quarta-feira, 4 de maio de 2016

Marisa Monte Depois


Ela chegou!

Não, aquela notícia não podia ser verdade. Estávamos em Boa Vista, no bafo do inferno do Norte do Brasil. Família de militar, anos 90 do século passado. Notícia chegava a cavalo manco. A modernidade ali era o novo uniforme do carteiro. Não, quando alguém da família veio nos visitar e, sem querer, na hora de um almoço qualquer, nos contou... Ninguém acreditou porque era impossível acontecer aquilo. Alguém disse que era mais fácil fazer a nado o percurso entre Manaus e Belém pelo rio Amazonas. Outro, que escalaria o Pico da Neblina nu se por acaso fosse verdade. Demorou um tempo, mas quando um parente do Sudeste apareceu em casa e abriu a mala e tirou de lá aquela garrafa, houve um silêncio ensurdecedor. Sim, a coisa existia - e podia ser bebida. Fanta Uva.

terça-feira, 3 de maio de 2016

Sangue na tela

Começou com as quedas seguidas do aparelho celular. Uma delas trincou um canto da tela. A máquina não deixou de funcionar, mas um dia escorregou do bolso e ficou numa posição no banco do carro - e deflagrou. O peso do corpo estilhaçou. Ao passar o dedo, um estilhaço furou a pele e uma gota de sangue adentrou ao sistema e espalhou. A tela fez lembrar o filme Inverno de Sangue em Veneza, com a lente sendo inundada pelo líquido vermelho. Virou coisa aterrorizante. Todas as pessoas conhecidas se assustaram ao notar a invasão dos glóbulos. Ninguém sabia que era o sangue do meu sangue. Alguns jogaram fora suas máquinas, mas as novas que compraram também eram invadidas assim que o chip era encaixado. Alguém quis sugerir reportagem ao Fantástico. Fiquei quieto. A origem daquilo era um segredo só meu. Troquei o vidro, coloquei uma proteção e passei um tempo tranquilo até o dia em que recebi um telefonema - junto com a mesma invasão. Tinha acontecido com um amigo. Gostei do que vi. Agora faço fotos pensando em como ficarão com tal filtro.

o jorro

De Nelson Capucho

não me xingue
                   não se zangue
                   é só o jorro
                   do meu sangue


Roberta Miranda São Tantas Coisas


segunda-feira, 2 de maio de 2016

Quarenta anos de maconha

Depois de quarenta anos de uso, a maconha lesa. Um fio de baba escorrendo no canto da boca pode ser um sinal. A fala arrastada, em ritmo de câmera lenta, outro. Ele estava com as duas características, além do fato de não achar que aquilo era vício. É da natureza, não faz mal, repetia enquanto enrolava mais um. Sua performance em números de cigarros fumados por dia estacionou nos trinta. Ele dava bola até para fazer cocô, ou seja, achava que sentiria melhor todo o processo - inclusive o cheiro. Acendia o primeiro ainda na cama, para tornar o dia mais interessante. Depois, para tomar o café da manhã, escovar os dentes, etc. Até no banho tragava. O resto, todo maconheiro sabe como é. Não mandava pra dentro a cannabis para o sexo porque não fazia mais. Brochou completamente e achava que isso era um sinal dos deuses e o caminho para o Nirvana - não a banda de rock do suicida. Abobalhado, foi internado pela família porque não conseguia produzir mais nada, só dizer "É isso aí, sacou?" Não sacaram e não tinham mais saco para a coisa. Ele não recusou o internamento. Achou que dentro do hospital iria escrever uma versão atualizada do "Bicho de Sete Cabeças". Não deu tempo. Saiu da casinha antes e nunca mais da cama. 

Não discuto


de Paulo Leminski

não discuto
com  o destino
o que pintar
eu assino


Mario Zan Quarto Centenário


quarta-feira, 20 de abril de 2016

Estanhado

Estanhou os olhos... Será que ouvi, li ou sonhei com isso? Mas ao lembrar, olhei para o lado. A foto minha e dele é como dois seres externando mundos diferentes. Pelo olhar. O dele estanhou na hora que o diafragma da máquina se abriu para o registro na película? Deste instante em diante, sendo ou não isso, fiquei sob a mira. E gosto porque, no rosto vincado, fechado, não há raiva, não há delírio, nem estado possesso. Enquanto escrevo ele me olha e agora vejo alguém apenas fechado, mas passando o gostar represado que não conseguiu externar. Quase encostei meu rosto no dele para este momento de um passado que é presente e futuro. Sorri em contraste com a boca fechada ao meu lado, como uma carteira de dinheiro, igual àquela que ele não abria na minha frente quando precisava dar algum. Virava-se de costas, tirava a quantia e depois entregava - com o rosto desse jeito de sempre, os cantos da boca descendo um pouco no fim da linha traçada pela junção dos lábios. Agora procuro na memória uma situação com alguém de olho estanhado de verdade. E só encontrei a mim mesmo, olhando-me no espelho antes de o metal derreter e produzir lágrimas. 

A lua no cinema

De Paulo Leminski

A lua foi ao cinema,
passava um filme engraçado,
a história de uma estrela
que não tinha namorado.
Não tinha porque era apenas
uma estrela bem pequena,
dessas que, quando apagam,
ninguém vai dizer, que pena!
Era uma estrela sozinha,
ninguém olhava pra ela,
e toda a luz que ela tinha
cabia numa janela.
A lua ficou tão triste
com aquela história de amor
que até hoje a lua insiste:
— Amanheça, por favor!

