Sem Natal
Sem Ano Novo
Sem nada
quinta-feira, 24 de dezembro de 2015
quarta-feira, 23 de dezembro de 2015
Bem no fundo
De Paulo Leminski
No fundo, no fundo,
bem lá no fundo,
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a gente gostaria
de ver nossos problemas
resolvidos por decreto
a partir desta data,
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
aquela mágoa sem remédio
é considerada nula
e sobre ela — silêncio perpétuo
extinto por lei todo o remorso,
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
maldito seja quem olhar pra trás,
lá pra trás não há nada,
e nada mais
mas problemas não se resolvem,
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
problemas têm família grande,
e aos domingos
saem todos a passear
o problema, sua senhora
e outros pequenos probleminhas.
Matei Papai Noel
Matei Papai Noel antes de ele nascer. Na verdade, quem matou foi meu pai, porque lá em casa não tinha disso não. Eu confundia tudo porque algumas crianças do cortiço me falavam que iam colocar meias nas janelas, que o velhinho descia pela chaminé com os presentes, etc. Não havia meias e muito menos chaminé naquele muquifo que fedia a repolho azedo e onde o esgoto atravessava o quintal num corguinho. Só soube o que era ceia muito tempo depois. A figura eu via de vez em quando. Aquele calor do cão e ele lá com a barba enorme, a roupa vermelha de feltro, um saco pendurado nas costas. Inocente, pensava com as duas mãos nos bolsos da calça curta: mas que porra é essa? Sim, falava palavrão porque assim era e assim sempre foi lá em casa. Quando revelaram a jogada, fiquei puto: o mundo está perdido porque começam a mentir logo cedo para as criancinhas ainda puras. Agradeci meu pai por ele não ter se inventado Papai Noel. Nunca me deu um presente, mas me deu a vida, junto com minha mãe - e segurou a barra enquanto pode. Um dia, já adulto, perguntei de que forma ele tinha matado o velhinho. Ele arregalou os olhos azuis e não respondeu nada, porque aquilo era língua estranha. Acho que foram os antepassados dele que fizeram o serviço. Muito bem feito, aliás. Coisa que recomendo aos que estão aí vendo o barbudo como garoto propaganda alucinado do consumismo ensandecido de agora. Sobre as renas que puxavam o trenó desde a casa do cacete, até hoje tenho dúvidas se elas dariam um bom churrasco ou não. Lá no cortiço, se aparecessem, todo mundo ia esquecer a enganação dos presentes. Não ia sobrar nem os olhos - só as galhas, para enfeite.
terça-feira, 22 de dezembro de 2015
Geladas
A água saía do poço, gelada, passava de um balde para o outro - e eu carregava com dificuldade para o banheiro minúsculo, duas mãos agarradas na alça, corpo retesado para não arrastar no chão. No cubículo, pés no cimento queimado e frio, privada que ocupava quase todo o espaço, porta de tábuas entre as quais as frestas permitiam ver se alguém queria me espiar pelado. Não pensava nisso. Pegava uma caneca feita com sobras de lata de óleo, enfiava dentro do balde e ficava ali parado com ela na mão direita sem coragem despejar o conteúdo cabeça abaixo. Até que vinha o momento da decisão e... O sabonete era esfregado rapidinho, em todas as partes do corpo. Olhos fechados e novas canecadas com muitos arrepios. No frio era assim também. E na vila fazia frio! Depois vinha a sensação boa, tudo enxugado, corpo limpo, sangue pulsando. Até hoje o banho continua assim, frio, apesar do conforto das duchas e do aquecimento a gás. Me faz sentir vivo - e disposto para enfrentar as geladas da vida.
Aprendizado
De Paulo Leminski
Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.
Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.
segunda-feira, 21 de dezembro de 2015
Mensagem da brisa
A tristeza veio com o cansaço e uma brisa no início da noite. Ele estacionou o carro, saiu, apertou o controle, ouviu o barulho dos vidros fechando automaticamente, subiu a rampa que o levou ao supermercado e, ao olhar aquele mundo de produtos, estancou. O que fazia ali, se não tinha nada para comprar? Começou a andar pelos corredores, olhando produtos e pessoas, pessoas e produtos. Qual o sentido de um carrinho abarrotado de garrafas de vinagre e um senhor de rosto acabado pelo tempo empurrando-o? Passou pelo longo corredor das bebidas e lembrou de pessoas que morreram por ter a doença e não conseguir controlá-la. Droga lícita é uma rótulo. Droga ilícita outro. As duas matam quem entra no universo paralelo. Foi ao caixa. Uma senhora discute sobre centavos. A menina que a atende pacientemente é jovem, negra, cabelos esticados e batom vermelho nos lábios. Os olhos são grandes. Ele não tem nada nas mãos. Para diante do caixa, tira do bolso do casaco um maço de notas de cem enroladas e presas por um elástico - e entrega para ela. Presente de Natal, diz. Não espera resposta. Sai, entra no carro, liga o rádio, e enquanto ouve uma música qualquer, começa a chorar.
