Passa pelo batuque do saravá, índios marcando o compasso no terreiro da taba, samba, rock, smetack, jackson, aquele. O gravador ligado e uma torrente de informações impregnando a fita cassete. Existe rock brasileiro era o mote. Naquela sala de um apartamento simples saiu toda uma enciclopédia de vida musical como o próprio. O Zé do Tom. Quarenta anos depois ói ele mais Zé do que Tom, porque alucinadamente brasileiro. E manda tomar no toba quem renega o forró em Limoeiro, o som das máquinas e o olhar brasileiro de quem mostra as costelas, com olhar esbugalhado na frente do mar e recebendo nas costas toda a energia. Aquela. Que tomou conta quando ele abriu a porta, deixou entrar e sair. Tom Zé.
quarta-feira, 30 de setembro de 2015
Cansaço
Cansei. Da alma. Escrevi assim porque não tenho forças para pensar muito. O dia esgotou todo tipo de energia. Corri, comi feijão com arroz, bife, farinha e pimenta. Não dormi. Não dava. O dever me chama. Que coisa esquisita isso. Quem chama? Desde o sinal da cruz da primeira hora da manhã até a hora da Ave Maria rogai por nós os pecadores, um fazer atrás do outro. Pra que? Pergunto agora porque olho e não vejo, apenas sinto que tudo me consumiu como se eu olhasse um poço e a escuridão me deixasse apenas com a pele, osso, músculos. A mente? Não sei mais. Cadê o meu sono para que tudo volte ao normal? Por favor, uma esmolinha de compreensão para que o corpo sem recheio pouse na grande cama e o teto entoe a canção de ninar. Amanhã... amanhã...
terça-feira, 29 de setembro de 2015
Com a torneira
Ela conversava com a torneira enquanto lavava roupa no tanque lá no fundo da casa. Ouvir ele falando isso foi algo muito marcante, mesmo porque o dono da casa quase não conversava. Nunca fui lá atrás para verificar. Não queria atrapalhar. Mas sempre acreditei nisso, inclusive que as respostas da tal eram satisfatórias. Quando ela voltava para dentro de casa, o vestido invariavelmente estava molhado. Era estampado e eu imaginava as flores do jardim com o orvalho da manhã. Fiquei sonhador depois de velho, porque antes era o pesadelo que tomava conta de tudo. Aquela mulher não sorria muito. Hoje acho que era só da boca pra fora. Porque divertida ela era. Demais. Tirava sarro de qualquer coisa. Menos dele, a quem reverenciava como um rei. Talvez fosse assim que conseguia o domínio. Porque, se ele achava que era o manda-chuva, muitos anos depois, eu soube, da boca de um dos da equipe médica que trata minha cabeça, bem, soube que era ela quem dominava tudo. Provavelmente contava isso para a torneira do tanque - e esta respondia com a água fresca a abençoar aquelas mãos.
segunda-feira, 28 de setembro de 2015
Piripiri
Eu não vim, eu fui a Piripri. Descobri apenas quando o ônibus parou na beira da estrada no meio do Piauí. O sol rachava o quengo e a cor da paisagem era aquela onde se estabelece há quantos meses não chove no lugar. Paulo Diniz continuou cantando na minha cabeça - e eu nem sei se a Piripiri dele era aquela minha. E o que importava? Será que o amor dali era como o amor da letra? Caminhante faz parada, a voz rascante sempre cantou. Eu parei. Se apaixona pelo ar. Eu respirei e as narinas foram os dutos para entrar um ar quente no meu peito. Os olhos arregalaram e então eu vi um menino com catarro escorrendo, a camisa abotoada errada, o bucho com o umbigo estufado e os pés descalços no chão me olhando. E os olhos dele eram o mar verde a inundar tudo, a transformar aquela aridez em poesia visual e confirmar que cada amigo ali é um irmão. Ele sorriu pra mim, mas antes limpou o catarro com a ponta da camisa. Aí virou as costas e saiu correndo, mas dando uns pinotes numa cena tão alegre, que eu pensei em ficar ali, mas pedindo licença pra chegar, como na música.
sexta-feira, 25 de setembro de 2015
quinta-feira, 24 de setembro de 2015
dia do cachorro louco
De Marcos Prado
você morreu, cachorro louco
naquele mês de agosto
arreganhando os dentes
encarando um carro frente a frente
o carro, desgovernado,
explodiu no alambrado
você agora está contente
mas o carro estava cheio de gente
você morreu, cachorro louco
naquele mês de agosto
arreganhando os dentes
encarando um carro frente a frente
o carro, desgovernado,
explodiu no alambrado
você agora está contente
mas o carro estava cheio de gente
Refresco
Minha mãe sempre entrava com duas quentes e outra fervendo. Era baixinha, pernas cambaias, boca com os cantos caídos e parecia sempre triste. Parecia. Era mestre no de repente, ou seja, inventar frases, modas, tudo em cima do laço, na hora do acontecimento, como só quem nasce com talento e o desenvolve sabe fazer. Não se sabe onde aprendeu, mas ensinava. Conhecia todo o repertório de palavrões nordestinos - e febre do rato para ela era uma coisa suave. Fi da boba, por exemplo, era comum ela se referir a alguém que tinha feito algo errado. Fi da boba é o diminutivo de Filho da Peste Bubônica. Um dia aprontaram com ela. Foi meu pai. Coisa que nunca tinha acontecido. Não houve consequências, mas ela ficou bem triste de verdade. Uma irmã quis consolá-la, aquele consolo inútil de quem nunca tinha vivido aquela situação e que não sabe que a dor pode até se esconder, mas nunca vai passar. Quando acabou de falar a abobrinha, minha mãe só disse o seguinte para ela: "Fogo no rabo dos outros é refresco".
