segunda-feira, 4 de maio de 2015

Zé Renato Mulher


Visita

Foi juntando todos os cartões de visitas que recebeu na vida. Nunca precisou olhar algum, mas, sem saber o motivo, colocava-os dentro de uma gaveta. Quando se deu conta, anos depois de lançar ali o primeiro, de uma gráfica cujos números de telefone tinham cinco algarismos a menos do que os atuais, o local estava abarrotado. Um dia resolveu fazer uma limpa, mas olhando um por um. Tentava resgatar na memória quem era a pessoa que lhe dera aquele pedacinho de papel retangular com nome, endereço, telefone, etc. Claro que não recordava, mesmo porque, para as mínimas coisas recentes, os neurônios já estavam falhando. Demorou uma semana fazendo isso, mas um dia um dos cartões o fez parar - e os olhos brilharem. Lembrou! Era o de uma casa de tecidos numa rua antiga de uma cidade grande. Havia um vitral ali dentro que o encantou. Era muito grande, ficava nos fundos da loja e, ao lado dele, uma escada estava grudada na parede. O vendedor disse que era exatamente para quem, como ele, se maravilhava. E o convidou para subir e olhar através daquela obra de arte. Foi o que fez até chegar a um ponto onde podia olhar através de uma flor que a mão de uma mulher segurava. Foi então que viu uma santa que encimava a cúpula de uma igreja que ficava ali atrás, mas ele nunca tinha reparado. A imagem olhava exatamente para aquele ponto do vitral. Ele fez o sinal da cruz e, anos depois, guardou apenas aquele cartão para sempre.

quarta-feira, 29 de abril de 2015

mais velha

De Helena Kolody

a morte desgoverna a vida
hoje sou mais velha
que meu pai


Tonico e Tinoco Chico Mineiro


Um vulto que surge no fundo do olho do caranguejo amputado

Ele foi criado dentro do ralo ao lado das mesas do necrotério onde se faziam as autópsias. Se alimentava de pedaços de seres humanos que para lá escorriam. Quando estava grande e gordo, foi comido com todo gosto por um dos vigias do local que ali o colocou para isso mesmo. Ele leu essa história há anos numa reportagem da revista Realidade e ficou pensando no bicho. Imaginou até o que seria dele se um dia escapasse pelas ruas do Rio de Janeiro, onde o fato aconteceu. Anos depois, visitando um paraíso ecológico 400 quilômetros dentro do Atlântico, ficou paralisado ao ver aquele que via só na imaginação. Estava encimado em pedras vulcânicas negras, suas cores eram fortes e mexia apenas os dois olhos que pareciam saltar daquela carapaça. Notou que uma das pernas dele desaparecera, amputada. Foi então que se aproximou e viu: um vulto em pé no fundo de um dos olhos do caranguejo. Forçou a visão e ali estava o homem que tratou da criatura que depois o alimentou.

terça-feira, 28 de abril de 2015

Elza Soares Mas que Nada


Canivete

Olhou a vitrine e finalmente encontrou o que procurava desde o filme Juventude Transviada. O canivete automático estava lá, mas este tinha lâmina muito maior do que aquele da briga em que James Dean conseguiu derrotar o portador da lâmina/morte. Mais: o cabo era de madrepérola e isso o destacava num espaço cercado por uma quantidade enorme de armas brancas - ali era mesmo a Casa das Facas. Comprou e guardou. Não sabia para quê. De vez em quando apertava o botão para acompanhar o movimento rápido do aço e tentava ver o brilho tão descrito nos romances policiais. Olhava com carinho a arma. Um dia saiu às pressas ao ser chamado por um dos filhos que estava em situação de perigo, ameaçado por um vizinho maluco. Levou a arma no bolso da jaqueta. Chegou e foi confrontado. Puxou, apertou o botão e a falha aconteceu. A lâmina imóvel. Apertou de novo. Nada. O inimigo olhou aquilo e começou a rir. Ele também. O filho não entendeu nada. O perigo sumiu no ar. A arma voltou para o bolso. Uma maçã apareceu na mão de uma vizinha. Ele apertou o botão. Funcionou! Ele cortou a fruta ao meio e ofereceu ao adversário.

segunda-feira, 27 de abril de 2015

caminhos

De Paulo Leminski

pelos caminhos que ando
um dia vai ser
só não sei quando


Mestre Ambrósio Fuá na Casa do Cabral


No bairro nobre

Um dia parou o carro naquela rua do bairro nobre para matar uma curiosidade de anos. Entrou na porta aberta da minúscula e velha mercearia. Pediu um quilo de café. A atendente era uma senhora de quase 80 anos, cabelos brancos desgrenhados, vestido colorido, poucos dentes na boca. Mesmo assim ela sorriu e ele fez o pedido. Ela disse que ia verificar se tinha ou não. Ele olhou as prateleiras quase vazias, o balcão do tempo em que Ney Braga era capitão do Exército, as várias garrafas de cachaça barata se destacando na paisagem. Ela disse que trabalhava ali há meio século, desde o tempo em que só existia mato só em volta - e o povo era pobre e comprava para pagar no final do mês o que foi anotado na caderneta. O marido morreu, ela ficou com o comércio e a casinha dos fundos, separada daquele espaço apenas por uma porta atrás de uma cortina surrada. Ele pagou o último pacote de café que ali existia e perguntou se ela abria a venda todos os dias. Ela respondeu que sim, porque era a única diversão da sua vida . Disse também que ficava sempre feliz quando os aposentados entravam ali para beber e jogar conversa fora. Revelou, porém, que um por um foram morrendo. Ele ficou triste por ela, mas feliz por finalmente conhecer um pouco da história daquele pedaço da cidade.

quinta-feira, 23 de abril de 2015

Sintonia para pressa e presságio

De Paulo Leminski

Escrevia no espaço.
Hoje, grafo no tempo,
na pele, na palma, na pétala,
luz do momento.
Soo na dúvida que separa
o silêncio de quem grita
do escândalo que cala,
no tempo, distância, praça,
que a pausa, asa, leva
para ir do percalço ao espasmo.
Eis a voz, eis o deus, eis a fala,
eis que a luz se acendeu na casa
e não cabe mais na sala.