Jamelão Exemplo


terça-feira, 19 de abril de 2016

Sequelados

O encontro dos sequelados aconteceu numa rua escura do bairro suburbano. Os "normais" estavam escondidos em suas casas/tocas. Os estropiados da vida se conheciam por dores adquiridas sem que pedissem. Dores impostas. Dores enfiadas pela alma sem o menor constrangimento, sem dó. Por outros sequelados que as receberam de outros - e assim sucessivamente até chegar ao peixe. Aquele que saiu das águas profundas e nunca entrou na Arca de Noé. Aquele que se arrastou pelas lavas dos vulcões e criou pernas, pulmão, coração e, maldita hora, alma e mente. Milhões de anos depois o que ele veio a ser pescou o que ele era. E cortou fundo, mantendo o corpo, deixando a carne exposta para que o sal da terra penetrasse fundo. No encontro dos sequelados foi alguém quem contou essa história. Várias risadas ecoaram na noite. Alegres umas, de escárnio outras. O silêncio era apenas de um ser presente. O que provocou tudo chegou perto. Fez um carinho no rosto. Juntaram sequelas. As feridas se fundiram. Houve paz naquela madrugada.

dragão

De Marcos Prado

dragão
faço do teu nariz
tomada
do teu bafo
gasogênio
da tua bosta mole
metano
qual foi
o seu trabalho
neste mundo
javali fêmea?
onde estão os seus méritos?
fritando alguém?
refogando algo?
ensebando quem?

Evinha Cantiga por Luciana


segunda-feira, 18 de abril de 2016

Asdfg

Enquanto ele tomava perfume eu torcia para ficar doente e ganhar uma garrafa  de guaraná champagne antártica. Com três anos aprendeu a ler e escrever sozinho. Aos oito, na dor do abandono, encontrou a literatura porque tinha o dom de escrever. Três anos depois, um conto que tem cheiro, fotografia, alma, vida, sol, luz, cores, seres humanos em cenas tão perto do real e nos descaminhos da incerteza, que... Asdfg, minha professora de datilografia se esforçava, mas eu não queria trabalhar como escriturário em banco. Não pensei nisso, nem que, tempos depois, quando a sangue frio o meu amigo lá do norte do mapa se tornava um astro da literatura e do jornalismo, fundindo tudo, aquele treino nas máquinas empoeiradas me fariam falta para... relatar histórias apreendidas em conversas, olhares, bebendo no caldo do que já tinha lido por aqui, no sul do mundo. Trumam Capote no filme de assassinatos misteriosos. Ele inchado, acabado, a imagem oposta do menino bonito que demorou para revelar que queria ser menina, porque, pasmem!, tinha vergonha, apesar do homossexualismo mais que escancarado. Agora as histórias primeiras dele aqui ao lado. Não bebi perfume, mas água de valeta, um drink de boteco centenário. Ele morreu. Eu não. Ele é farol. Eu nado em águas turbulentas batucando as letrinhas da mão esquerda com os cinco dedos. Não é igual, mas é o que me cabe.

sem cura

De Paulo Leminski

Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura

Nilo Amaro e Seus Cantores de Ébano e Uirapuru


quinta-feira, 14 de abril de 2016

Se o Corpo Abandonar Minha Alma

    De Marcos Prado  
           
      se o corpo abandonar minha alma 
      não tenha de mim uma idéia falsa 
      não chore,mantenha a calma 
      estou morto por minha causa cuidado:assim como sua mala 
      o meu caixão não terá alça 

Armandinho, Yamandu Costa Assanhado


Cacos

Cacos de vidro são bonitos. Olhem! Estes que estão em cima dos muros, multicoloridos, pontiagudos. Esperem a hora da contraluz e não há problema se vier uma sensação de admiração, de êxtase. Um caco de vidro conhecido é aquele da garrafa quebrada no balcão, com alguém a segurando pelo gargalo e ameaçando o outro - no filme de faroeste, no de gangues ou no de uma mulher querendo acabar com a vida do canalha. Um maluco comendo caco de vidro pode ser interessante se ele não começar a verter sangue pelos buracos de cima ou de baixo. Se sair com a mão estendida pedindo uns trocados e com um sorriso nos lábios, imaginando o que a gente vai ficar imaginando o que acontece com aquele vidro dentro dele. Enfiei a mão num caco de vidro porque me encantei demais. Era sem cor. No delírio da dor imaginei alguém pedindo loira gelada casco claro. Foram-se alguns nervos. Não vejo mais a palma dilacerada. Tudo se fechou, como uma concha. Os dedos secaram e ficaram grudados para sempre. Cacos de vidros são lindos, mas há perigo na beleza. Vai ver que é isso.

quarta-feira, 13 de abril de 2016

Cabeça de Buda

Tenho uma cabeça de Buda aqui na minha mesa. Ela é formada por plaquinhas transparentes. Dentro tem uma lâmpada amarela e um fio que sai dali. Dificilmente acendo a cabeça, mas hoje resolvi fazer isso e colocá-la na janela do escritório que dá de frente para a rua. Fiquei pensando merda, meu exercício favorito para depois escrever coisas ditas sérias, e esqueci o Buda. Quando me toquei tinha uma multidão aglomerada no portão. Estavam em transe. Como eu sei? Desci lá e ninguém notou nem quando o motor do portão automático foi acionado. Olhavam na direção da cabeça e ninguém piscava. Olhei também. Aí não vi a cabeça. Melhor, vi a cabeça e o corpo inteiro flutuando e iluminado por dentro. Não conseguia mais me mexer, mas aquilo me deu uma paz nunca conseguida nem depois do gozo. Foi então que o caminhão do lixeiro passou com a algazarra de sempre. Não havia mais ninguém ali. Olhei de novo para a minha janela. A cabeça estava lá, mas apagada. Subi, tirei a lâmpada de dentro. Tinha queimado.