quarta-feira, 23 de setembro de 2015
Envergano
Eu não sabia o que é vegano, nem o que é ser vegano. O som da palavra é interessante, pois lembra vergando - vergano, como se fala na vila dos cafundós. Me chamaram para ir ao restaurante deste tipo, que agora é moda. Perguntei se tinha chuleta. Quanta heresia! Quanta associação de nomes! Me explicaram a coisa e lembrei dos botecos pé-sujo lá na Baixa do Sapateiro, em Salvador, onde vi um amigo comer uma linguiça que boiava há anos em óleo sujo. Para não ficar feio, contei meu lado vergano. Em todos os restaurantes que já fui na vida, o chuchu é menosprezado. Fica ali com aquela carinha triste , implorando que alguém o recolha para o prato e o coma em seguida. Por um motivo humanitário, faço isso. Sempre. O chuchu merece toda consideração, seja de um envergano ou de um vampiro. Não adiantou contar essa história. Perdi a oportunidade de almoçar no tal. Só me restou ir ao bar de quase cem anos e pedir um pão com bife, queijo e,,, verde, para começar a me adaptar à nova moda.
terça-feira, 22 de setembro de 2015
Capítulo final
Não quero uma casa no campo. Quero o campo na minha casa. Que ele seja do tamanho do que resta da floresta amazônica e que meu vizinho mais próximo esteja a milhares de quilômetros. Não suporto mais seres humanos, a começar por mim mesmo, este poço de certezas das dúvidas. Me disseram que era uma aventura, mas qual? O resumo já foi dito e não se foge disso: nascer, foder, morrer. O menino dentro do ônibus abandonado no meio do nada, morrendo e olhando para o céu, naquela história real onde ele foi procurar o que não existe, esse também é um resumo. Filmaram - e aí já virou merda vendida por Hollywood. Tudo é engolido e expelido pelo grande ânus. Lembram-se da geração paz e amor? Até hoje se fatura em cima dos incautos. E quem ganha é o que? Ah, os ricos se divertem mais, enquanto os pobres não conseguem nem pensar e muito menos sair dando tiros e furando e massacrando porque é isso aí mesmo. Minha casa no campo... onde não vou compor nem escrever, nem fazer porra nenhuma. Espero a invasão dos bichos para servir de alimento. Pelo menos serei útil no capítulo final.
todo caminho
De Nelson Capucho
essa história
sei de cor
todo caminho
vai dar no bar
vôo
não existe
sorte azar
não existe
tudo é risco
arrisque
leão de zôo
tem os olhos tristes
segunda-feira, 21 de setembro de 2015
Pé de pau
Ele apontou o dedo para o outro lado da estrada de terra e disse que ia derrubar o pé de pau. O pé de pau era uma jaqueira que estava carregada. O filho, adulto, que estava ao lado, não entendeu direito aquilo, mas como nunca contestou o pai... Mas lembrou que, há muitos anos, quando esteve ali pela primeira vez, havia muita mata, muitos pássaros, muitos bichos. Então disse, incisivo, que não, que aquele pé de pau não iria ser cortado porque restavam poucos como ele na terra que um dia seria sua. O pai ficou quieto - e isso significava que dava razão. O pé de pau foi salvo e está lá até hoje. O que o salvador daquela árvore mais lembra, no entanto, é que a conversa toda foi feita na sombra de uma mangueira gigante, com mais de cem anos - e que ela foi cortada sem uma razão lógica pela tia, que cismou com isso e não teve ninguém para lhe dizer não.
sexta-feira, 18 de setembro de 2015
quinta-feira, 17 de setembro de 2015
Antes de ir embora
Tenho visto gente demais ir embora mais cedo do que deveria. Só acredito em alma, porque corpo é miragem. E estes que foram tinham a bondade expressa na aura, mesmo que alguns fizessem esforço ao contrário. Sim, meu radar não falha para essas coisas. Por isso sempre foi muito triste entrar em UTIs de vários desenhos, mas com a morte impregnada no ar. A morte do corpo ou, como sempre acho, o caminho para o que é a pessoa mesmo ir - não se sabe para onde; e aí está o mistério do antes de nascer e depois de partir. Olhei para eles no silêncio igual ao das cortinas de plástico que protegiam seus cubículos. Conversei com eles e pedi para que descansassem da passagem atribulada neste recorte de tempo. Depois fui embora para um lado, levando meu corpo, enquanto eles ficaram ali inertes de ossos e feixes de músculos, mas partindo. E eu queria tanto que ficassem para mais uma conversa, mesmo que de ano em ano... para uma boa risada ao se revelar ao outro a última "merda" deste mundão sem sentido. Tenho visto gente demais ir embora - e esqueci que também vou logo mais.