sexta-feira, 18 de dezembro de 2015
quinta-feira, 17 de dezembro de 2015
O barco
O calor infernal naquele muquifo na praia estranha me fez sair para dar uma volta. Os urubus tinham se alimentado bem das sobras de peixe jogadas pelos pescadores. Era fim de tarde. Eu não tinha me drogado. A última vez que tinha fumado um fazia trinta anos. Virei careta radical no dia em que vi um anjo fazendo sexo com o cramulhão. Início da noite. Numa janela, a luz de uma televisão e a voz de um ator paspalho gritando e atravessando o vidro. Todos gritam na tv, como se ela não tivesse um de um controle para aumentar o som. A rua era de terra e ficava paralela à areia da praia. Entre elas, algumas casas pobres. De repente, um corredor, uma luz verde iluminando-o, um barco emborcado encostado num muro, e lá na frente o mar e a faixa violeta com nuvens negras. Era um delírio - e não era. Pensei em algo que, mais tarde, escrevi. E veio tudo como se eu tivesse registrado num computador de bordo. Não tenho memória. Ela foi prejudicada pelo fedido e por muitas outras drogas, principalmente o assassino de neurônios, o álcool. Fiquei parado ali um tempo indeterminado. Voltei, registrei no papel e carrego comigo o que veio, mesmo sem saber por que. É isso:
o barco não chega ao mar pela força dos pescadores
eles são os outros
o barco só chega lá pelas próprias forças
e é ele que tem de descobrir isso
veja que está cercado por duas paredes, mas não encaixotado
ele não sabe o que o espera
mas está parado porque cria o que está por vir
se deslizar, vai entrar neste mundo maravilhoso e emocionante
aqui pintado por deus
e vai navegar como na música
porque quem vai navegá-lo é o mar
assim é a vida
o barco não chega ao mar pela força dos pescadores
eles são os outros
o barco só chega lá pelas próprias forças
e é ele que tem de descobrir isso
veja que está cercado por duas paredes, mas não encaixotado
ele não sabe o que o espera
mas está parado porque cria o que está por vir
se deslizar, vai entrar neste mundo maravilhoso e emocionante
aqui pintado por deus
e vai navegar como na música
porque quem vai navegá-lo é o mar
assim é a vida
quarta-feira, 16 de dezembro de 2015
Parada cardíaca
De Paulo Leminski
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
Tralha
Malandro forgô pra cima de mim. Fiquei na minha porque nunca fui de treta - mas isso incentivou o nóia. Enquanto ele falava merda, fiquei quieto, parado, ali. Conhecia o gajo, mas nunca dei chance dele chegar perto, seja para uma parada arriscada, uma rodada de cerveja ou uns tiros de farinha no prato aquecido. Aí ele cometeu o erro de encostar a mão no meu peito. O relê colou na hora, o bisturi saiu de dentro da manga e o corte na carótida foi rápido e cirúrgico. Saí tranquilo enquanto ouvia a gritaria do acode, como se isso adiantasse. Ninguém veio atrás de mim, porque sabem onde mora o perigo. Os amigos dele talvez um dia arrisquem algo, mas só se me pegarem desprevenido - o que é muito raro. Restava o mocó, o meu. Mais difícil de achar do que a caverna do Batman. Nem os ratos chegaram lá. Ali guardo tudo, inclusive um diário onde escrevo desde o dia em que apaguei o primeiro, aos 10 anos de idade. A casa que me protege é de família tradicional e sossegada. Não estou no porão ou sótão, apesar de ser louquinho. Sou o lado de lá de uma estante abarrotada de livros. Entro por uma outra casa, do lado oposto da rua. Chego ao meu muquifo por um túnel que tem as marcas de uma fuga antiga de delegacia. Comigo, só tralha, tralhafernalha. Eu gosto. Me basta.
terça-feira, 15 de dezembro de 2015
Tibungou!
Tibungou! Antes já tinha visto os olhos de Peter O'toole pregado na cruz e percorrido todo o deserto filmado por David Lean - mas sem achar Lawrence para perguntar como era mesmo aquele negócio de ele ter gostado de matar depois do primeiro teco que deu num figurante. Tibungou! Meu cenário era o descampado do Nordeste brasileiro de miolo mole, onde o mato virou gado, que comeu o pasto, e que secou o céu cantado pelo Cego Aderaldo na poesia de Zé Limeira. Pensei então naquela de transformar bosta em dinheiro para pobre enricar. Tibungou! Há dias confundia tudo porque antes uns cabras contratados chegaram para me furar o bucho, cortar as orelhas e levar para quem encomendou. Resolveram não se sujar de sangue. Me amarraram no meio do nada para morrer de sede e ser comido pelos bichos. Urubu peneirou no ar e desceu antes do fedor da carniça. Bicou no pulso, tirou a corda, agradeci e saí com a a boca seca, quase cego e rezando para qualquer santo, porque não lembrava nem mais de Padre Cícero. Tibungou! Os olhos azuis me guiaram. Até chegar a um delírio que não era oásis, porque naquelas bandas nem conhecem a palavra e significado. Era uma poça de água barrenta, mas ao encostar a ponta do dedo indicador na superfície, ressuscitei, porque fria. Havia o fundo de um pote de barro ali perto. Peguei, enchi cautelosamente até quanto podia. Bebi. Fui ao céu para beijar O'toole e dizer que ele na cruz, em um outro filme, sem farda, piradão, tinha feito o milagre. Depois tibunguei, tibunguei, tibunguei - e de areia virei barro e a mão do divino me transformou em sobrevivente.