Amei em cheio

De Paulo Leminski

Amei em cheio
meio amei-o
meio não amei-o


Jair Rodrigues A Majestade o Sabiá


terça-feira, 12 de abril de 2016

Eu

Eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu  eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu eu não.

no escuro

De Sérgio Rubens Sossélla

no escuro
os livros são outros


segunda-feira, 11 de abril de 2016

A revolução no cabo da brocha

Seu sonho era ser pintor. Conseguiu. Pintor de parede razoável, um dia recebeu a encomenda de lambuzar o muro da casa do padre. Um milagre em sua cabeça aconteceu. Passou a falar para todo mundo que era restaurador de prédios tombados pelo patrimônio histórico. Alguém desconfiou e foi verificar sua história. Não conhecia o pai. A mãe foi criada em casa mal falada durante a exuberância do ciclo do café. Ele enveredou pela política para enterrar o passado, mas apenas seguiu o que os outros falavam. Se entusiasmou com as revoluções, qualquer uma, desde que se fuzilassem, saqueassem e roubassem em nome dos fracos e oprimidos. Ditaduras só haviam de um tipo, a do lado direito de quem enxerga estrabicamente. O tempo passou, mas ele não. Continuou pintando e caiando paredes e idolatrando malucos que batiam no peito com uma mão e roubavam os cofres públicos com a outra. Tudo justificável. Até o dia em que, já com idade avançada, despencou da escada e foi penetrado pelo cabo de uma brocha que o esperava embaixo. Levado ao hospital, foi submetido a uma cirurgia que o deixou folé para sempre. O que enfermeiros e médicos não entenderam é que antes, durante e depois da cirurgia, o paciente balbuciava: "Viva a revolução! Viva a revolução!"

Roberto Menescal O Barquinho


quinta-feira, 7 de abril de 2016

Amor

De Paulo Leminski

Amor, então, 
também, acaba? 
Não, que eu saiba. 
O que eu sei 
é que se transforma 
numa matéria-prima 
que a vida se encarrega 
de transformar em raiva. 
Ou em rima.

Roberta Sá Pavilhão de Espelhos


Penico

Sempre quis fazer uma coleção de penicos, mas a reação contrária foi grande. Imaginava colocá-los na sala de visitas, um ao lado do outro, em cima de madeira nobre, escura, para realçar cores e formas. Tem gente que nem sabe o que é um penico, artigo de primeira necessidade quando a modernidade dos banheiros dentro das casas ainda não tinha afetado a cultura brasileira. Para quem fazia no mato, por exemplo, um penico embaixo da cama seria a mesma coisa que um computador que atendesse nossas ordens faladas. Um dia li uma definição maravilhosa em jornal satírico dando conta do tal bolo fecal. Poético. Nunca mais esqueci, assim como aquele conto do Rubem Fonseca onde a paixão renasce num casal quando o marido vê, pela primeira vez, o que foi produzido pela mulher num banheiro químico no meio de uma excursão no deserto. Se isso acontecesse dentro da moldura de um penico, o texto se tornaria um clássico da literatura mundial - e o escritor certamente ganharia um Nobel. Alguém já disse que sou escatológico. Gosto da palavra. Prestem atenção na sonoridade. Um dia conversava com um amigo sobre estes temas e ele disse que talvez eu estivesse contaminado. Estranhei. Pediu que saíssemos à rua. A noite estava linda, céu sem nuvens, e ele apontou para uma direção. Dissertou então sobre a Via Láctea - e arrematou que ela era puro coliforme.

quarta-feira, 6 de abril de 2016

Rabo de palha

Fez tuiiiiiimmmmmmmm. Eu tinha visto a foto do Coice de Mula, mas isso é sopa no mel. Ficar olhando uma imagem e comentando com amigos. Agora, não, o que acabei de levar foi um tapa de mão aberta no ouvido esquerdo e, além do zumbido, a dor lancinante porque meu aparelho de surdez deve ter entrado até o cérebro. Senti o líquido escorrendo por um dos sete buracos da minha cabeça - e não podia fazer nada. Estava algemado, sentado numa cadeira e num lugar que parecia uma oficina abandonada da periferia. Quem me bateu parecia não ter alma, só ossos, músculos, olhos frios. Eu não sabia porque estava ali. Nem ele. Mostrou um papel dizendo que queria a verdade. Sobre o que? Não dizia. Aí aconteceu. Ele foi até um carro, abriu o porta-malas e trouxe um feixe de palha. Amarrou na minha cintura, por cima da bunda, como se fosse um rabo. Depois voltou ao veículo, retornou com lenha, montou uma fogueira, jogou álcool, ateou fogo, esperou um pouco e deu a ordem: "Pule!". Olhei incrédulo. Tuimmmmmmmmmmmmm. A pancada agora foi do outro lado. Levantei, tomei uma distância e, mesmo com os braços presos, pulei. Ele então veio, deu uma olhada geral, me virou, tirou as algemas e mandou eu ir embora. Fui, mas com com medo de levar um tiro pelas costas. Ele então mandou que eu parasse e disse que aquela era a fogueira da verdade - e que eu fiquei livre porque meu rabo de palha não pegou fogo.