Milionário, Zé Rico Último Julgamento


O retorno

Nasceu com dúvidas. Tanto que teve de ser tirado a fórceps porque não saía da barriga da mãe depois de 11 meses de gestação. O médico jurou que um dia ouviu o bebê dizer que não sabia se ficava ou ia para o mundo. As marcas do ferro ficaram na moleira. Isso aumentou sua timidez e o seu "não sei". Demorou 12 anos para decidir andar. Na verdade, tinha medo - e isso, muitos anos mais tarde, ele descobriu que era herança de uma parente que se encantou com os olhos de um holandês, mas na hora do "vamu vê", que não tem tradução para a língua dos invasores de Pernambuco, ela se assustou com o tamanho do que se lhe era apresentado. O fato é que o descendente desta conjunção carnal também tinha olhos claros, mas nada da audácia do invasor - e sim o pânico da invadida. Passou parte da vida assim - e isso agravou a indecisão. Perdeu a virgindade com 42 anos porque lhe deram um porre de jurubeba e o jogaram nas mãos de uma prostituta especializada em desvirginar adolescentes. Ele gostou, apesar de não lembrar de nada. Foi assim que se apaixonou por uma galega que um dia viu passar num ônibus lotado e a encontrou dias depois na banca da xepa do fim da feira. Marcaram casório rápido. Foi o erro. No dia do sim ele não disse nada. Saiu correndo do altar e foi até a casa da mãe, que estava muito doente. Deitou no colo dela. Enfiou o dedão na boca e pediu o paninho para cheirar. Deram. A mãe sorriu e morreu naquela hora. Tinha o filho de volta.

terça-feira, 14 de abril de 2015

nuvens

De Paulo Leminski


nuvens brancas
passam
em brancas nuvens

3 x 4

Guardou todas as cadernetas escolares dos tempo do ginásio e colegial. Eram assim que os cursos se chamavam nos anos 60 e 70. Estudou em escola pública porque era pobre. Muitos anos depois foi olhar as notas daquelas matérias todas. Havia apenas um dez nos vários anos de estudo. Lembrou muito bem porque a professora de Geografia, por algum motivo, errou na avaliação da prova. A nota deveria ser bem menor. Mas ele ficou quieto - e nunca comemorou aquela glória. Havia notas vermelhas, abaixo de cinco, mas isso não interessava muito. O que lhe aguçou a alma foi ver as fotos 3x4 de identificação - e as mudanças que revelavam ano a ano. Do cabelo, da roupa que usava, do formato do rosto. Nunca sorriu par ao clique. Por isso os lábios finos um dia o fizeram ganhar o apelido de "boca de carteira". Ele, velho, sorriu ao lembrar. Quarenta anos depois se considerou um menino bonito, não aquele monstro que se via no espelho e que não conseguia se declarar para a paixão do momento. Guardou tudo na pasta antiga. Deitou com ela apertada sobre o peito e dormiu. Tanto tempo...

Jerry Adriani Doce Doce Amor


segunda-feira, 13 de abril de 2015

Farelo de pão

De Bernardo Pellegrini


Farelo de pão
resto de almoço
moeda perdida
em algum bolso


Baby Consuelo Barrados na Disneylândia


O olho

Achou a câmera para computador numa caixa de papelão jogada na esquina da rua onde mora. No meio de tralhas velhas, ela o olhou. Tinha mesmo o formato de um olho - e se mexia como tal. Levou para o escritório de casa. Instalou em cima da tela, conectou, ligou. Ficou esperando e nada aconteceu - até que viu um botão ali em cima do que, imaginava, era a lente. Uma raio de luz quase o cegou. Na tela começou a aparecer imagens desconectadas, mas numa velocidade alucinante. Eram rostos, cenas de ruas, mendigos sendo queimados, assaltos, casamentos, aniversários, bailes de debutantes, tudo, tudo misturado numa espécie de alucinação que o fez ficar paralisado. Ele conseguiu desligar o olho, mas aquilo tudo  ficou na mente - e continuou a passar na sua memória. Naquela noite ele não dormiu. No dia seguinte voltou ao computador e ligou a coisa. Fez isso de forma automática, atendendo a uma ordem que não ouvia. De novo o raio, só que agora as cenas eram em câmera lenta e de paisagens vistas de cima. Era como se estivesse vendo uma nova versão do filme Fernão Capelo Gaivota. Ele gostou tanto que passou o dia inteiro viajando por paisagens jamais presenciadas em filmes, documentários ou livros. Não dormiu de novo. Voltou ao olho. Dessa vez, ao apertar o botão, a bala saiu, entrou pela testa e abriu um rombo na nuca. Ao acordar estava cercado de familiares. Perguntou se estava vivo. Disseram que tinha desmaiado repentinamente. Ele levantou e foi direto ao computador. O olho estava lá. Não o ligou nem na hora nem nunca mais, principalmente porque o viu piscar marotamente.

quinta-feira, 9 de abril de 2015

Inimigo do futebol

De Dalton Trevisan

O inimigo de futebol:

— O meu amor pela Fifi é maior que o amor pelo Brasil.