quarta-feira, 16 de setembro de 2015
A montanha e o rio
Como se fosse uma montanha que sobreviveu ao maior de todos os terremotos. Ficou ali firme, coberta de florestas e bichos que se abrigaram e se salvaram. Passou o tremor, as águas baixaram, o céu abriu, o sol brilhou. Não passou muito tempo e eles chegaram. Primeiro, em pouco número. Depois, como uma multidão faminta. Não de comida, porque traziam alimentos, eram saudáveis e fortes. Sedentos estavam de devastação. Motosserras, machados, armas de todos os calibres, herbicidas, napalm. A destruição era necessária, mesmo sem eles saberem o motivo. A devastação era acompanhada de um grito que vinha do interior da terra, mas eles não ouviam. Era preciso vencer aquela força que venceu a outra força da natureza. Quando tudo estava calcinado, chegaram os aviões para bombardear e deixar o terreno sem nenhuma protuberância. Fizeram isso e do que seria o centro interno da montanha surgiu uma nascente - que logo se transformou num rio. Todos os devastadores beberam daquela água para matar a sede causada por tanto trabalho. O rio era de lágrimas. Eles nunca souberam disso.
entranha: descascando cebola
de Roberto Prado
dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minha alma do outro mundo
dentro do dentro
no meio do miolo
nas profundas do centro
do núcleo de tudo
é ali, no fundo, no fundo,
que habita você
minha alma do outro mundo
terça-feira, 15 de setembro de 2015
Bolinhas de papel
Acertei duas vezes. Fiz bolotas de papel, virei a cadeira e arremessei para o cesto de lixo que estava lá no fundo da sala. Entraram direto, sem bater no aro de plástico. Ninguém consegue isso! Eu sou foda! Quantas vezes li nos lábios do jogador que fez o gol decisivo esta expressão tão... tão... foda? Ninguém consegue colocar duas bolinhas de papel no meu cesto de lixo. Porque ninguém tentou - e nem vai tentar. Aqui ninguém entra. Sou protegido pelas espadas de São Jorge, o Espírito Santo e todo um time que fica vigiando a porta bem na frente da entrada. Alguém aí pode se perguntar por que duas bolinhas arremessadas por um maluco são tão importantes. Tem gente que ganha milhões numa tacada e dá o maior valor a isso, mesmo que esteja roubando honestamente e atropelando o próprio caráter. Tudo é uma questão da vista do meu ponto. Joguei outra bolinha. Não entrou. Não tem problema. As duas primeiras entraram direto e salvaram meu dia tedioso.
parecido com outro
De Marcos Prado
seja o que for que você veja
veja o que for que você seja
estarei mais perto do que você pensa
menos longe do que você nega
só não estarei só minha nega
se você for sem dizer que chega
seja o que for que você veja
veja o que for que você seja
estarei mais perto do que você pensa
menos longe do que você nega
só não estarei só minha nega
se você for sem dizer que chega
segunda-feira, 14 de setembro de 2015
Pântano traiçoeiro
Vi o menino brilhando. Ele tinha aquela energia natural de quem pode transmiti-la. Para o bem. E isso porque conhecia o outro lado, o do pântano, o da perdição, o inferno na carne e na mente viciada. Um dia, na periferia da cidade grande, num colégio cercado de grades, fiquei olhando ele falar sobre os caminhos perigosos, a tentação da salvação que acaba virando pelo avesso - e aqueles meninos e meninas olhavam o garoto bonito e de palavras arredondadas como se estivessem diante de um astro da televisão. Que bom! Depois segui meu caminho e ele o dele, mas sempre aparecendo uma notícia ou outra nos jornais, afinal, seu trabalho rendia isso. Até que soube: escorregou na própria trajetória, esqueceu que o pântano está dentro de quem esteve nele e que, se não se cuidar, é tragado de novo. Fiquei muito triste, mas sabendo que o sol pode brilhar novamente, mesmo porque também está dentro da gente.
sábado, 12 de setembro de 2015
quinta-feira, 10 de setembro de 2015
no caderno
De Paulo Leminski
Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.
Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.