Sofrimento

De Dalton Trevisan

Muito sofredor ver moça bonita - e são tantas.

Moreira da Silva, Roberto Carlos Na Subida do Morro


terça-feira, 5 de abril de 2016

Flash Gordon veio me buscar

Ficou tudo vermelho, rosa, azul. Mas foi rápido demais. Quando escureceu é que clareou. Vi a nave do Flash Gordon porque olhei demais a antena de televisão que, amarrada a um fio, jogaram em cima do telhado da casa do vizinho. Um raio partiu de uma das hastes e ao atingir o objeto voador identificável este se transformou instantaneamente no Seaview, o submarino de Viagem ao Fundo do Mar. Não sei mais o que acontece comigo porque Lloyd Bridges, Errol Flyn, Jim das Selvas e o Coronel Limoeiro estão aqui na minha frente conversando baixinho. Minha boca está seca. Não sinto mais descargas elétricas nas têmporas. Alguém falou em lobotomia. Há uma cicatriz, sim, mas é no meu peito. Por favor, desliguem a televisão que eu quero...

não me bastaria

De Nelson Capucho


o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia

do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
                 dos dias

Zé Gonzaga


segunda-feira, 4 de abril de 2016

De misericórdia

Não tem poesia. É podre. Vielas com esgoto passando por baixo. Crianças buchudas, catarro escorrendo. Que chão de estrelas? Que história de viver pertinho do céu? As pernas quase não aguentaram a subida. Menino branquelo não tem problema naquele mundo. Mas alguns olhares furavam. Adolescentes e adultos sem camisa - secos. Mulheres gordas, calças e bermudas apertadas, banha caindo por cima da cintura. Quem me levava tinha me enganado. Disse que os parentes moravam no Rio de Janeiro. Não havia vista para o mar.  Do alto, onde chegamos, para onde se olhava, mais barracos amontoados. O sol queimava a pele. A primeira impressão jamais esquecida. Nada de traficantes e muito menos armas - apenas olhos vivos, como se estivessem atentos para o momento seguinte. Desci para nunca mais subir. Mas entrei - e depois acompanhei tudo, sempre, cujo resumo está em letra de música onde não há saída. Tiro de Misericórdia.

Parada cardíaca

De Paulo Leminski


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Carlos Galhardo, Roberto Carlos Fascinação


quinta-feira, 31 de março de 2016

Pedras

Fiz, sim - e agora, muitos anos depois, me encanto mais com aquilo. Recolhi pedras nas ruas do bairro, lavei-as e pintei-as de várias cores. Depois distribuí de presente para colegas do trabalho, numa daquelas festas de bebedeira. Amarrei em cada pedra uma cordão e, no bilhete que escrevi, pedi para que o presenteado se comprometesse a levar sua pedra para passear durante toda a vida. Aos 23 anos somos crianças lindas a cometer arroubos de toda espécie, imunes a pensamentos negativos, obstáculos. Provavelmente as pedras se perderam no tempo. Daqueles colegas ainda tenho contato raro com um, famoso, e não me atrevo a perguntar o que ele fez com ela. Lembro que era tímido ao ponto de ter dificuldade de falar ao telefone - mas, pelo menos, sob o efeito do chopp e da cachaça, os amigos demonstraram uma felicidade imensa com aquela manifestação. Era de carinho. Pelas pedras.

viver

De Paulo Leminski


viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície

Tete Spindola Escrito nas Estrelas


quarta-feira, 30 de março de 2016

Vesgo

É vesgo. Tem os dois olhos para dentro. Quando tirou os óculos escuros e vi, pensei logo que enxergava para dentro, para a própria alma. Aí entendi o porquê de tanta sensibilidade, as histórias todas contadas por amigos mais chegados e por ele mesmo. A melhor é a de que lembra quando nasceu porque já queria fazer um som na bacia onde lhe deram o primeiro banho. Foi lá num lugar de nome sonoro, Lagoa da Canoa - e aí veio a imagem da flauta feita com talo de mamona e o som no ar para encantamento e diálogo com os passarinhos. Vixe! O remelexo veio cantado anos depois, em palcos da Europa. Só isso: o remelexo. Até hoje ninguém falou das camisas mais que coloridas, largas, contrastando com o branco dos cabelos e da barba. Albino sim. Nordeste na tradução mais significativa e que chega ao máximo quando ele pega a oito baixos, Hering, e se faz Hermeto, o que me olhou de dentro por enxergar além. 

Nelson Cavaquinho Caminhando


terça-feira, 29 de março de 2016

imperativo da primavera

De Roberto Prado


humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

Sangue

Gosto de sangue e não sou vampiro. Sangue é vida. Sem ele, acabou. Os japas adoram ver o líquido esguichando da carótida cortada pela lâmina perfeita da espada samurai. Tenho coleção de filmes assim. Gosto de sangue limpo. Pode ser do porco furado antes de virar toucinho. Pode ser do pescoço depenado da galinha que me faz lembrar mamãe cortando e aparando na tigela o que a gente iria comer no dia seguinte junto com as outras partes destrinchadas. Drácula com os dentes e a boca manchados depois de dilacerar o pescoço branco da donzela. Que delícia! A carne crua nos churrascos... Sangue temperado com sal grosso, quem há de resistir? Repito, não sou vampiro e não tenho intenção de matar gente ou bicho para ver o lindo líquido escorrer. Mas gosto. Sangue. Vida.