A doce pequinesa que sofre dos nervos com a guerra da buzina, corneta, bombinha, foguete.

A carta

O envelope estava no fundo da casinha de metal. Bordas com as cores da bandeira, como nos velhos tempos. Ele o tirou de lá porque há muito tempo que não recebia correspondência alguma, afinal, era uma espécie de fugitivo de familiares e amigos. Resolveu se isolar - e pronto. Seu nome estava lá, escrito com esferográfica azul. Do outro lado, nada - apenas aquele retângulo em branco. Ele carregou a carta com a mão direita e sentiu que dentro havia apenas uma folha de papel. Colocou a correspondência em cima da mesa e ficou olhando-a por um tempo. Deixou-a ali, na mesa rústica de madeira, e sempre que passava perto, olhava. Só isso, mais nada. Quando fazia as refeições, também, mas, por algum motivo, nunca a tocava. Foi assim durante uns dez anos. O papel amareleceu e o envelope nunca saiu do lugar. Até o dia em que ele se sentiu mal, com falta de ar e muita tontura. Ao se recuperar, foi lá e abriu a carta. No papel apenas uma palavra estava escrita: parabéns.

quarta-feira, 8 de abril de 2015

CAÇADOR E VÍTIMA

De Miguel Sanches Neto



Escrever é caçar caranguejos
à maneira do guaximim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja  o crustáceo,
ele espera que este o morda
como suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
— a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaximim chora,
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca.
Contorcendo-se nesta emboscada,
o sabor e a cicatriz ele preliba
— a água na boca é a mesma das lágrimas.

Joel Nascimento, Cesar Faria e Doce de Coco


Na telinha

A mensagem ninguém viu, mas ele leu e ficou daquele jeito, paralisado, com a telinha do aparelho celular perto do rosto. Parecia uma dessas estátuas humanas das ruas de qualquer grande cidade. No começo achavam que era uma brincadeira, mas a mulher e os filhos começaram a desconfiar que não pois ele ficou bem diante da outra tela, a da tv digital de 60 polegadas  - que ninguém podia ver direito por causa daquele estorvo. Aconteceu quando ele estava saindo cedinho para o trabalho e sua companheira de 30 anos só foi pedir ajuda depois do Jornal Nacional, ou seja, quando começou a telenovela em seus capítulos decisivos. Petrificado estava, de olhos abertos, respiração e pulsos normais. Tentaram tirá-lo dali, a mulher com um olho nele e outro no galã recuperando a mocinha - mas não teve bombeiro, médico, ninguém que conseguisse. Pensaram em chamar um guindaste, mas não havia como entrar na sala do sobrado. Na madrugada, quando todos, cansados, foram dormir, a telinha do aparelho acendeu novamente e uma nova mensagem o fez voltar ao normal. Lá estava escrito: ninguém te ama.

terça-feira, 7 de abril de 2015

mentira

De Paulo Leminski

Essa idéia 
ninguém me tira 
matéria é mentira.

Vanusa Manhãs de Setembro


Urubus

Era apaixonado por urubus. Para ele, os mais belos pássaros do céu. Silhuetas imponentes a planar como reis. Misteriosos por não se saber nem ver como morrem. A capa do disco Urubu, de Tom Jobim, virou um painel do tamanho de uma parede na sala da casa dele. Aprendeu a voar de planador só para ser guiado por eles na descoberta das correntes quentes de sustentação. Fotografava-os no ar e na terra -  e a carapaça que têm ele comparava a elmos medievais. Também via o trabalho que faziam na limpeza da terra. Não gostava do termo carniça que muita gente usava para dizer do que seus amigos se alimentavam. Rebatia afirmando que os humanos também comiam animais mortos - e de todos os tipos. Foi por isso que resolveu atrair seus pássaros para casa. Fez uma caixa em cima do telhado onde jogava bichos e ficava ali, no jardim, esperando a chegada. A vizinhança começou a se incomodar. Com os urubus e o mau cheiro. Depois descobriram que ele matava animais da rua mesmo. Foi preso. Ficou feliz. Da sua cela podia ver um lixão próximo. E eles, às centenas.

segunda-feira, 6 de abril de 2015

Na esquina marcada

Parecia invisível, apesar de ficar o dia inteiro sentado no peitoril de uma vidraça enorme de um banco na esquina principal da cidade grande. Talvez o olhar perdido fizesse isso. Talvez as marcas de lobotomia. Ninguém olhava, ninguém reparava a presença. Ele olhava, ele reparava. Ninguém sabia onde dormia, mas não era na rua. Suas roupas sempre eram impecavelmente limpas e ele vestia sempre terno cinza e camisa branca sem gravata. Os sapatos brilhavam muito sob a luz do sol. As meias eram finas e pretas. Da multidão que passava perto, ele marcava algumas. Com a mente. Era o início da sua missão. Nos finais de semana, quando o movimento naquela esquina diminuía drasticamente, ele rodava a cidade e sempre ia na direção certa dos "marcados". O ritual, então, se repetia. Não havia agressão, violência, nada. Ao encontrar essas pessoas ele apenas se postava à frente e elas eram obrigadas a olhar para os olhos dele. Aí, acontecia: elas se tornavam honestas.

ameixas

De Paulo Leminski

ameixas
ame-as
ou deixe-as

Wanderley Cardoso O Bom Rapaz


quarta-feira, 1 de abril de 2015

Musas

De Roberto Prado

anos a fio dando ouvidos
a deuses muito discretos

amigas, amigos, amiguinhos
se sou mero objeto de meus afetos
quem é aquilo sozinho que vai
tropeçando em meus versinhos?