O lado escuro da vaca
Alguém me falou da vaca. Não entendi direito. Ouvir o disco da vaca? Não sabia que vaca cantava ou tocava algum instrumento. Fui lá na casa do amigo. Era rico. Enrolou uma erva e começou a fumar. Me passou. Fumei. Engasguei. Ele mostrou a vaca. Tirou a bolacha preta de dentro. O som era de primeira qualidade. A vaca era viajante. Peguei a capa. Nas manchas do animal eu vi a lua. Fiquei ali parado ouvindo a música e olhando. Ela era tão nítida que o dragão de São Jorge derreteu a lança do cavaleiro. Meu amigo riu quando lhe contei isso. Ele perguntou então o que tinha no lado escuro. Eu olhei a contracapa e só vi letrinhas num idioma alienígena. Aí falei que tinha o Pink Floyd. Ele disse: "Falou!"
quarta-feira, 9 de setembro de 2015
O outro
Não era o dia que estava diferente. Tudo estava igual, nada que alterasse a rotina, nenhum acontecimento bom ou ruim. Ele é que estava diferente. Não sabia o que era aquilo. Não, não estava deprimido ou angustiado ou em mania, alucinado, como já tinha acontecido. Era como se não fosse ele - e esse outro não se encaixava em nada. O problema é que tinha de trabalhar, levar as crianças à escola, pagar contas, beijar a mulher no portão, fazer um cafuné no cachorro, essas coisas. Mas... se ele não era ele... Que sensação estranha a lhe apertar o coração e quase lhe tirar a respiração. Tentou meditar. A cabeça pensava como um outro, desassossegadamente - e o tempo, este mistério que envolve a tudo, ah, o tempo! parecia derretido e parado como no quadro de Dali. A noite caiu sobre seus olhos de repente. Ele se escondeu embaixo do cobertor, apesar do calor infernal. Foi então que viu ele mesmo ali dentro. Fez um esforço e se agarrou. O outro dia foi como todos os outros dias normais.
sexta-feira, 4 de setembro de 2015
quinta-feira, 3 de setembro de 2015
No canavial
Coloquei o menino no meio do canavial e fiz a foto. Ela está comigo guardada como um segredo que só tem revelações para mim. Nunca mais a olhei, mas sempre a vejo. Os braços dele estão caídos ao lado do corpo. O olhar parece perdido e não há nenhum tipo de energia captada pela lente. Ele não ri, não chora, apenas está ali, no meio do canavial cujas plantas são bem maiores que ele. Tudo é verde, assim como a cor do mar a poucos quilômetros. A imagem é um marco do limite entre um voo sem rumo e o retorno à realidade muito mais fantástica. Dali em diante ele retomou o brilho da vida e sua mente ordenou-se num caminho seguro, mas imensamente criativo. Antes, o delírio. Depois, a reinvenção diária em forma de humor, textos, desenhos, alma a captar tudo. Renasceu porque, quando nasceu de fato, quem estava longe era quem fez a foto. Assim foi. Assim é. Por isso, belo.
quarta-feira, 2 de setembro de 2015
A tipinha
De Dalton Trevisan
A tipinha de tênis rosa para o avô que descola um dinheirinho:
— Pô, você me salvou a vida, cara!
A tipinha de tênis rosa para o avô que descola um dinheirinho:
— Pô, você me salvou a vida, cara!
Atrás da foto
Descobri porque sempre tive medo. O motivo estava ali, naquela foto amarelecida. Apontaram a lente e fizeram o clique no corredor ao lado da casa grande. Eu devia ter entre dois e três anos. A mãe me arrumou bonitinho, de sapatinho e tudo. A fotografia confirmou que a cabeça sempre destoou do corpo. Grande, achatada atrás. Mas na imagem ali estava o buraco com uma grade. Devia ser o respiradouro do porão. Mas não havia outras entradas e não dava para ver nada lá. Mas eu via dentro da minha cabeçorra. Eram os monstros sem formas, a violência latente, o descontrole da natureza, o desastre em várias formas pensadas. Um dia gritei para tudo aquilo ir embora. Agora lembro. Não foram. Parece que se entranharam ainda mais em mim. Carrego-os até hoje. Foi ali. Estava ali. Está ali na foto que, agora, digitalizada, abro de vez em quando. Não para me ver, mas sim para tentar decifrar o que há por trás da imagem.
terça-feira, 1 de setembro de 2015
Bem no fundo
De Paulo Leminski
No fundo, no fundo,
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Seriados
Jim das Selvas era Tarzan e campeão olímpico de natação. Chita aplaudia e Jane perguntava que bicho ia dar. Havia um grito que, no futuro, Johnny Weissmuller deu no Fantástico e quase enterrou o próprio mito. Quem mandou? O menino viu tudo aquilo e muito mais. Era o tempo dos seriados como foi o tempo da Jovem Guarda para a música. Ingenuamente lindos. Os tempos de agora são de sangue e putaria, no pior sentido. Greta Garbo nem em Irajá acabou. Ela acabou porque ninguém a conhece, assim como Orlando Silva, aquele que compareceu à despedida de Belini no campo do Atlético Parananense. Cante o Carinhoso na voz de um breganejo aí! A moda agora é a da impressora que faz tudo. Fabricarão bilaus e xerecas para a brincadeira virtual. Jesus Cristo, eu estou aqui.!Glória a Deus e copo com água benzida para todos.