Gal Costa, Zeca Baleiro Flor da Pele


segunda-feira, 28 de março de 2016

Linhas

E se a internet for deus? Apareceu assim apenas para que as pessoas registrem o que pensam. Que horror, não? Mas tem coisa muito boa. Hoje apareceu uma foto enviada lá da Alemanha, de uma cidadezinha perto da divisa com a Áustria – e eu sempre que penso no vilarejo vejo montanhas com manchas de neve. Pois a imagem entrou aqui e foi feita há mais de trinta anos. Um menino cabeludo está num quintal grande e gramado, ao lado de uma única árvore ali existente, e diante de uma torneira de onde sai uma mangueira na direção de quem fez a foto. A mangueira vai, faz uma curva fechada e volta para bem perto de onde está presa. Reconheci o menino. Meu irmão. E vi na frente dele o caminho que fez desde aquela época. Foi ao inferno, deu meia volta e retornou para ele mesmo. Premonição? Não. Uma foto que veio para encantar a tela e passar por cima da quantidade absurda de baboseiras escritas. Deus nas linhas tortas.

o sol

Por Marcos Prado
       
      o sol 
      do outro lado 
      da cidade parecia 
      iluminar 
      a china
      simples: 
      abri 
      a cortina

Elizeth Cardoso Naquela Mesa


quinta-feira, 24 de março de 2016

Recortes

Recortava revistas de decoração como se estivesse mobiliando, de verdade, a casa dos sonhos. No grande caderno também havia espaço para os projetos de residência do tipo que mais gostava. Linhas retas, pé direito alto, salas, quartos, banheiros, tudo com espaço suficiente para abrigar a grande família que ainda não tinha. Quinze anos. Embaixo dos recortes escrevia poemas e nele sempre o grande amor aparecia, como nos contos de fada, mas pilotando carro de luxo e um sorriso mais branco que o da propaganda da Kolynos. A mãe cansou de pedir para ela parar com aquilo, porque quem nasceu para valeta jamais chegaria à Costa Azul ou ao Caribe. Tudo o que ela via naquelas fotos se transformava em realidade para ela. Até sonhava com algumas coisas -  uma coifa em aço escovado e desenho moderno, por exemplo. Na escola conheceu um garoto tímido. Gostou. Se apaixonou. Fizeram sexo. Ela engravidou. Ele morava num cortiço. Colocaram uma cortina dividindo a sala para inventar um espaço onde cabia a cama do casal. A família dele era grande. Ela teve mais dois filhos naquele ambiente. O caderno ficou guardado. Ela chegou ao 22 anos parecendo uma mulher sofrida de 40. Mas continua sonhando. Um dia viu chegar o mordomo na beira da piscina. Ele trazia um suco. Ela bebeu, mas engasgou e acordou. Viu o sogro espiando numa fresta da cortina. Ficou com medo.

Agostinho dos Santos Estrada do Sol

quarta-feira, 23 de março de 2016

elo

De Paulo Leminski

amar é um elo
entre o azul
e o amarelo

Elis Regina Atrás da Porta


Para a guerra

Só a preparação para a guerra é que garante a paz. Alguém me falou um dia essa frase que estava pintada na parede de um quartel onde serviu. Mas contou também que, maluquete, uma vez fez uma foto onde ele mesmo aparecia todo relaxado embaixo das palavras. Foi há muito tempo, hoje ele é um velho que gosta de rir muito, mas relata a história em tom de voz baixinho, ainda com medo de pegar uma cana, que era o que aconteceria se o flagrassem assim naquele tempo em que os militares mandavam no país. Só a preparação para a guerra. Lembrei disso porque hoje o país está como uma panela de pressão pronta para se transformar em alguma coisa ruim. Dois grupos distintos se xingam, ameaçam, enquanto os senhores parlamentares e donos atuais do poder estão perdidos e fazem qualquer coisa para permanecer ou tomar o controle. Será que estão preparados para a guerra? Não, não estão. Esse é o medo - e não há paz enquanto ficam assim, neste martírio de incertezas.

terça-feira, 22 de março de 2016

Ayahuasca

Tomei o chá e fiquei me olhando. De fora pra dentro e de dentro pra fora. Ayahuasca. Entrei no ritual por curiosidade. Logo que bebi o líquido, parecido com suco de goiaba, mas com um gosto que dá vontade de vomitar, o que pareceu foi como estar na nave de 2001, Uma Odisseia no Espaço, viajando pelo universo e as luzes riscando tudo e indicando uma velocidade espantosa. Eu ia, mas... para onde? Havia música na sala - o melhor do que já foi produzido no Nordeste. Sanfona, zabumba e triângulo como trilha sonora de uma loucura que não metia medo. Antes daquilo, as drogas alucinógenas estavam fora do cardápio, mesmo porque já tinha visto um amigo não retornar por causa de um ácido. Ali, não, mesmo eu me vendo de cima (do teto?) e me achando do bem, iluminado, havia uma segurança inexplicável. Foi aí que o líder que estava na cabeceira de uma mesa fez algo incrível: com uma palavra, todos os que estavam na sala retornaram ao estado que chamamos de normal. Nunca mais esqueci. Nunca mais voltei lá.