Jamelão Ela disse-me Assim


Carregador de livros

Os livros estavam empilhados numa estante dentro da garagem que virou depósito de tranqueiras. Eram muitos. Além destes, havia caixas e caixas de papelão cheias que foram parar ali quando ele se mudou para aquela casa já ocupada. Deixou-os quietos, mas foi comprando mais e lendo os novos no seu velho estilo de quatro, cinco, seis simultaneamente, com a exceção dos grandes ídolos. Sim, ele era macaco de auditório de alguns escritores, como o Fonseca, o Chandler, o Roth, o King, o Capote, o Wolfe, o Talese, o Castro, por aí. Esses ele pegava e devorava sem dar atenção a nenhum outro. E fazia isso na cama, no banheiro, na sala, no escritório, etc. Com o tempo foi esquecendo os da garagem, até que conseguiu um espaço para acomodar todos com o carinho devido. Abriu o espaço sombrio e passou a transportar seu tesouro antigo. À medida que ia empilhando os exemplares junto ao corpo, começou a sentir algo diferente, só identificado na terceira viagem. O contato deles o fazia recordar em ritmo acelerado tudo o que já tinha lido. Recebeu uma overdose de literatura com ingredientes de vários gêneros. Quando terminou tudo, descansou com a certeza de que sua vida e seu vocabulário tinham ficado muito mais enriquecidos.

terça-feira, 31 de março de 2015

O sorvete é...

Enfiou a língua no bola do sorvete e olhou para o céu. A lua começou a derreter e a boca se encheu de poeira. Lunar? Não acreditava na descida do homem lá, porque tudo tinha sido feito num estúdio escondido num deserto. Talvez até atrás daquela montanha do Contatos Imediatos do Terceiro Grau. Spielberg já filmava? Olhou de novo. Um foguete entrou no olho da lua e o sorvete agora parecia o globo terrestre esperando o Grande Ditador para brincar. Algo estava acontecendo e ele tentou rememorar. Foi a buchada de bode, pensou. Ou a meia garrafa de Pitu, calibrada com doses de Jurubeba. O Expresso 222 parou perto e ele quis seguir a Procissão. Olha a faca! Prepare o seu coração, pras coisas que eu vou contar, eu venho lá do sertão... O Fino da Bossa agora está no palco do céu, mas João Gilberto ainda faz dim-dom. Ele achou que era hora de dormir. Guardou o sorvete no bolso da camisa e mandou um beijo para São Jorge Benjor.

segunda-feira, 30 de março de 2015

Presentes

De Dalton Trevisan


— Sabe o que o João deu para o nenê, filho dele? Meia dúzia de fraldas e um pião amarelo.

João Bosco Jade


Vou me matar!!

Ela tinha acabado de enfiar a esponja dentro do copo quando o celular tocou uma, duas, três vezes. Parou, lavou as mãos, enxugou no avental mesmo e atendeu. Era a cunhada, lá dos confins do Brasil, dizendo que ia se matar se o marido a largasse. Acostumada com a família aloprada espalhada pelo território nacional, ela respondeu com um rosnado, desligou o telefone e foi terminar de lavar a louça do almoço na casa da patroa. O telefone tocou novamente. Ela não atendeu. De novo, aí ela atendeu e já ia dizer para a cunhada que ela deveria era fazer uma festa em vez de ameaçar tomar veneno de rato. Antes disso, contudo, a outra contou que apareceu uma "irmã" da igreja, que aquilo tinha sido coisa de Deus, que estava mais calma e que já tinha esquecido a ideia de acabar com a própria vida. A milhares de quilômetros, com a pia de aço limpa e brilhando, a que ouviu tudo tomou um gole de café forte e pensou: "Mas se eu contar essa história para meu irmão, ela, que é falha das ideias, não vai ter trabalho de se matar - é ele quem vai fazer o serviço". 

quinta-feira, 26 de março de 2015

imperativo da primavera

De Roberto Prado

humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

Itamar Assumpção Prezadíssimos Ouvintes


Em busca do tempo

Leu num livro a história de uma cidade de Minas Gerais que perdeu o tempo. Queria ir para lá de qualquer jeito. Teve de esperar. Ele sonhava acordado com a chegada naquele vilarejo escondido entre montanhas e onde o povo falava daquele jeito, uai. Estava escrito que, sem luz, água encanada, nem radinho de pilha, porque ali as ondas não chegavam, alguém um dia se deu conta que a única folhinha do calendário que existia estava defasada. Aí um começou a perguntar para outro se lembrava em que dia estavam. A cidade inteira não sabia. Foi então que encontraram a solução: mandaram um emissário a cavalo resgatar o dia, o mês, o ano, enfim, o tempo, em outra cidade. O que se encantou com a história finalmente foi para lá, mas isso depois de anos. Encontrou o lugarejo, que era mais ou menos tudo o que imaginava: uma rua com algumas casas, um bar, uma pequena farmácia, um armazém, gente conversando na soleira da porta... O coração disparou de felicidade. Mas logo veio a decepção quando um matuto ouviu o sinal e tirou o aparelho celular do bolso da camisa - para falar com um compadre.