segunda-feira, 31 de agosto de 2015
No paraíso
Meu paraíso foi construído em cima de um terreno invadido. Não lembro por quem, pois eu estava no bucho da minha mãe. Ela morreu de tanto beber. Mas antes, com meu pai, que era viciado em outras drogas até se matar com o crack, construíram o barraco com papelão, compensado usado, plástico preto, etc. Tem um rio fedido aqui na frente. Quando chove eu rezo para ele não invadir meu pedaço. Fui criado pelos vizinhos. Aqui tem uma turma de bom coração. Os traficantes também têm e eu fui alimentado por alguns deles, que morreram ou estão presos. Mas quem vive da droga é uma raça que nunca acaba. Tem o dinheiro fácil e, dependendo do acordo, proteção. Um dia achei um livro dentro de um saco de plástico que o rio deixou no barranco embaixo da minha janela. Eu aprendi a ler nos dois anos que frequentei uma escola aqui perto. Depois desisti. O livro era bem diferente daquilo que a professora com cara de fuinha ensinava como se estivesse há anos sem trepar. Também, quem ia querer comer aquela coisa? Mas foi assim que comecei a entrar em outros mundo, que é o de quem escreve. Parece uma mágica isso. Resolvi ser mais catador de lixo reciclável só para ir atrás de mais histórias escritas. O dinheiro que ganho dá para não morrer de fome. Leio direto nas horas qlivres. Como faço meu horário, às vezes passo uma semana com os olhos pregados nas letras - às vezes o coração aos pulos. Já disse que funciona mais que droga. Acho que aprendi a falar melhor assim, sem muitos erros. Talvez eu escreva alguma coisa a respeito um dia. A respeito do meu paraíso. Aqui. Não preciso de muito. Apenas que não me encham o saco.
quarta-feira, 26 de agosto de 2015
Um tapa, para começar
Há certas pessoas que nasceram para apanhar na cara. Em público. O rostinho branco e arredondado prontinho para ficar a marca do tapa, aquele descrito pelo tarado do Nelson Rodrigues - quando o que dói mais é o barulho. Há os que estão prontos para levar surra de cinta, no meio da rua, fivela deixando marcas pelo corpo. Então, ajoelhados, de mãos postas, pedem perdão pela canalhice que aprontaram, pela falta de caráter como DNA de família. Marmanjões facilmente reconhecidos pelo sorriso puxa-saco, aquele "inteligente",que surge para agradar a quem quer que seja, mesmo que o momento seja errado e o cancro humano não esteja entendendo nada do que disseram ou da situação. Quebrar os dentes de um pulha desse tipo seria o ideal, mas aí o coitado do dentista teria muito trabalho de reconstituir parte da fachada do crápula. Um bom tapa, que deixa a marca dos dedos na face do vagabundo é suficiente. Ou não? Muitas vezes tal tipo têm orgasmos com isso - e depois aprontam mais para apanhar de novo e, quem sabe, poder gritar que quer mais e mais e que nasceu para isso. Nestes casos, quebrar algumas costelas fica de bom tamanho para o digno representante da escória.
terça-feira, 25 de agosto de 2015
Quem acha
Quem acha vive se perdendo. Noel Rosa teve a inspiração quando, de manhã, depois das noites de orgia, voltava para a Vila Isabel e roubava garrafas de leite na porta das casas vizinhas. Claro que isso foi inventado, mas o passado é bom porque a gente edita. Essa é do Armando Nogueira, aquele que colocou Garrincha driblando no espaço de um lenço. Me perdi sem me achar. Isso é pior ou melhor? Quem se acha é sério demais, do tipo imaculado, o machão que sabe tudo, que não sorri, que ferra com todo mundo e, em casa, fica só de calcinha vermelha rendada dançando rumba na frente do espelho. Zé Trindade saltaria de lado e pediria para o jacaré sair pra lá. O que seria toda essa colagem de lembranças que ficaram e ficarão? Nada. E tudo.
segunda-feira, 24 de agosto de 2015
Maldição
Vai ver que foi isso mesmo: a maldição da cabeleira. A turma era do quarto ano do que hoje chamam de primeiro grau. De repente os Beatles invadiram o mundo. Ninguém ali decifrava o idioma inglês. Pra que? Todos fomos abduzidos por uma onda. O que mais chamava a atenção eram aqueles cabelos enormes a cobrir as parte das orelhas. Que coisa! Resolvemos criar a nossa banda. Sem instrumentos, sem música, sem nada – só com os cabelos. Não dava para esperar crescer. Era pra já. Uma das mães dos quatro rapazes da vila era costureira. Foi encarregada de inventar os cabelos. Um pano preto, bem recortado, na medida da cabeça, com a franjinha em linha reta na frente – e pronto. Os encontros duraram quase um mês. Um ficava olhando para a cara do outro – e os quatro para o espelho grande de uma sala. Na radio-vitrola, eles, os originais, que eramos nós mesmos. Anos mais tarde um deles deixou o cabelo crescer até o meio das costas e o cavanhaque batia no peito. Até o dia em que foi convocado para o Exército. Raspou tudo. Vestiu farda por um ano e, depois, ao tentar deixar a cabeleira recuperar o espaço, notou que as entradas estavam querendo saídas. Encontraram. Ficou careca rapidamente. Era o resultado da maldição da cabeleira de pano dos Beatles.