segunda-feira, 14 de dezembro de 2015
Reconstrução
Só notou a passagem do tempo quando voltou aos lugares onde morou. Nunca tinha saído daquela cidade, mas teve casas em alguns cantos. Uma delas de madeira, com pomar nos fundos e um imenso quintal gramado na frente e apenas uma árvore reinando sobre o espaço; teve um porão, um sobrado, um barraco de fundos, uma que construiu do projeto de um estudante de arquitetura. Quando saía, ele não voltava mais para os locais onde elas estavam. Era instintivo, não fazia nada pensado. Passadas algumas décadas, de uma hora para outra, por compromissos profissionais ou sociais, foi passando naqueles lugares da trajetória da vida. A casa de madeira tinha desaparecido embaixo de uma outra, tipo caixote feio; o porão sumiu assim como todo o prédio acima; o sobrado e o barraco continuavam lá, mas pintados com cores berrantes, assim como a casa do arquiteto, que perdeu as formas, as chaminés, foi emendada a uma outra coisa que a deformou - e ficou azul de ferir os olhos. No entorno destes lugares, a cidade era outra, barulhenta, com comércio e tudo que foi se acumulando nos anos de invasão. Ele então lembrou outro abrigo, no campo, nos arredores da metrópole. Foi lá. Encontrou apenas algumas paredes e ela praticamente toda destruída. Iam construir uma nova no local, aproveitando alguma coisa da antiga Ele não lamentou. Comparou com a própria vida, reconstruída a cada mudança.
quinta-feira, 10 de dezembro de 2015
Esquizonauta
De Ademir Assunção
Dias e dias. Brancos
Navalhosos
Essa loucura. Você
não aparece
Você
não desaparece
Corpo gasoso
emoldurado
sob a luz da luminária
Vai e vem
Esse rosto. Esse sorriso
Bárbaro
Essa loucura
Dias e dias. Brancos
Navalhosos
Essa loucura. Você
não aparece
Você
não desaparece
Corpo gasoso
emoldurado
sob a luz da luminária
Vai e vem
Esse rosto. Esse sorriso
Bárbaro
Essa loucura
Primeira comunhão
O diploma da primeira comunhão ele tinha guardado. anjo da guarda estava lá, cabelos compridos, bonito feito galã de cinema americano. Asas enormes, protegendo o casal de crianças num caminho dos sonhos. Muitos anos depois, adulto, descobriu o complemento. A mãe tinha guardado a vela comprida que ele segurou acesa na igreja da vila. Ela tinha quebrado, mas valia. O quê, ele não sabia. A foto feita depois num pequeno estúdio também estava guardada. Ajoelhado, olhar fixo naquela imagem em tamanho natural do senhor que lhe estendia a hóstia consagrada, paletó fornecido pelo japonês do clique, imagem retocada. Jesus Cristo lhe dando o passaporte para caminhar direto para o céu dali a um tempo que ninguém sabia. Só Deus. Não mastigue a hóstia de jeito nenhum! A recomendação era essa. Pode sair sangue. Ela grudou no céu da boca e demorou a dissolver. Pensava nisso tudo enquanto montava a Walter PPK que lhe permitia exercer há muito tempo a profissão. Matador profissional. Dali algumas horas tinha mais um serviço encomendado a cumprir. Fez tudo como sempre. Se aproximou há um bom tempo da vítima, ganhou confiança e, na hora, o tiro seria dado no meio da testa. Antes, cumpria o ritual de perguntar se o futuro defunto tinha feito primeira comunhão. Quando recebia um sim como resposta, não ficava com remorso. Quando era um não, continuava impassível - e dizia: "Azar o seu".
quarta-feira, 9 de dezembro de 2015
Estrelas, luz e escuridão
Tinha visto o céu mais estrelado do seu mundo em Porto Seguro, no tempo em que logo depois da cidade, até chegar ao Arraial, não havia uma casa sequer – e a noite era um breu só. Estava embriagado de tudo, principalmente pela vida que, de vez em quando, lhe parecia algo bom demais para ser verdade. Anos depois começou a pensar sobre aquele mar de estrelas no teto negro sem lua, com o barulho do mar a compor a epifania, e logo tudo foi apagado pela luz de uma janela que ficava esperando acender lá longe, toda vez que voltava do colégio à noite, na vila de um subúrbio da megalópole amontoada. Ali, imaginava, era o quarto da grande paixão do menino tímido. Ela também estava voltando das aulas, sabia. Quando aquele retângulo se iluminava, o coração era um só descompasso, a poesia doida dos pensamentos brotando em avalanches – e ele só se acalmava quando a escuridão voltava a tomar conta de tudo. Ela nunca soube disso. Ele nunca falou e também não soube se era mesmo ela quem o eletrificava ao iluminar aquele cômodo. Mas tinha certeza que sim – e isso se tornou uma verdade linda.
brilho da lâmpada
De Helena Kolody
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
O brilho da lâmpada,
no interior da morada,
empalidece as estrelas.
terça-feira, 8 de dezembro de 2015
erro
De Paulo Leminski
Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez
Nunca cometo o mesmo erro
duas vezes
já cometo duas três
quatro cinco seis
até esse erro aprender
que só o erro tem vez
Pardal
Matei muito pardal lá no tempo do Cantinflas. Nem precisa ouvir aquela história de que este passarinho é praga, rato com asas. A turma de calça curta saía em safari pelas ruas de terra da vila. Estilingues armados, balas de barro redondinhas, confeccionadas na véspera, secadas no sol. Raros tinham boa pontaria, mas os ruins de vez em quando acertavam o peito do bichinho - e faziam a festa. Depois, a gente comia os ratos, sem as penas. Espetados e assados em fogueira feita à noite no fundo do quintal de um dos caçadores. Um dia fui escolher uma forquilha nova. Na vizinha tinha um arbusto onde elas apareciam aos montes. Desta vez, contudo, prestei atenção nas flores amarelas que ali estavam. Um encantamento. Fiquei ali um tempo indeterminado. O mundo parou. De repente um passarinho pousou. Era pardal. Ficou parado me fitando com os olhinhos minúsculos. Nunca mais atirei num semelhante dele.