quarta-feira, 25 de março de 2015

Nome

De Paulo Leminski

A noite - enorme
Tudo dorme
Menos teu nome

Sergio Murilo Broto Legal


Viagem ao teto

Não gostava de drogas alucinógenas. Na verdade, tinha medo. Leu tanto sobre viagens sem volta durante aqueles anos de paz, amor e napalm na cabeça dos vietcongs, que evitava. Tomava os goles, fumava um e o máximo de doideira que fez foi misturar macarrão, feijão gelado e salada de maionese para acalmar a larica numa madrugada de fumacê. Um dia apareceu um selo de ácido numa viagem ao litoral. Ele resolveu experimentar, mesmo lembrando dos trechos delirantes dos livros de Carlos Castañeda e do bruxo Don Juan que acabara de ler. Guardou a mercadoria, voltou para a cidade grande e, na casa de uma prima, onde parou para dormir, aconteceu. Tomou o LSD e ficou esperando algo que, na sua imaginação, com o passar do tempo, não veio. No meio da madrugada, sem dormir, foi para a cozinha, abriu a geladeira, pegou as duas dúzias de ovos que ali estavam e explodiu-os no teto para ver o efeito. Só então caiu no sono. Quando acordou estavam limpando tudo. Ninguém lhe perguntou nada. Ele viu as manchas amarelas que pairavam sobre a cabeça de todos. Eram as marcas de sua única viagem.

terça-feira, 24 de março de 2015

Ipês floridos

De Helena Kolody


Festa das lanternas!
Os ipês se iluminaram
de globos de cor-de-ouro.

Benito de Paula Ah! Como eu Amei


Mote

Vinha se arrastando pela vida como um mulambo. Um dia não teve mais forças na alma para se levantar e sair do quarto infecto que lhe sobrou de um herança que um dia reluziu a ouro. Tinha queimado tudo e nem lembrava como, porque os neurônios também entraram na fogueira. Acordava, olhava a claridade filtrada na veneziana de madeiras podres, e ficava ali a pensar fragmentadamente, como se a sua mente fosse um caleidoscópio alucinado que só lhe trazia péssimas lembranças. Foi enfraquecendo com os dias. As alucinações aumentaram. Até o dia em que o "monte mote de monte" surgiu escrito na parede suja que ele ficava olhando horas e horas imaginando figuras no reboco mal feito. Rolou do colchão que estava no chão, se arrastou até o banheiro, se segurou na beira da privada, abriu a torneira e do cano caiu a água gelada da salvação. Enquanto pensava no "monte mote de monte", se limpou, vestiu a melhor roupa, saiu cambaleando, tomou um café, comeu um pão, pagou com uma nota de bêbado, entrou numa igreja, rezou, fez o sinal da cruz com água benta e, na saída, encontrou um amigo de longa data que apareceu - e foi seu anjo da guarda enquanto ele passou a criar o monte de mote da sobrevivência.

segunda-feira, 23 de março de 2015

sem licença

De Paulo Leminski


cortinas de seda
o vento entra
sem pedir licença


Leandro e Leonardo Talismã


Vazados

O olho foi vazado por uma caneta tinteiro quando ele estava para se formar no primário. Não foi sem querer. Ele perturbou o colega de classe que era branquelo, tímido, inseguro, enfim, tinha tudo o que o resto da classe queria para desopilar em cima. Mas era ele o que mais perturbava. Até aquele dia em que não falou mal do garoto que ficava vermelho por nada. Apenas disse que uma menina estava muito a fim dele - para fazer sexo. A Sheaffer tinha uma pena linda, parecida com uma unha - e ela entrou feito faca em manteiga amolecida pelo calor. Cego, colocou um tapa-olho e, mais tarde, ao ler a história de Lampião, encasquetou que era descendente de um dos cangaceiros que tiveram as cabeças cortadas depois da emboscada em Angicos. Guardava em casa armas e indumentárias que mandava trazer do Nordeste para o Sul Maravilha. Um punhal de lâmina enorme era seu objeto de estimação. Ele até dormia com ele. Uma noite, não se sabe como, aconteceu: ele perdeu o outro olho, espetado que foi por mais uma ponta de aço.

quinta-feira, 19 de março de 2015

Para o nenê

De Dalton Trevisan

— Sabe o que o João deu para o nenê, filho dele? Meia dúzia de fraldas e um pião amarelo.


Carlos Gonzaga Diana


A química da cola

O professor tinha a cara de um daqueles cientistas nazistas dos filmes norte-americanos. Era careca e nunca ria. Seu guarda-pó descia até o meio das canelas e sempre estava amarrotado - mas nunca sujo. Dava aula de química e ninguém naquela sala de meia centena de adolescentes conseguia tirar uma nota maior que seis em suas provas. Até que veio a definitiva - e ele deu dois temas que deveriam ser estudados para que o escolhido na hora fosse desenvolvido. Todos fizeram as duas colas, já que o texto era escrito em papel almaço sem timbre nenhum. Mas... Como trocar a folha em branco pela que estava previamente feita? No dia do martírio, com todos nervosos, ele entrou com cara de sacana, sorrisinho disfarçado. Deu o tema e, para espanto de todos, saiu da sala, foi passear no longo corredor daquele colégio público, conforme um aluno mais ousado verificou da porta. Nunca tinha feito isso. Todos trataram de colocar a cola em cima da mesa e esconder rápido a folha em branco. Ele retornou quase no fim da aula. O rosto brilhava de contentamento. Uma semana depois trouxe as provas corrigidas. Ninguém tirou mais que cinco - para aprender a colar direito.

quarta-feira, 18 de março de 2015

o poema como eu quero

de antonio thadeu wojciechowski


eu gosto da coisa real
centrada em si mesma
rica em efeito especial
lixa sob o fluir da lesma
uma puta poesia pura
água que pedra fura
alegria de mulher nua
lente no olho da rua
coisa de quem acha
e não de quem procura