sexta-feira, 21 de agosto de 2015
quinta-feira, 20 de agosto de 2015
Seis bolas
Os dois, cansados, voltavam de uma longa viagem de trabalho. Estavam perto da cidade destino, mas as horas de estrada os fizeram parar o carro num restaurante modesto. Um queria jantar. O outro, não. Disse que estava indisposto e, para reforçar o que sentia, passava a mão em círculos sobre o abdome. O garçom marcou o pedido do primeiro. Olhou para o indisposto e ouviu uma pergunta: "Tem sorvete?" Ao ser informado que, sim, ali havia sorvete bom, especial, de vários sabores, veio o complemento. "Então, faz o seguinte: coloque seis bolas numa travessa e, depois, abra uma lata de pêssegos em calda, despeje tudo em cima e me traga". O pedido foi atendido. Ele comeu tudo - para espanto do amigo. Depois, no carro, perto de chegar à cidade, ainda falou: "Quando chegar em casa, vou fazer uma boquinha porque estou com saudade e amo a comidinha da minha mulher".
quarta-feira, 19 de agosto de 2015
Dinheiro
Nunca vi o dinheiro dele. O dinheiro da carteira. Quando pedia uns trocados, ele puxava a dita, virava de costas para mim, tirava as notas menores - e me dava. Sei que era um sacrifício, porque aquele dinheirinho ele suava muito para ganhar. Talvez por isso tenha me transformado no inverso. Se pudesse - e tivesse, distribuiria entre os filhos, netos, parentes, amigos que estivessem precisando, etc. A cena do filme me influenciou muito também. Japonês, preto e branco, cinema de arte, tela pequena e o motorista circulando pelas ruas de Tóquio, sozinho, com uma pacoteira de notas no banco do carona. Jogava as notas pela janela - rindo. A cena longa, sem trilha sonora, sem nada. Alguém escreveu que ali se mostrava toda a personalidade do personagem. Era ele. Era eu.
terça-feira, 18 de agosto de 2015
Era um garoto que...
Era um garoto que amava... só os Rolling Stones. Ele não sabe bem o porquê, afinal, não entendia patavinas de inglês, mas foi melhor assim, afinal, as letras são enfeites de quinta categoria para os raios disparados pela maior banda de rock de todos os tempos. Canonizou Keith Richards, não Mick Jagger. Acha que o sobrevivente é a alma que carrega tudo. Lá na vila jurou que, se um dia o grupo viesse ao Brasil, estaria lá, no gargarejo, mesmo se o show fosse numa clareira no meio da selva amazônica. Nas três vezes que tocaram e cantaram (I Can't Get No) Satisfaction ao vivo, nestas terras, estava lá - e ainda ganhou de brinde um Bob Dylan na segunda vez que os velhinhos pisaram a terra brasilis. Foi com os filhos. Gostaria de apresentá-los aos netos. Agora se prepara para mais uma experiência inexplicável: a de saracotear sem parar durante as duas horas de inundação sonora, mesmo que esteja a dois quilômetros de distância do palco, como aconteceu em Copacabana - performance cujo encerramento foi um banho de mar no meio de uma noite inesquecível. Idoso com um pouco menos de estrada que os súditos da rainha, sai da passividade para o esbanjamento de energia tanto quanto o cantor bocudo. Está pronto para o ano que vem, pois desconfia que será a celebração derradeira de um amor que pulsa.
segunda-feira, 17 de agosto de 2015
sexta-feira, 14 de agosto de 2015
quinta-feira, 13 de agosto de 2015
NAVEGANTE
De Helena Kolody
Navegou
no veleiro dos livros.
Desembarcou
e conferiu.
E o mundo que viu
não era o que imaginou.
Navegou
no veleiro dos livros.
Desembarcou
e conferiu.
E o mundo que viu
não era o que imaginou.
Dois em um
Antonio das Mortes e Corisco se fundiram na lente de Glauber Rocha. Abençoados foram por Antonio Conselheiro em delírio - pouco antes da hora da morte. Eu vi na madrugada de lua cheia. Eles vieram guiados pela mente de Stephen King e entraram no meu corpo como anjos e demônios prontos para a catequese. Havia uma Papo Amarelo e um punhal de prata enorme. Era o sinal para o juízo final dos que não têm juízo e, como senhores absolutos do poder, fazem dos desvalidos os merdunchos que João Antonio batizou. Para cada um deles uma bala .44 com uma cruz na ponta e a lâmina pronta para entrar bem abaixo do umbigo e varar tudo até sair no topo da cabeça. Assim foi feito. Bastava olhar, mesmo na tv, e ordenar os justiceiros. Bala e punhal entravam ao mesmo tempo, invisíveis aos olhos da multidão. Cães sarnentos apareciam do nada para urinar nos cadáveres. Os miseráveis não choravam. Faziam festa. Quem se apavorava eram os outros escrotos. Sem ninguém pedir, juravam arrependimento. Para estes o punhal era mais cruel: percorria do ânus à boca em câmera lenta. Mas eram tantos os crápulas, assassinos dos anônimos que os sustentavam, que Antonio das Mortes e Corisco um dia se cansaram. Retornaram ao filme. As ervas daninhas não tardaram a tomar conta de tudo novamente.