segunda-feira, 7 de dezembro de 2015
Música
Ela foi à feira de artesanato na praça principal da cidade. Lá ouviu o som da flauta e se encantou. Procurou a origem. O músico era belo, cabelos longos e encaracolados. Ela olhou para ele. Ele olhou para ela. Se apaixonaram na hora. Ele parou de tocar e pediu para ela acompanhá-lo. Ela não exitou. O percurso era curto. Ele abriu um portão de ferro, os dois atravessaram um corredor estreito e tudo se abriu para um casarão sombrio. Subiram para o quarto. Ele disse que precisava mostrar algo para ela - e apontou para um armário onde uma cortina substituía a porta. Ela chegou mais perto. Ele puxou o pano de uma vez. Havia dezenas, talvez centenas de imagens do Demônio. Os olhos dela brilharam. Ele voltou a tocar, agora uma música tétrica. Ela se virou com os olhos vermelhos e disse que também tinha uma surpresa. Pediu para ele abrir a porta do quarto. Ele abriu. Foi atacado por milhares de ratos esfomeados. Estavam também hipnotizados pela música.
sexta-feira, 4 de dezembro de 2015
quinta-feira, 3 de dezembro de 2015
Embrulho
Deve ser meio-dia. Estou aqui deitado numa calçada pertinho da esquina mais movimentada da cidade. O sol está forte, mas sinto frio. Um cobertor fedendo a mijo e a cachorro molhado cobre todo o meu corpo. Acordei há pouco com a tagarelice de duas mulheres que estavam perto dos meus pés descalços. Não tomo banho há muitos dias. Na noite passada fui a um mocó num casarão abandonado. Tenho amigos e amigas lá. Tomamos álcool puro e fumamos algumas pedrinhas. O tuimmmmmmmmmmm me alucinou. Sei que houve uma briga por causa de mulher. Igual no tempo em que eu era ser humano normal. Saí de lá correndo porque achei que vi uma faca com lâmina brilhando. Não quero morrer. Ou quero? Não sei mais. Vim aqui para minha esquina, peguei o cobertor que estava escondido, deitei sobre as pedras que não me machucam mais - e dormi. Acordei agora. Uma das mulheres disse que eu parecia um embrulho de pobre. Me ofendi. Sou apenas um embrulho.
quarta-feira, 2 de dezembro de 2015
Animais demais
Os gorilas mataram o jornalista. Enforcado. Inventaram um suicídio e divulgaram a foto. O menino não entendeu como alguém pode se enforcar sem estar pendurado numa árvore, como nos filmes de faroeste que via. A imagem era de alguém quase sentado no chão e o pescoço amarrado por um pano preso a uma grade de janela. Ele não entendia bem o que estava acontecendo, mas atravessou um bloqueio que fizeram no Centro da cidade grande para evitar que muita gente fosse à missa pela morte daquele que foi trucidado. Dias depois, sem querer, o menino entrou numa passeata desfeita a bombas, patas de cavalos e cassetetes. Aquilo o despertou. Lia as notícias e começou a entender que havia uma força enorme achando que uma força pequena fosse alterar o destino de um país continental, como diziam nas aulas de geografia. Mais tarde compreendeu que os dois lados estavam loucos - e que nenhum país acaba por isso. Os gorilas ficaram por muito tempo tomando conta do zoológico. Depois foram embora e outros bichos se apoderaram do comando. O menino já estava com cabelos grisalhos quando muitos daqueles que eram da força pequena chegaram onde os gorilas e os outros loucos chegaram - e também enlouqueceram. Ele então desistiu. Fez sua trouxa e foi para o mato, sem cachorro - porque de cachorrada já estava farto.
de repentes
De Roberto Prado
voos repentinos
poemas
tristes pétalas
desfaça as malas
belezas doem
se você quer
levá-las
voos repentinos
poemas
tristes pétalas
desfaça as malas
belezas doem
se você quer
levá-las
terça-feira, 1 de dezembro de 2015
Pernas no bar
Me veio assim com sonoridade, com imagem, algo muito forte, como só poderia ter saído da boca dele, aquele moleque das quebradas do mundaréu que João Antonio tão bem desenhou em nosso imaginário. Mas eu peguei pelas beiradas, frase enviada lá de longe, do meio do sertão - e aí misturou tudo, como é neste país desde sempre. Veio voando, veio de trem, veio de Fenemê, veio de canoa de tronco, veio a nado, veio no vento, veio sendo passada por todos os brasileiros que estão nas janelas nas beiras de estrada, veio. Quem falou primeiro já se foi e deixou a marca saída lá do Bexiga, bairro paulistano. Perdido numa noite suja, deve ter se inspirado quando tomando umas e outras num boteco daqueles, rabo de galo na mão, um olho embaixo de outra mesa. Aí ele pensou e, quem sabe, falou: "Destrancou meu coração ao descruzar as pernas". E isso foi por aí, até chegar aqui e, de novo, ir por aí. Plínio Marcos.