Benito de Paula Ah como eu Amei


No fim do corredor

Na minha cabine tem uma micro-tv. Preto e branco. Me trouxeram um dia lá do Paraguai. Deixo ela sempre ligada, mas sem som. Estou dentro de uma cabine que fica no fim do corredor da entrada do prédio comercial. Parte da minha vida se passa aqui. Me pagam para ficar durante toda a noite e madrugada. Depois da meia-noite não passa ninguém lá na rua. Minto. Às vezes um bêbado ou mendigo perdido. Tem uns que me olham. Eu olho para eles. Somos iguais, mas estou aqui protegido - fingindo que protejo. O corredor fica no escuro. A luz amarela espetada sobre a cabeça deve transformar minha aparência numa coisa de meter medo, mesmo porque de boniteza talvez eu tenha apenas a alma. Ganho dois salários mínimos. Não preciso mais. Saio daqui quando começam a chegar os funcionários da limpeza. Nunca durmo em serviço. Faço isso lá no meu barraco de um cômodo. Já me disseram que sou muito solitário. Não penso muito nisso. Nasci assim. Não conheço pai ou mãe. Acho que meu coração é de pedra. Mas eu choro quando vejo na tela minúscula uma criança perdida.

segunda-feira, 16 de março de 2015

Museu

De Nelson Capucho

Anoitece na praia.
Tudo é vasto; o mundo, os astros:
museu de infinito.

O anjinho

O anjinho nunca lhe saiu da cabeça. Não lembra das feições, mas era um bebê que chorava muito lá no fundo do ônibus. Ele viu também a mãe tirar o peito murcho para lhe dar leite, enquanto se servia de um pedaço de frango com farinha que ela e o marido tinham trazido para comer durante a longa viagem do sertão nordestino para São Paulo. No terceiro dia, o choro parou. Ele, que era uma criança um pouco maior, de nove anos, viu o motorista entrar com o ônibus numa cidadezinha para conversar com algumas pessoas. O anjinho foi deixado lá, para ser enterrado - porque a viagem tinha de continuar para aquela meia centena de passageiros. Os pais não choraram nem se lamentaram. Talvez aquilo fosse comum no lugar de onde vinham. Na rodoviária da cidade grande o menino acompanhou os dois carregando as trouxas mulambentas no meio da multidão. Era tudo o que tinham - além do anjinho que ficou sozinho no meio do Brasil.

Tião Carreiro, Pardinho e Seleção de Pagode


quinta-feira, 12 de março de 2015

Emilinha Borba Fora do Samba


Um grito

Me pagam para bagunçar o coreto. Sou profissional em transformar manifestações em atos violentos, de preferência com mortes de inocentes. Tudo por uma causa. A minha é o dinheiro, porque me lixo para quem está pagando e para quem está morrendo. Faço isso desde os tempos dos gorilas. Cheguei à essência de dar apenas um grito no meio da multidão para tudo se transformar num inferno. Os queimados são os que vão atrás das palavras. Multidão é monstro sem cabeça. A cabeça sou eu. Do mal. Depois fico vendo na tv o estrago que causei. Gosto de fazer isso contando o dinheiro. Sempre peço em dólares. Dinheiro brasileiro é pobre como o povo. Este mesmo que é tudo maria vai com as outras e fica aceitando palpite de bandalhos piores do que eu. Esquerda e Direita são vermes da mesma espécie. Quem me paga está pairando acima disso tudo e sabe onde o estrago vai dar. Caras pintadas que respeito são aqueles fardados que baixam o porrete oficial para aumentar o estrago. Polícia. Não me meto com eles. Sei que há infiltrados no povão, mas conheço todos pelo comportamento. São policiais até se se vestissem de padre. Por isso sei onde me colocar. Sei quem são os que precisam apenas do grito. E eu grito. Depois vou descansar.

quarta-feira, 11 de março de 2015

embaixo

De Paulo Leminski


lá embaixo
vai ter
o que eu acho

Renato Borghetti Rancheiras


Ler e escrever

Sei ler e escrever porcamente. Isso se deve ao amor. Tenho um diploma pendurado na parede da minha cobertura. Esclareço que faturei muito por outros motivos. Se dependesse da minha leitura e da minha escrita, jamais teria saído daquele mocó na vila. Meu problema sempre foram as professoras. Não que elas não soubessem ensinar. A maioria sempre foi dedicada, apesar do salário de fome, mas a questão é que eu me apaixonava por todas, parecia vício - e lá eu queria saber de conjugação de verbos imperfeitos? Elas nunca me deram bola, mesmo porque eu ficava no fundão da sala e parecia um rato molhado, esmirrado e acuado. Concluí todas as etapas porque na escola pública é proibido repetir. Depois fiz uma faculdade de ensino à distância e ganhei o canudo. Coloquei alguém para olhar aquela tranqueira por mim - e fim de papo. Ganhei muito dinheiro de forma ilícita, mas sem matar ninguém, adianto. Também não tirei dos cofres públicos, porque isso eu acho uma sacanagem muito grande. Resolvi contar isso para que um parceiro meu treinasse o texto, como ele explicou. Quer ser escritor, o fulano. Eu fui contando o que queria, ele anotou e depois escreveu. Ele contar minha vida num livro. Eu disse que ela não vale nada. Ele disse que sou um vencedor. Aí já acho que é coisa de puxa-saco - coisa que não gosto. Mas eu tenho a grana e ele sabe ler e escrever.

terça-feira, 10 de março de 2015

Estrelas no muro

De Helena Kolody

Pintou estrelas no muro
e teve o céu
ao alcance das mãos.