quarta-feira, 12 de agosto de 2015
brisa
De Roberto Prado
como um salário de fome
para o cabeça de vento
vem o sopro da primavera
e sobre este vale tudo de lágrimas
soletra um nome
para que eu viva de brisa
como um salário de fome
para o cabeça de vento
vem o sopro da primavera
e sobre este vale tudo de lágrimas
soletra um nome
para que eu viva de brisa
Vultos
Óculos na ponta do nariz, estava lendo um trechinho dos escritos de Roger Salter. Este: "Ele está se preparando para a chegada do grande artista que um dia espera ser, um artista no sentido verdadeiramente moderno da palavra, ou seja, sem grandes feitos, mas com convicção pura de sua genialidade". As janelas do escritório estavam abertas no final da tarde e o telhado que dava para ver logo adiante parecia agradecer a partida do sol que o castigou o dia inteiro. De repente, um vulto passa voando e pousa suavemente na beira da calha. Numa fração de segundo. Ao olhar por cima das lentes, o vulto continua vulto. Sabiá, com certeza. De volta à leitura, mais uma: "Ela era calma e lúcida. Tinha a paciência vasta dos insanos". Um grito corta o silêncio. Recebe o aviso de que os da casa lá embaixo estão saindo para uma festa. O pássaro voa. Ele fecha a janela e tenta escrever algo.
segunda-feira, 10 de agosto de 2015
Lobotomia
De repente olho e vejo aqui na mesa uma gaita de boca azul, um pião e a fieira, um calendário Seicho-No-Ie que ensina "A alegria da alma manisfesta-se nas ações de amor ao próximo", duas agendas telefônicas com mais de dez anos anos de uso, folhas soltas, nomes se apagando, números que não servem mais, um caderno com anotações de viagem que nunca mais abri, um porta-canetas feito no tempo de internamento no manicômio e o telefone vermelho que achei ser do coronel maluco do filme Dr. Fantástico. A quem interessa a descrição? A mim mesmo, porque quem lê vai imaginar a mesa, a tela do computador, talvez o local e não vai passar perto do real. Jornais da semana se espalham pelo chão e há uma arma com mira telescópica num canto. Chumbinho. Sim, matou. O que? Não interessa. Como Lawrence da Arábia, depois da primeira morte, houve prazer. Mas isso faz tempo e eles não apareceram mais no quintal para levar bala. Será que estou ficando louco? De novo? Sei que em casa há uma camisa de força guardada em algum lugar. Já estive dentro dela. Manso. Agora visto roupas de grife e frequento locais onde os tubarões nadam, deitam e rolam. Deveriam ser abatidos - porque mais alucinados. O sangue escorre de suas bocas e eles querem mais. Isso é outra história. Estou sozinho. Tenho cicatrizes grandes nas têmporas. Me falaram em lobotomia. Estou calmo. Vou tocar a gaita e rodar o pião. Com licença.
Haicai da necessidade de morrer
De Miguel Sanches Neto
Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra
em muito melhora
a qualidade de nossa obra
sexta-feira, 7 de agosto de 2015
quinta-feira, 6 de agosto de 2015
lâmpada e estrelas
De Helena Kolody
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
Não
O não era a sua perdição. Tentou achar a nascente daquilo, pois bastava ser contrariado, em qualquer situação, por mais boba que fosse, e via o alçapão se abrir aos pés da sua alma. Mergulhava então na catacumba, purgatório, areia movediça com baratas gigantes. Uma vez viu seu coração ser arrancado a fórceps pela boca e comido por piranhas dentro de um aquário só porque, em casa de parentes, não lhe deram a mostarda marrom para colocar no cachorro quente. Ele pediu, ela estava ali perto, disseram para ele pegar - mas como se levantar dali se ele pediu porque morria de vergonha? Foi por isso que durante muito tempo o mistério do namoro era anabolizado pelo segredo do beijo - e ele apenas se apaixonava por meninas que lhe davam toda bola, mas... Como falar? E se elas dissessem não? Morreria, certamente, de queda de boca no meio-fio, dentes quebrados fazendo-o engasgar até o último suspiro. Tudo acontecia até o dia em que uma palavra se tornou mágica e matou o pesadelo para sempre. Ele ouviu um sim que fez sentido para sua alma atormentada. Foi uma coisa simples, mas aconteceu. Entrou na mercearia e deu vontade de comer pé-de-moleque. Perguntou ao senhor de barbas brancas, que estava atrás do balcão, se ali tinha . Viu os olhos brilharem e um sorriso apresentar um dente de ouro e vários careados. A resposta positiva foi como flash de luz. O doce comido numa longa caminhada de volta para casa fez o resto do serviço de aniquilamento da palavra da perdição.