Estilo

De Dalton Trevisan

Quem lhe dera o estilo do suicida no último bilhete.

Djavan Samurai


segunda-feira, 21 de março de 2016

Dedão no gatilho

O grande mistério às vezes termina com um tiro que entra pelo céu da boca e arranca o tampo da cabeça, espalhando pedaços de cérebro com cheiro de pólvora. Não há dor, só para quem fica vivo e levando a vidinha de sempre, mesmo que seja um sucesso, rica, saudável, criativa, abastada, etc. Pra que? Nascer, foder, morrer - o resumo perfeito, mas que não explica o básico, o que alimenta depressões, fugas. Qual o sentido disso tudo a não ser alimentar charlatões de todas as crenças que, a preços módicos, conseguem iludir os imbecis com o que há depois do espelho, ou seja, a porta da esperança para quem a luz se apaga? Minha cano duplo está pronta para satisfazer o último desejo. O dedão da mão direita vai encerrar tudo como se estivesse desligando o abajur da sala. Pronto. Lá vou. Ih, falhou! Milagre! Deus existe e é bom! Vou tomar um copo de água. A vida é bela.

Nada me demove

De Paulo Leminski


nada me demove 
ainda vou ser 
o pai dos irmãos Karamazov 

A Cor do Som Beleza Pura


quinta-feira, 17 de março de 2016

Penúltima

De Marcos Prado
       
    Como posso agora estar alegre? 
    era de se esperar que eu desesperasse 
    talvez mais tarde eu desintegre 
    entre o penúltimo gole do último porre 
    e leve ao meu lado os que me seguem sim, 
    perdi a razão do que eu achava e do que eu acho, 
    mas aprendi que o céu é mais embaixo 
    ainda não sei o quanto dei 
    a tantas quantas amei 
    ainda não sei ao certo se eu errei 

Emilio Santiago Saigon


Sem pau

A turma se achava da pesada. Quase gangue. Treinavam dia e noite para o dia em que o pau fosse comer firme - não importa contra quem e em qualquer lugar. Esse papo surgiu certa vez quando, pra variar, saíram da academia de porrada e foram tomar muitas num boteco sórdido Sabe como é: muito treino e... quebrar alguém, nunca. O lero filosófico de treinar pancadaria para manter o equilíbrio era encarado como coisa de goiaba. Até que um dia aconteceu. Foram para um baile nas quebradas do mundaréu. Lá, um da turma, entusiasmado pelo balde de rabo-de-galo que tinha tomado, se engraçou com uma menina de olhos azuis da cor do mar. Ela estava com o namorado. Um mirrado, seco, que não gostou da paquera e engrossou. A tropa se reuniu e mandou ele chamar a turma, porque bater em um só seria covardia. O desafeto disse que não tinha turma e que só andava na companhia de uma coisa, além de Deus. Antes que os brigões dissessem alguma coisa, o baixinho mostrou: o globo que refletia luz fez brilhar a lâmina da larga navalha. Havia um desenho nela - e o cabo era de osso. Num piscar de olhos o espirro de gente tirou os sapatos, as meias, colocou a arma branca e fatal entre os dedos - e um rabo de arraia cortou o ar. Todos correram como nunca. O salão inteiro, aliás. Ficou o casal sozinho olhando aquilo. A menina, de voz doce e meiga, então disse: "Na hora em que o pau come, nem sempre quem tem pau fica". E riu apaixonada para o seu herói.

quarta-feira, 16 de março de 2016

Consolo

De Dalton Trevisan

Seu João, perdido de catarata negra nos dois olhos:
- Meu consolo que, em vez de nhá Biela, vejo uma nuvem.

Ratos do Porão Crise Geral


Quieto

Quando fui lá na cidade me disseram que havia uma convulsão social no Brasil. Não sei e tenho raiva de quem sabe o que é isso. Tomei minha cachaça na venda, comprei um pouco de mantimento e fiz minha égua agilizar o passo para voltar correndo para o meu sossego. Já fui da cidade. Jovem me meti em encrenca política - das grossas. Não sabia nada, mas dei tiro, assaltei banco, sequestrei gente e fui parar no meio do mato por causa da revolução. A do nosso lado era coisa de moleque sem tutano. A do lado deles era de quem não tinha o que fazer e achou um motivo para exercitar os músculos. Então era cinco contra cinquenta mil. Vi gente morrer. Vi gente aleijada por causa da tortura. Me escondi feito bicho. Nunca me pegaram. Consegui passar todo o tempo até que os ventos mudaram, mas tudo continuou igual para um pobre coitado como eu e os que eu conhecia. Achei um canto longe de tudo. Não escuto rádio, não vejo televisão, leio alguma coisa nos livros. Sozinho. Estou velho. Fiz o que tinha de fazer. Aprendi, então, a ficar quieto no meu canto. Sem incomodar ou ser incomodado.