Rita Lee Mania de Você


Protocolo do mundo novo

O número do protocolo era 108.454. Estava num papel amarelecido pelo tempo. Ele estava no sótão no meio de pilhas e pilhas de jornais e revistas velhas, exércitos de traças, cheiro de bolor. Encontrou aquilo numa caixinha de madeira de forma sextavada. Havia a indicação de um cartório. Imaginou ser algo deixado pelo avô ou bisavô. Nunca seu pai tinha-lhe falado a respeito. Não conhecia a mãe. Ela morreu quando ele nasceu. Se interessou pelo mistério. Curiosidade aguçada pelo forte sentimento saudosista. A casa onde morava parecia um museu de quinquilharias suas e da família. Foi atrás e depois de dias de pesquisa no arquivo-morto lhe entregaram um documento. Era uma escritura de terra. Muita terra. Localizou-a. São Francisco Xavier, em São Paulo. Abriu o Google. Viu serras, matas nativas, cores exuberantes. Foi até lá. Se embrenhou pelo seu mundo novo. Morreu poucos dias depois à beira de um regato. Tinha um sorriso no rosto. Deixou no mesmo cartório a doação para que preservassem o lugar onde descansou.

segunda-feira, 9 de março de 2015

Rabo de anjo

De Paulo Leminski

Casa com cachorro brabo 
meu anjo da guarda 
abana o rabo.

Ataulfo Alves Pois É


Sem palavras

Ele dominava o cavalo como se quisesse mostrar para o que era, lá no fundo que eu não conhecia - o que tinha ficado para sempre dos tempos em que viveu ali naquele pedaço de terra nos confins. Sentado na soleira da porta eu apenas olhava e ali estava a revelação do meu grande herói. O cavalo era muito mais bonito do que o do Ivanhoé do seriado que eu via na terra sem graça e distante. Terra cinza, sem árvores, onde ele era apenas um operário a cumprir a jornada diária da sobrevivência e a comer a marmita sempre esquentada na água do banho-maria. Espinha ereta, ia e vinha na estradinha de terra e areia. Cavalo na passada, como se estivesse numa passarela. E quando quando o senhor resolvia frear, as patas dianteiras do animal estancavam, escorregavam, levantavam poeira e o focinho baixava quase a tocar no chão. Depois o corpo se virava ao comando dos arreios e o percurso em linha reta era vencido como se o animal e seu dono flutuassem para meus olhos. Depois de algum tempo tudo terminou. Ele apeou da cela e entrou na casa sem dizer nada, como sempre fez e faria por muito tempo. Meu pai não precisava falar.

quinta-feira, 5 de março de 2015

elo

De Paulo Leminski

amar é um elo
entre o azul
e o amarelo

Elis Regina Atrás da Porta


Batatas

Me jogaram na cela como um saco de lixo. Eu me sinto assim desde que comecei a olhar o mundo. Me jogaram aqui porque o dono do mercadinho gritou um tempo depois que enfiei o saquinho de batatas fritas entre os peitos caídos e sem sutiã. Sou uma velha com poucos dentes, poucos músculos, nenhuma beleza e muita pobreza. Fiz aquilo por fome e achei que o saquinho não ia dar prejuízo. Dei uma moedinha no caixa para pagar a caixa de fósforos. Aí as batatas fritas pesaram e o saquinho escorregou e caiu bem entre os pés sujos. Saí correndo. Levei um safanão antes de chegar à primeira esquina. Perdi um dos três dentes que ainda me restavam. Veio a polícia e me jogou neste cubículo com mais 15 homens. Fiquei no meu canto. Eles me olharam com pena. O chefão me ofereceu comida. Eu comi e senti uma alívio no estômago. Não me deixaram explicar a situação para o delegado. Meus netos estão sozinhos em casa e não sei o que aconteceu com eles. Há mais de um mês estou aqui nesta imundície maior que a minha. De vez em quando sonho com aquelas batatinhas crocantes. Acordo com o gosto na boca.

segunda-feira, 23 de fevereiro de 2015

paciência

a doença boa da preguiça
a não vontade 
o ficar descalço
a paciência
comigo
e mais nada

sexta-feira, 13 de fevereiro de 2015

o fundo

De Paulo Leminski

viver é super difícil
o mais fundo
está sempre na superfície

Marco Pereira Estrela da Manhã


No camburão

Acordou com a luz do sol repartida em dezenas de furinhos. Não sabia onde estava. Lembrava apenas de um caubói que virou no bar metido a intelectual besta. Tinha perdido a conta de quantos velhos jacks tinha tomado. O local onde estava parecia uma caixa de metal. Meteu o pé numa lateral e começou a gritar. Abriram uma porta. Era a traseira de um camburão da Polícia Civil estacionado no pátio da delegacia. Ele estava todo mijado e vomitado. O tira o encaminhou ao plantonista. Ele foi cambaleando. Ouviu um sermão com o pastor policial olhando a documentação que revelava profissão de respeito. Ele perguntou como tinha ido parar na gaiola. Soube então que pegou um táxi, não deu o endereço para onde queria ir e ficou pentelhando o motorista - até que este o entregou na delegacia. Ele foi embora sem ter sentido um mínimo de vergonha. Tomou um banho, colocou roupa nova, trabalhou o resto do dia e, à noite, pediu uma dose dupla de Jack Daniels para rebater.