quarta-feira, 5 de agosto de 2015
Preso
Eles entraram arrombando a porta. Um helicóptero pairava sob o terraço do prédio. Alguns desceram dele, deslizando em cordas. Homens de preto. Só os olhos de fora. Alucinados. Armas modernas apontando e gritos histéricos inundando o ambiente. O café ainda estava quente na xícara. Não consegui dar um único gole. Não me apavorei. Esperava isso. Sentado, ergui os dois braços e espalmei as mãos. Dois gorilas as seguraram, colocaram para trás e me algemaram. Não leram meus direitos. Isso é coisa de filme americano. Desci pelo elevador cercado por dez. A rua em frente ao prédio estava com o trânsito interrompido. Mais policiais, armas, cães mostrando os dentes. Me colocaram no banco de trás da barca. Era assim que a gente chamava as viaturas no tempo de colégio e maconha. Foi a primeira vez que fui transportado assim. Ao chegar na dependência policial havia um batalhão de carniceiros. Tom Wolfe rotulou assim os repórteres em seu clássico "Os Eleitos". Sorri para os que conhecia. O delegado mandou tirar as algemas. Meu advogado chegou em seguida. Estava com o terno Armani que gosta. O perfume não identifiquei. Ele cochichou algo para o manda-chuva. Ele me mandou sair pelos fundos. Voltei para casa. Tive de fazer um café novo.
terça-feira, 4 de agosto de 2015
Passos no mundo
Toda vez que eu dou um passo o mundo sai do lugar. Nome de música, nome de disco. Pouca gente conhece. Nem te ligo. Ela me ligou. Eu dava mais que um passo. Pegava o Dinossauro da Viação Cometa e ia passar férias no Rio de Janeiro que era Guanabara. O quepe do motorista e a alavanca para fechar a porta eram o máximo. Lá, sempre o mundo saía do lugar. Porque o meu era da vila pobre e no fim da estrada tinha um Cristo querendo me abraçar. Um dia, no bairro onde nasceu um gênio, o Méier de Millôr, fui soltar pipa no terreno vizinho do casarão onde ficava com a tia querida. O muro caído, alguns passos, o brinquedo subindo no ar e um grito vindo não sei de onde. "Se não sair daí eu te queimo de bala". Era um general sem pijama, soube depois. Dei mais um passo para tomar Grapette na areia da praia que hoje é de merda. E muitos passos para comprar bisnagas nas padarias de vascaínos. Um dia vi General Severiano, mas só muito tempo depois soube que as pernas tortas estavam lá. Botafogo. Agora, depois na longa caminhada, vi o grande mural do restaurante Fiorentina, no Leme - e todos os campeões estão lá, os de 58 e 62, sempre nos esperando. O mar é o mesmo. O mundo saiu do lugar sem eu dar um passo.
Revendo uma foto antiga
De Miguel Sanches Neto
Nesta foto do tempo de criança
o que mais me encanta
não é nossa alegria de infantes
mas a réstia de luz de uma manhã
brilhando no chão da varanda.
Ninguém apaga este sol
que nos chega da infância.
segunda-feira, 3 de agosto de 2015
o que me falta
De Alice Ruiz
Já não temo fantasmas
invoco a todos
que venham em bando
povoar meus dias
atormentar minhas noites
entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me
falta.
Já não temo fantasmas
invoco a todos
que venham em bando
povoar meus dias
atormentar minhas noites
entre tantos
loucos e livres
existe um
que é doce
e que me
falta.
Bola de gude
A poucos quilômetros da frieza do asfalto e concreto havia o mar, uma praça, uma igreja no alto da colina e, perto dali, numa rua de terra, meninos brincando com bolinhas de gude. Ele parou para olhar, sentou no chão e aquelas pequenas mãos e dedos ágeis faziam as esferas coreografarem o jogo que levou seu coração ao passado. Pediu para entrar na brincadeira, ele, um senhor de sessenta anos. As crianças acharam esquisito, mas viram que seus olhos verdes pareciam com as de algumas bolinhas - e a bermuda surrada, a camiseta velha e a sandália de dedo eram a verdadeira identidade de um eterno menino. Ele ficou ali por muito tempo, esqueceu o que foi fazer naquele pedacinho do mundo cujas costas eram protegidas pela Mata Atlântica e o peito por um estuário santuário. Era craque no tiros disparados com o dedão pressionando a esfera contra a dobra do indicador. Acertava as outras bolas a qualquer distância. No final, quando disse que precisava ir, os meninos o cercaram e lhe deram algumas daquelas bolinhas de presente. Ele as guardou no bolso, entrou no carro e, na estrada de terra que o fez voltar para o asfalto que o levou depois para a cidade grande, chorou sozinho no final de uma tarde cercada de silêncio.
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