terça-feira, 15 de março de 2016

Comida capitalista

O primeiro hamburger ninguém esquece. Saído do gueto da pobreza, naquele dia, adolescente, teve outra revelação: a vaca preta. Comeu, tomou e guardou a lembrança. Foi levado por um amigo que, pouco tempo depois, morreu afogado durante as férias escolares. Os dois faziam parte da seleção de voleibol do colégio e estavam no Centro da cidade grande para disputar uma partida válida pelo campeonato entre colégios públicos. Ali foi batizado pelo capitalismo gostoso e, anos mais tarde, transformou isso em algumas certezas. Por exemplo: a de nunca mais andar de ônibus e a de se hospedar apenas em hotéis de cinco estrelas em sua viagens a negócio ou turismo. Um dia descobriu que uma das empregadas tinha sentido a mesma coisa ao comer o primeiro hamburger da vida. Apesar das propagandas e de a comida ter virado febre de consumo do país há anos, ela disse que não conhecia a coisa. Então ele comprou várias caixas e deu de presente. No dia seguinte a mulher não apareceu. Ela e a família tinham ido para o pronto-socorro. Se intoxicaram de tanto comer. Ele, então, escondeu a a vaca pre

Se

De Paulo Leminski


se 
nem 
for 
terra 

se 
trans 
for 
mar 

Maysa Meu Mundo Caiu


segunda-feira, 14 de março de 2016

Rex

Eu tinha um cachorro que se chamava Rex. Era um vira-lata safado. Não precisa dar comida para ele. Ainda bem! Na casa dos pobres, alimentação era coisa rara para a família. Rex era craque em achar restos de boa qualidade. Educado, fuçava as latas, mas não virava o lixo. Rex era o rei da rua e das cadelas. Sempre o primeiro quando elas entravam no cio. Virava o bicho e botava pra correr os outros que queriam o privilégio. Um dia Rex parou de ir atrás das cachorras. A vizinhança toda achou que ele tinha brochado. Nada. Descobriu-se mais tarde que tinha se apaixonado pela galinha do vizinho - e transava com ela. A dona da penosa não quis saber da história. Matou a ave e jogou o corpo no lixo. Rex entrou em depressão. Ficava largado num canto, olhar perdido. Até que um dia ele viu uma boneca loira da filha de uma outra vizinha. Ficou todo assanhado. No dia em que o flagraram fazendo amor com a boneca, resolveram levar Rex para bem longe dali. Parece que a última vez que o viram foi paquerando um porco-espinho - mas isso é fofoca das grandes.

pão feito em casa

De Paulo Leminski

Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga

ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa 
porque não quer
não porque não tem asa

Trio Esperança Filme Triste


quinta-feira, 10 de março de 2016

certo errado

De Sergio Rubens Sossélla

até parece o poema certo
no lugar errado


Trio Nordestino


Aqui de cima

Daqui de cima o silêncio é perfeito. As cidades parecem amebas amestradas, com veículos em forma de vírus correndo por sua artérias. Há o mar e os rios, mas o cheiro de podre e os dejetos que o bicho homem joga neles não chegam aqui. Restam as montanhas, um pouco de mata nativa, muitas plantações regadas a herbicidas, mas isso não me interessa. Faz tempo que fico observando tudo como se estivesse me limpando do que me atacou aí embaixo. Claro que me chamaram de louco, pancada, esquizo – porque não parava de gritar contra a barbárie da destruição constante. Um dia me penduraram numa árvore. Pelo pescoço. Confesso que não senti nada porque me considerava um morto em meio a tantos vivaldinos. Morri? Não sei. Veio a escuridão e ao acordar estava instalado numa nuvem enorme e que toma várias formas na trajetória inconstante que faz. Estou sozinho, mas finalmente faço chover. Na minha vida na terra eu só chovia no molhado, como diz um ditado popular de lá. Sou um anjo, mas não se preocupem: vingador só quando lembro de alguém que, mesmo para os escrotos que estão bem longe daqui, fez maldade além do normal.

quarta-feira, 9 de março de 2016

na lua

De Helena Kolody

Não ando na rua.
Ando no mundo da lua,
falando às estrelas.

Tiro no peito

O tiro foi certeiro, apesar de a lente da mira telescópica estar empoeirada. O bicho medonho e perigoso não parava de saltar entre os galhos da árvore centenária. Às vezes descia ao chão e, de repente, estava num lugar que eu conhecia, na vila. Aí ele voltava. A arma apareceu não sei como em minhas mãos. Pelo peso, estava carregada. Um chumbinho destes de armas de pressão. O que está acontecendo? Agora o animal foi para a rua de terra, do lado da calçada onde havia casas e em frente a um grande terreno baldio. Parou por um instante, o decisivo, o do aperto no gatilho. Ele caiu imediatamente - mas como num filme de Sam Peckinpah (Meu Ódio Será Sua Herança), vi em câmera lenta o pequeno buraco se abrir no peito, um fio de sangue a escorrer. O que está fazendo meu filho mais velho aqui? Eu sou uma criança ou um velho? Ele foi lá e descobriu que o bicho não tinha nada de perigoso. Era um pequeno macaco, já de idade. Deus!! O que é que eu fiz? Mandei o garoto levar o animal inerte para o terreno em frente, onde alguns arbustos poderiam escondê-lo. De que? A angústia se instalou na garganta. Matei! Matei! Olhei então a porta do quarto que estava aberta. Uma luz que vinha do fim do corredor sinalizou que estava na hora de sair da cama. Pulei. Feliz. Fiz o café. Tomei. Mas a imagem do rosto do morto e o buraco com sangue no peito não saiu mais da lembrança neste dia.