segunda-feira, 30 de novembro de 2015
CANTARES DE SULAMITA
De Dalton Trevisan
Cantar 1
Se você não me agarrar todinha
aqui agora mesmo
só me resta morrer
se não abrir minha blusa
violento e carinhoso
me sugar o biquinho dos seios
por certo hei de morrer
estou certa perdidamente certa
se não me der uns bofetões estalados
não morder meus lábios
não me xingar de puta
já hei de morrer
bata morda xingue por favor
morrerei querido morrerei
se você não deslizar a mão direita
sob a minha calcinha
murmurando gentilmente palavras porcas
sem dúvida hei de morrer
também certa a minha morte
se você não acariciar o meu púbis de Vênus
com o terceiro quirodáctilo
já caio morta de costas
defuntinha
toda morta de morte matada
morrerei gemendo chorando se você titilar
a pérola na concha bivalve
morrerei na fogueira aos gritos
se não o fizer
amado meu escuta
se você não me ninar com cafuné
me fungar no cangote
mordiscar as bochechas da nalga
me lamber o mindinho do pé esquerdo
juro que hei de morrer
certo é o meu fim
te peço te suplico
meu macho meu rei meu cafetão
eu faço tudo o que você mandar
até o que a putinha de rua tem vergonha
eu fico toda nua
de joelho descabelada na tua cama
eu fico bem rampeira
ao gazeio da tua flauta de mel
eu fico toda louca
aos golpes certeiros do teu ferrão de fogo
ereto duro mortal
oh meu santinho meu puto meu bem-querido
se você não me estuprar
agora agorinha mesmo
sem falta hei de morrer
se não me currar
em todas as posições indecentes
desde o cabelo até a unha do pé
taradão como só você
é certo que faleci me finei
todinha morta
se não me crucificar
entre beijos orgasmos tabefes
só me cabe morrer
minha morte é fatal
de sete mortes morrida
morrinha de amor é Sulamita
Aposentadoria
Trabalhou mais de quarenta anos e, como era relaxado, em alguns empregos fez acordo de boca e não contribuiu para a chamada previdência. Pensava que teria saúde e emprego toda a vida. Coisa de louco. Um dia se tocou - e foi atrás dos seus direitos, como falam. Sempre ganhou bem, mas ao contratar um especialista para levantar o histórico de contribuições e fazer projeções, descobriu que teria de camelar mais alguns anos, pagar uma fortuna para ter direito a uma aposentadoria - e que ela seria de um salário mínimo, ou seja, o que poderia gastar numa pequena viagem até o litoral do estado onde morava. Mesmo assim, ficou feliz. Porque recebia tanta notícia ruim e também tanto desprezo no meio onde exercia a profissão, que projetou seu futuro negro para logo ali adiante, ou seja, bem antes de poder receber os caraminguás. Estava ferrado e mal pago. Por isso imaginou que o dinheiro que um dia entraria na conta vinda dos cofres do governo federal daria, sim, para comprar uma boa dose de veneno de rato.
sábado, 28 de novembro de 2015
quinta-feira, 26 de novembro de 2015
caricatura
De Paulo Leminski
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
Leite, leitura
letras, literatura,
tudo o que passa,
tudo o que dura
tudo o que duramente passa
tudo o que passageiramente dura
tudo,tudo,tudo
não passa de caricatura
de você, minha amargura
de ver que viver não tem cura
Dois patinhos na lagoa
Vamos espalhar lindas pétalas por meio de boas palavras. Olhei em cima da geladeira e, ao lado dos dois pinguins, um preto e o outro branco, o calendário marcava um dia do mês em números vermelhos - a frase, embaixo. Dois patinhos na lagoa, logo lembrei. Era a cantada da pedra da tômbola, como chamávamos naquele tempo - e isso fazia vibrar toda aquela vizinhança que se reunia no fundo de um quintal onde havia várias casas. Não, não era cortiço. Ali morava uma grande família. Pétalas na lembrança. Como é bom! Recordar feito em Amarcord, o grande filme. Cada um tem o seu script. Eu olhei o 22 e comecei a escrevê-lo. Vi até a cartela aqui na minha frente, com o verde e branco das casas. Coloquei o feijão em cima. Não ganhei nada. Ganhei tudo. Porque olhei para o calendário que parou no tempo.
quarta-feira, 25 de novembro de 2015
Escrito a Sangue
De Ademir Assunção
ruas escuras
atravessado
eu atravesso
reviro o avesso
nele me meço
olho de lince
encaro a face da fera
espelhos se estilhaçam
rasgam minha cara
cai a neblina do vazio
frio na barriga
pago o preço
erva bola cogumelo
volto ao começo
escapo com vida
desconverso
verso escrito a sangue
desapareço
quanto mais
menos
me pareço
eco de bicho homem
ego sem endereço
ruas escuras
atravessado
eu atravesso
reviro o avesso
nele me meço
olho de lince
encaro a face da fera
espelhos se estilhaçam
rasgam minha cara
cai a neblina do vazio
frio na barriga
pago o preço
erva bola cogumelo
volto ao começo
escapo com vida
desconverso
verso escrito a sangue
desapareço
quanto mais
menos
me pareço
eco de bicho homem
ego sem endereço
Na cabeça
Tá, foi um sonho, mas... e daí? De repente estava numa festa do político poderoso e que fala bonito. Era numa cobertura de dois mil metros quadrados e o povo que estava lá parecia ter sido treinado para falar baixinho. Eu não conhecia ninguém, só o anfitrião - e da televisão, jornais, campanhas, essas coisas. A coisa ali era estranha porque não havia música e como todo mundo falava baixinho, se colocassem um caixão com cadáver ali no meio da sala com piso de mármore, o velório ficaria perfeito. O dono da casa não se misturava. Dava para ver ele no terraço, olhando a cidade iluminada. De vez em quando se virava e dava um sorriso forçado. Não me serviram nada - nem água. De repente todos resolveram ir embora e eu fiquei sozinho. Quando tentei sair, apareceu o político. Agradeceu minha presença, esticou a mão, notei uma aliança de brilhantes e, ao voltar o olhar para o rosto dele, notei que ele estava de bobes na cabeça e um lenço amarrado em volta, como uma Maria da Vila. Parecia a coisa mais normal do mundo. E era. Um sonho. No outro dia dei de cara com ele na vida real, numa foto de jornal. Olhei bem para os cabelos.