segunda-feira, 9 de fevereiro de 2015

Metro na cabeça

Era parente, brimo, mas como já tinha tentado lhe passar a perna uma vez, de forma escrachada, situação que o fez sair atrás do outro com um metro daqueles de madeira, pronto para abrir-lhe a cabeça, achou melhor recomendar toda a família para o perigo. O outro tinha olhar hipnotizador. Tanto que, contava, ele era capaz de roubar a carteira, tirar todo o dinheiro e e ainda receber agradecimentos da vítima pelo que fez.Enquanto falava isso, durante tempos, o que hipnotizava foi aumentando a fortuna - e o dinheiro dele, minguando, já que, para muitos, a sua honestidade tinha um componente fatal: as patas dos cavalos e o pano verde do jogo de carteado. Ambos passaram dos noventa anos e partiram. O desonesto deixou fortuna material. O honesto uma muito maior, tão grande que quem ouve a história através da recordação emocionada de um dos seus seis filhos, fica na torcida para que o tempo regrida - querendo que o metro de madeira rache a cabeça do sacana.

quarta-feira, 4 de fevereiro de 2015

Familiar

De Domingos Pellegrini

A felicidade familiar é como uma planta que cresce todo dia, todo ano, com novos ramos mas também folhas que caem, ramos que quebram, galhos que apodrecem, frutos sadios e frutos bichados, sendo os frutos os dias ou momentos, as folhas sendo as horas, cada uma diferente da outra como são diferentes os minutos.

Zeca Baleiro Lenha


Yes

A professora era a cópia piorada daquele atriz do filme "Quero jogar minha mãe do trem". Do tipo que não precisava abrir a boca para rosnar - e ela rosnava em inglês. Toda os alunos do terceiro ano ginasial morriam de medo dela, principalmente quando chamava o coitado lá na frente, ao seu lado, para fazer perguntas numa língua que ninguém entendia, apesar de amar os Beatles, Rolling Stones, Elvis, Sinatra e Doris Day. Ele resolveu matar a aula naquele dia, algo que nunca tinha feito na vida. Depois do recreio, ficou no pátio assoviando e conversando com a sombra. Só depois descobriu que era o único menino entre as alunas das salas que não tinham aula naquele horário.Foi parar na diretoria, levou um sabão e entrou com o rabo entre as pernas na sala onde ela, the monster, apenas o olhou e fulminou para sempre seu caminho para desvendar a língua dos que inventaram o futebol. Uma muralha então se ergueu e ele nunca se atreveu a ultrapassá-la. Sabe o que é yes e no. Se arriscou a desvendar um but. E ficou por aí, se arrependendo de não ter jogado um trem naquele trem.

terça-feira, 3 de fevereiro de 2015

Orgia do nexo

De Nelson Capucho

orgia do nexo:
no dicionário
as palavras fazem sexo
        



Irmãs Galvão Pedacinhos


Ateu sem convicção

Ele não acreditava em Deus até o dia em que a coisa apertou. Doença terminal. Tinha pouco tempo de vida. Ao saber, imediatamente tirou do repertório a piada em que o paciente fica sabendo pelo médico que tinha apenas três minutos antes de morrer; ao perguntar o que podia fazer, ouviu do especialista: “Um Miojo”. Resoluto, resolveu não se entregar ao pessimismo, como se isso fosse possível. Sua determinação durou trinta segundos. Foi para casa, jogou-se na poltrona, cochilou e, ao acordar, viu que fachos da luz do sol vazavam a persiana da sala e iluminavam pontos do tapete velho. Passou a acreditar em Deus imediatamente. De joelhos pediu um milagre e perdão por nunca ter acreditado na existência Dele. Sentiu um alívio no peito e dormiu tranquilo. Os meses se passaram. Ele morreu sem sentir muita dor. O corpo foi velado numa capela ao lado do cemitério. Apareceu um padre. Durante a reza uma mulher com maquiagem pesada perguntou à outra o que o da batina estava fazendo ali. Isso porque o morto, todo mundo sabia, era ateu convicto. A que ouviu o relato resolveu especulara. Achou que aquilo era um milagre porque ninguém da família teria pedido a presença do sacerdote por saber do ateísmo do que estava ali com algodão nas narinas. O da batina orou e, ao sair, foi chamado por um senhor que estava na porta do velório ao lado. Só aí descobriu que tinha errado de defunto.

segunda-feira, 2 de fevereiro de 2015

Aviso aos náufragos

De Paulo Leminski

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Tom Zé São São Paulo


Mistura e manda

Acordou com o poste na sua cara. A pancada do carro que dirigia abriu avenidas. Era madrugada. Desmaiou e ao “voltar” estava na maca de um pronto-socorro cercado de estudantes de medicina. Xingou a todos. Foi liberado com vários pontos no rosto e cabeça. À noite bateu cartão no boteco sórdido de sempre. Lembrou disso anos depois que o milagre aconteceu. Agora adora as centenas de garrafas com líquidos de várias cores e dosagens de álcool das prateleiras que percorre no supermercado. Sai do corredor, entra em outro e escolhe a garrafa de vidro de água com gás, com preferência para marcas europeias. Bebe em copo ou taça de cristal. Diz que fica mais louco – e muitos amigos dos tempos de bebedeira concordam. Só lamenta o desaparecimento do refrigerante Grapette, o único que se disporia a tomar, por conta de lembranças do tempo de criança em praias cariocas. Brinca dizendo que, se um dia tomar Fanta Uva, vão ter de chamar o serviço de remoções – e se misturar com gasosa de framboesa…

segunda-feira, 19 de janeiro de 2015