Paulo Bellinati Lamentos do Morro


segunda-feira, 7 de março de 2016

No circo

No circo mambembe das minhas lembranças eu não vi o Globo da Morte, mas Tonico e Tinoco cantaram sob um lona toda remendada. Estava montado num terreno baldio, chão de terra batida, arquibancada de madeira velha, cadeiras rangendo na frente do picadeiro. Não havia bichos, talvez um domador de pulgas, um mágico furreca e uma trapezista com belas ancas, uma boca muito vermelha, além do maiô branco com miçangas brilhantes. O circo ficou pendurado na minha mente e quanto mais o tempo passa ele vai modificando as formas e atrações, apesar de continuar pobre e Tonico e Tinoco nunca saírem de lá. Será que foram mesmo? Muitos anos depois encontrei um deles depois de um show e, claro, perguntei se tinha cantado naquela vila. Ele disse que sim - e eu acreditei mesmo, porque, tenho certeza, depois disso o cantor passou a pensar no local e me viu lá, perto da lona, com os olhos vidrados e o coração amolecido ao ouvir Tristeza do Jeca.

Poetas velhos

De Paulo Leminski

Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.

Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.

Itamar Assunção Prezadíssimos Ouvintes


quinta-feira, 3 de março de 2016

pergunte ao sapo

De Paulo Leminski

noite alta    lua baixa
pergunte ao sapo
o que ele coaxa

Milton Nascimento Travessia


Buraco negro

Acordou e viu que no caderno que mantinha ao lado da cabeceira da cama estava escrito algo novo. "A vida que o homem tem hoje é um enorme buraco negro. E sabemos o que há nele: o nada". Estava assim, entre aspas, para ler como se alguém falasse o tempo todo, infinitamente. Tentou lembrar se tinha acordado no meio da noite ou sonhado com algo parecido. Morava sozinho, sem bicho. No trigésimo andar de um edifício feito para solitários como ele, onde o espaço maior de um apartamento englobava o quarto, que era sala e cozinha, e um banheiro minúsculo, não havia o autor ter sido outra pessoa. As letras em forma estavam bem desenhadas. Eram suas? Pensou muito a respeito disso. Só então notou que não havia a luz da cidade na janela sem cortina, e que ele a do abajur estava apagada, assim como a do teto. Mas tinha lido a mensagem. Estava na escuridão e conseguia ver. Era um sonho? Era um pesadelo? Era o próprio buraco negro? Alguém bateu à porta. Foi abrir. A morte que apareceu no filme O Sétimo Selo estava ali. Disse que chegara a hora, mesmo porque a vida inteira dele tinha sido um fracasso. A foice baixou certeira. Ele não sentiu nada.

quarta-feira, 2 de março de 2016

O fim

Faço o difícil para me agradar. É difícil. Me pediram para visitar um psiquiatra. Não vou. Ninguém pode me entender ou reescrever meu script de vida. Tenho dinheiro. Muito. Mas não gosto. Já morei nos lugares mais chiques e nos mais isolados. Nunca fiquei contente. Quando me falam que sou depressivo, tenho vontade de sacar minha PPK de ouro e dar um teco no meio dos cornos do falastrão. Sou feliz, mas não acho isso. Não sinto agonia em viver, nem fico encostado ou deitado. Mas algo sempre me diz, ou seja, ali dentro da cabeça, que não consegui o que seria o máximo para mim. Casei há muito tempo com uma santa, tenho filhos, eles me enchem de alegria... mas falta algo. Um dia dei a volta ao mundo num veleiro. Sozinho. Já voei de balão sobre o Kilimanjaro. Tenho mais de cinquenta anos e, num dia normal, sem querer, pensei na morte. Descobri que talvez fosse isso: o medo do fim, que pode ser agora.

Na praia

De Nelson Capucho


Anoitece na praia.
Tudo é vasto; o mundo, os astros:
museu de infinito.

Cacabulho Forró em Limoeiro


terça-feira, 1 de março de 2016

Objeto

De Paulo Leminski


de meu mais desesperado desejo
não seja aquilo
por quem ardo e não vejo

seja estrela que me beija
oriente que me reja
azul amor beleza

faça qualquer coisa
mas pelo amor de deus
ou de nós dois

Amor do cão

Alguém disse que amor de cachorro é o mais puro. Talvez por isso ele sempre teve ciúme dos que cruzaram sua vida. Se sentia pior que os animais, mesmo aqueles que, por costume na pobreza, ficavam presos numa corrente engatada num arame que corria rente ao muro. Uma vez viu um ser sacrificado de uma forma muito cruel. Sem sabe o que fazer e ao ver o doente agonizando sem morrer ao lado da cova, começou a gritar para ele partir, como se isso fosse possível. A cena nunca lhe saiu da cabeça, assim como a do cão do vizinho que amanheceu enforcado porque atacava negros na rua. Mais velho, tratava os que estavam mais próximos com a dureza dos que não querem se entregar àqueles olhares sinceros e pidões. Não era violento, mas implicante. Não queria que ficassem dentro da casa, mas eles ficavam e faziam tudo para conquistá-lo. De uma senhora dona de um de pelos preto e branco, ouviu que a cadela gostou dele ao primeiro contato. Porque eles são assim. Resistiu - mas sempre que via carrinheiros com seus companheiros inseparáveis, se imaginava empurrando um daqueles veículos com a princesa em cima, olhando a plebe ignara do alto de sua vitória. Não aconteceu isso. Não aconteceu nada. Ela foi embora por doença. Ele ficou remoendo, mas fazendo esforço para não demonstrar. Naquele dia se enfiou embaixo das cobertas. A casa estava mais do que vazia.

Amelinha Foi Deus quem fez Você