terça-feira, 24 de novembro de 2015
No chão úmido da rua deserta
Uma pasta que alguém (Deus?) espremeu numa rua deserta. Essa massa disforme espalhada no chão sempre úmido tem todos os sentidos dos que se consideram humanos, mas está ali, inerte, abandonada no tempo. Nem os bichos que raramente passam perto se interessam. Seria bom ser devorado por ratos, urubus, baratas - apenas para que tudo acabasse de vez. Mas... uma coisa assim, morre? E o que se sente é vida? Passos se aproximam. Vai esmagar!... O que aconteceu? Agora é mais um a aumentar o que não tem explicação.
Poetas velhos
De Paulo Leminski
Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
Bom dia, poetas velhos.
Me deixem na boca
o gosto dos versos
mais fortes que não farei.
Dia vai vir que os saiba
tão bem que vos cite
como quem tê-los
um tanto feito também,
acredite.
segunda-feira, 23 de novembro de 2015
Ao dobrar a esquina
Na noite de garoa, ao dobrar uma esquina, os faróis do carro flagraram o senhor vestido todo de preto, carregando dois sacos de supermercado brancos pela calçada. No rápido instante em que eles chamaram atenção, junto vieram os questionamentos que parecem brotar do nada. Quem seria ele? O que tinha comprado para levar para casa? Família esperando ou mais um solitário na cidade grande? Os braços estavam completamente esticados. Parecia que as compras eram pesadas. Batatas? Uma garrafa de vinho barato? Material de limpeza? Alguém buzinou atrás e o pé comprimiu o acelerador. O homem ficou para trás, mas a imagem, não. Os sacos plásticos não tinham propaganda. Eram lisos e, naquele instante, luminosos, por causa da luz forte que os flagrou flanando ao lado da avenida e levados por mais um sem rosto. Quem colocou nos sacos as mercadorias depois de contabilizados os produtos pelo caixa? Idoso? A chuva apertou. O limpador do para-brisa, lento e barulhento. Ainda bem que logo estarei em casa. No porta-malas, as compras do dia. Dentro de sacos plásticos.
sexta-feira, 20 de novembro de 2015
quinta-feira, 19 de novembro de 2015
Sintonia para pressa e presságio
De Paulo Leminski
Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.
Não vivo sem!
Foi numa curva da Transamazônica que me toquei. Estava viajando há algum tempo, sozinho, no jipão 4x4 - e nada da musiquinha tocar. Aquela que escolhi quando comprei o tal numa loja de shopping bacana. Encostei e revirei tudo. Nada. Comecei a ficar agoniado. O que seria de mim sem ele? Ouvi um rugido estranho ali perto. Vinha de dentro do paredão verde da floresta. Tô nem aí. E se aparecer um bicho? Como vou fazer? A fissura aumentou tanto que comecei a delirar. Eu quero! Eu quero! Gritei tão alto que juro ter visto uma arara se espantar. Entrei no carro e pisei fundo. Quatro dias depois, sem comer, cheguei a uma cidade grande e tratei de voar de volta para casa. Esbaforido, abri a porta como quem abre a do paraíso. Achei a maquininha em cima da mesa. Bateria cheia. Apertei os botões. Não havia nenhuma ligação para mim. Nem recado. Nada. Mas meu telefone celular estava juntinho do meu corpo. Como é bom!
quarta-feira, 18 de novembro de 2015
A luz no fim do cais
Ele é como aquela luz que descreveu na noite escura do cais. Um foco apenas lá no fundo da escuridão e de sua solidão. Me apareceu pelas mãos de uma irmã, vizinha, grande artista também - mas da vida. A luz se apagou faz tempo, aos vinte e poucos anos - mas como iluminou! Aqui, no Rio de Janeiro, para onde foi jovem com a força de sua inventiva literatura. O Vampiro nunca o esqueceu. Ler também suas críticas, tanto literárias como à sociedade da cidade provinciana onde nasceu, é como receber a carga da indignação contra a boçalidade, a burrice travestida de sabedoria. Aquela luz no cais foi mostrada como se ele tivesse convocando os leitores a acompanhá-lo na jornada para dentro da alma. O mistério do oceano que começava ali, as outras terras, as pessoas que passeavam de dia sem perceber nada disso, os cheiros. Em tão poucas linhas a arte em seu momento sublime de colocar em nossa alma aquilo que nem ela sabia direito o que era. Newton Sampaio.
terça-feira, 17 de novembro de 2015
Piscina
Carregava barras de gelo e engradados com cervejas e refrigerantes para abastecer os barcos dos bacanas que viajavam no fim de semana. Aquilo era outro mundo - o iate clube e os frequentadores. Gente dona de avião, grandes indústrias, executivos de multinacionais. Nos intervalos, servir quem não saía, quem apenas ia para o litoral esquecer um pouco o sufoco da grande metrópole. Trabalho duro para um adolescente, mas com alguns prazeres. O filé à parmegiana, por exemplo, que o cozinheiro nordestino sempre preparava à noite - coisa que jamais tinha comido na casinha da vila nas fraldas de um subúrbio. Mas havia uma atração, que achava perigosa: a piscina que ficava bem diante do restaurante onde trabalhava. Muito tempo depois de ter iniciado sua jornada ali, tomou coragem. Levou um calção mequetrefe na pequena bolsa que carregava, acordou de madrugada, levantou do colchonete onde dormia no chão do estabelecimento, foi ao banheiro, saiu em traje de banho, pé ante pé, para não acordar ninguém, subiu os degraus que davam para a borda daquele piscinão e ficou olhando o brilho da água sob a luz de uma lua enorme. O coração na boca, colocou a ponta mediu a temperatura com o dedão do pé direito. Fria. Foi até a escadinha de metal, mas não teve coragem de entrar. Resolveu pelo pior: ao lado, havia um estrado com metro e meio acima do nível da piscina - e uma calçada larga separava-o da água. Ele subiu e decidiu que iria tomar distância, correr, voar por cima do espaço com piso de pedra para cair na água. Fez, mas demorou muito para tomar a decisão. O medo era grande. Mas não o impediu. Saltou, mergulhou, foi ao fundo, saiu ofegante, descobriu que não sabia nadar, mas saiu dali com uma das maiores experiências da vida. A lua acompanhou tudo. Ninguém mais soube. Ele guardou para sempre a sensação inédita. Era sua primeira piscina. Tinha 15 anos.
degelo
De Marcos Prado
todo durão é frio
com coração de gelo
mas basta uma vil
de sangue quente
coração ardente
para derretê-lo
todo durão é frio
com coração de gelo
mas basta uma vil
de sangue quente
coração ardente
para derretê-lo
segunda-feira, 16 de novembro de 2015
Sampa
Olhei a plaquinha e vi o nome dos dois: Federico e Julieta. O apartamento numa rua sossegada e cheia de história em Roma. Um ano depois descobri que ele era brasileiro só porque teve um sonho do que eu vi em Sampa numa tarde/noite de sexta-feira no Centro Velho. Nada de caetanear e papagaiar a esquina da São João com Ipiranga. Desçam a ladeira Porto Geral, olhem o Parque Dom Pedro II de cima, entrem na 25 de Março e parem numa esquina para ver tudo. Não precisa andar, mas se quiser é só seguir e desviar de todos os tipos, todas as falas, todas as bugigangas, sons, cheiros, cores. Bundas, dentaduras, periguetes, vendedoras, madames disfarçadas, barrigas, olha aquele comendo o marmitex, olha o buraco na calçada entulhado de lixo, vai uma pamonha aí? Recordações, Galeria Pagé e a calça Lee americana sonhada depois de meses juntando dinheiro. Tem óculos de grau a dez paus, Neymar em tamanho gigante dentro de uma loja - e o bilau protuberante faz a cliente esquecer de comprar a cueca amarela da Lupo para o marido. Só se pudesse levar o recheio! Vamos subir de novo a ladeira. Churrasquinho de gato com fumaça, muita, e cheiro forte. Os bancários tomando tudo em bares antigos/modernosos no final de mais uma semana naquele que foi o centro financeiro da locomotiva. O prédio Martinelli se impondo, mesmo vestido para reforma. Muita polícia. Poucos craquelentos. Cinema puro. A câmera não desliga. Em homenagem ao italiano e sua musa. Que nos ensinaram a ver também o nosso povo.
quinta-feira, 12 de novembro de 2015
quarta-feira, 11 de novembro de 2015
M. de memória
De Paulo Leminski
Os livros sabem de cor
milhares de poemas.
Que memória!
Lembrar, assim, vale a pena.
Vale a pena o desperdício,
Ulisses voltou de Tróia,
assim como Dante disse,
o céu não vale uma história.
um dia, o diabo veio
seduzir um doutor Fausto.
Byron era verdadeiro.
Fernando, pessoa, era falso.
Mallarmé era tão pálido,
mais parecia uma página.
Rimbaud se mandou pra África,
Hemingway de miragens.
Os livros sabem de tudo.
Já sabem deste dilema.
Só não sabem que, no fundo,
ler não passa de uma lenda.
Não
Ele entrou naquela sala, sentou numa cadeira de plástico branca e ficou ouvindo aquilo que considerou ladainha sem sentido. Tinha tomado apenas uma dose, há algumas horas. Não queria se entregar pelo bafo. Na verdade obrigaram-no a ir até ali. Ele resistiu o quanto pode - e entre a sugestão e o comparecimento... quantos porres... Não lembrava porque estava na fase dos apagamentos. Naquele dia foi - para conferir e dizer que tinha ido, afinal, foi o filho mais velho o aconselhador. Estava quase levantando para se mandar para o bar mais próximo quando um sujeito de cavanhaque, óculos de grau, camisa quadriculada, calça jeans, foi até a frente para falar. Não lembra o resto da conversa, apenas de uma parte, poderosa demais. Disse o fulano que no milionésimo de segundo que antecedia virar o copo e engolir o veneno, naquele instante, um não poderia modificar todo o resto da vida. Porque depois, a vontade, a fissura, o costume, sabe-se lá o que, passaria. Aí, na sequência de se tomar conhecimento do poder deste não, os outros viriam com mais facilidade, e sucessivamente, até... Agora ele estava pensando nisso, de novo, no mesmo local onde esteve 26 anos atrás - e seu coração se encheu de alegria. O não entrou na sua alma e ele só o pronunciava agora para recusar quando lhe ofereciam o copo cheio em festas ou encontros onde as pessoas não sabiam de seu passado. Então ele riu por dentro, olhou em volta e rezou para que os outros presentes pudessem ter o mesmo destino, aquele que começou com um não e se transformou num sim à vida.
terça-feira, 10 de novembro de 2015
Redemoinho
Não abriu a boca. Sabia que havia alguma coisa ali dentro, mas ficou quieto. Pensou que estava ficando adulto, aos 70, porque um dia alguém lhe disse que o papo de ser menino era desculpa. Ele nunca se livrou dos medos de criança. Nem das alegrias, que carregava em caixas cheias de bolas de gude, piões, carrinhos sem rodas, aviões de lata. Adulto. O redemoinho que sentia bem abaixo do peito o fez lembrar fotos de furacões feitas de satélites e apresentadas nos horários nobres dos telejornais. Lá vem! Boca fechada. Não sabia o que estava lá dentro porque a mente não conseguia decifrar. Olhou pela janela e viu a luz amarela pendurada num poste. Um vento frio invadia o ambiente. Sozinho. Era melhor assim? Não, não sabia de nada, apenas que era aquilo, no momento - e que tinha de passar. Um cachorro latiu na rua. Outros responderam. Veio uma dor, ele abraçou a própria barriga e se curvou. Pai, mãe e filhos que olhavam de fotos penduradas na parede se preocuparam. Ele deitou no chão e a posição fetal foi inevitável. Veio um choro sentido, convulsivo, como se para pagar todos os pecados do mundo. Sozinho. Sete imagens do Espírito Santo dentro de capelinhas de madeira observavam em silêncio no canto de uma estante. Então conseguiu pensar em algo. Aquela era a dor do ser humano. O redemoinho sumiu. Ele se esticou e levantou. Estava salvo. Por enquanto.
máscara
De Sérgio Rubens Sossélla
no dia em que eu colocar u’a máscara
todos me reconhecerão, na hora
segunda-feira, 9 de novembro de 2015
O terçol do olho cego
Não enxergo. Nasci assim. Não fiquem com pena. Desenvolvi ao máximo todas as sensibilidades possíveis. Tateio. Cheiro. Ouço. Penso. Meu mundo não é escuro. Porque são sei o que é a luz. Mas eu a sinto. Muito mais do que quem enxerga. Não gosto quando comparam os imbecis com a cegueira. Imbecil é quem faz isso. A convivência social é complicada. Odeio quem tem compaixão babaca ou fica perguntando sobre minhas dificuldades. Saio pouco de casa. Gosto de ouvir música clássica. Estou com um grande problema agora. Ainda não contei a ninguém. Comecei a sentir uma dor embaixo do olho esquerdo. Nasceu uma bolota. Terçol. A dorzinha incomoda, mas o que mais está me encafifando é que a coisa começou a aumentar muito e a tomar conta de todo o olho. Pior: ontem, ao acordar, eu percebi algo diferente e, pelo que já li e me falaram, tenho quase certeza de que era luz. Do dia. Não consegui interromper isso. Fiquei com medo. E se eu começar a ver tudo o que nunca vi em mais de trinta anos de vida? Não quero acabar com o meu mundo. Ele não é de trevas. Não precisa ser iluminado.
quinta-feira, 5 de novembro de 2015
Bula no bule
No final da tarde a luz quente e dourada do sol fez o efeito. Na parede de frente da casa, ao lado da porta de entrada, a sombra da luminária se esticou, o branco da lâmpada apagada ficou mais branco, e o reflexo do vidro dentro da sombra parecia coisa acesa. Ele ficou olhando aquilo como se um novo milagre de Fátima tivesse acontecido. Tão simples, tão belo, ao contrário de tudo o que tinha acontecido até ali naquele dia. Contas atrasadas, a máquina de lavar pifada, alguém que o xingou por telefone, o salário cortado, uma suspeita de doença grave, a visão diminuindo, assim com a audição, dores nas juntas. Os remédios do psiquiatra pareciam não fazer mais efeito, apesar de ele estar bem melhor do que quando odiava a luz do dia e se enterrava embaixo de camadas de cobertores. Foi aí que lhe deu o estalo. Correu para a cozinha, procurou no velho coador de pano, esquentou a água, pegou o bule de alumínio que herdou da mãe, colocou a dose certa do pó de café, coou e tomou um gole na caneca decorada com flores. Voltou para frente da casa. O sol tinha baixado. Não havia mais aquilo que considerou "visage" - mas estava feliz. Uma talagada a mais e foi à escrivaninha tentar registrar aquilo. Pensou, pensou e escreveu, com a Parker 51 que amava: Coe o café, bula no bule e tome um gole".
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