sexta-feira, 21 de outubro de 2016

Louco, eu?

Toda sexta-feira era santa, mas só por causa do meu santo. Ele já tomou muita cachaça na vida, aprontou muitas, mas como tinha sido batizado, protegido ficou das maldades maiores - feitas ou recebidas. Entortou postes, andou pela faixa contínua no meio de rodovias de tráfego pesado, dormiu sobre túmulos, vomitou em pratos, procurou conhecidos em prédios ainda em construção. Um dia acordou em casa com a cama cercada de policiais. Reclamação dos vizinhos e porta aberta para o que der e vier. Não deu nada, mas a mania de presentear em meio a porres satisfez a guarnição. Nunca chamou Jesus de Genésio. Fazia sempre o contrário. De vez em quando lembrava da noite em que viu, do alto da estrada velha de Santos, as luzes da refinaria de Cubatão em meio à neblina e à poluição que faz criancinhas nascerem sem cérebro. Achou que era uma catedral. Anos depois, quando entrou numa, numa ruela de Paris, encontrou um bar, um dj e rock comendo solto para a mudez de santos e anjos pendurados nas paredes. Pediu água e disse para si mesmo: "E eu é quem era louco..."

terça-feira, 13 de setembro de 2016

O beijo

Sempre, no início da noite, eu vou até a janela do quarto para fechá-la e baixar a cortina. Do lado de fora há um corredor estreito, com móveis velhos encostados, um pé de café gigante, uma horta anêmica, trepadeiras, etc. Quando chove, o cheiro daquela nesga de espaço, que tem uma boa quantidade de terra entre a parede da casa e o paredão do vizinho, faz lembrar um espaço tão grande que seria possível ver a Serra do Mar a quilômetros de distância. De dia, o lugar era bonito, mas estranho. À noite, quando ia puxar as duas lâminas da veneziana, o horror se instalava. Havia uma grade protetora entre o vidro e folhas de madeira. Era preciso enfiar o braço, esticá-lo e, sem ver, só no tato, libertá-las das garras dos homenzinhos de ferro que usam chapéu. Nessa hora, invariavelmente, imaginava algum bicho atacando mão, braço, tudo que podia. Que bichos? Os piores. Talvez algum outro monstro sem identificação. Não importa, era sempre assim. Como não acontecia nada, era um alívio terminar a operação . Mas outro dia aconteceu. Pegaram meu braço, puxaram, e minha mão foi envolvida por algo estranho. Não havia garras, dentes ou qualquer outra coisa dilacerando pele, carne, ossos. Quis gritar, mas não deu. Estava paralisado. Foi aí que senti os lábios beijando minha mão. Olhei e não vi nada, mas sentia tudo. Então, apareceu. Era apenas uma boca flutuando no espaço- e eu a conhecia. Scarlett Johansson então disse bye e nunca mais surgiu no tempo enorme que, depois disso, passei a deixar meu braço esticado dentro do escuro daquele corredor. 

um bom poema

De Paulo Leminski

um bom poema
leva anos
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha,
sete levando porrada,
quatro andando sozinho,
três mudando de cidade,
dez trocando de assunto,
uma eternidade, eu e você,
caminhando junto

Wilma Bentivegna Hino ao Amor


quinta-feira, 25 de agosto de 2016

Flor amarela

Tinha uma flor amarela, simples, em cima de pedras de uma calçada. Ela saía da terra, onde estava acompanhada de grama, ervas daninhas, outras nem tanto, e parecia querer beijar o lado bruto, pétreo, brilhante ao sol do meio-dia. A sombra do caule e daquele minúsculo buquê a acompanhava. As pessoas passavam perto, algumas quase pisavam a flor - e ninguém prestava atenção naquilo, apesar de o amarelo parecer a cabeça de um cogumelo de bomba atômica visto de cima no deserto. Sentei perto e fiquei observando. Ver deus seria isso? Eu já vi, mas foi no galho de uma araucária centenária balançando num dia de céu cinza e vento forte. Silêncio. Deus é silencioso, luminoso e nunca fez uma oração para ser decorada. Um menino parou ao lado. Três anos? Se deitou e colocou o rosto perto da flor. Pensei que ia arrancá-la. Não. Ele primeiro a cheirou e depois a beijou. Aí, levantou e foi correndo feliz pela calçada. A mãe enxugou uma lágrima.

Fabio Zanon


Atraso Pontual

De Paulo Leminski


Ontens e hojes, amores e ódio,
adianta consultar o relógio?
Nada poderia ter sido feito,
a não ser o tempo em que foi lógico.
Ninguém nunca chegou atrasado.
Bençãos e desgraças
vem sempre no horário.
Tudo o mais é plágio.
Acaso é este encontro
entre tempo e espaço
mais do que um sonho que eu conto
ou mais um poema que faço?

quarta-feira, 24 de agosto de 2016

Dois

No meu reino só cabem duas pessoas - e eu não me suporto. Brigo constantemente porque sempre acho que o outro falhou e ele me diz claramente que a cagadona é minha. Não tenho lembrança de quando descobri esse mala que me atormenta diariamente e muitas vezes  nos meus sonhos. Às vezes entramos num acordo, mas logo há esfaqueamentos mútuos, cuspidas, chutes no saco, etc. Quem inventou isso foi um grande filho da puta - e não me importo se algum de vocês pensar em deus, qualquer que seja. Eu queria ser feliz, mas uma vida inteiramente assim com certeza seria um porre sem a mínima graça. Mas também não queria o tormento, o fio da navalha rondando a retina da alma, o sangue explodindo na cara, a morte sempre na espreita, os outros querendo entender. Caralho! Eu não entendo porque tenho essa outra pessoa aqui dentro - e não há como assassiná-lo. Talvez isso seja vida. Talvez isso seja resultado do vírus nosso dos infernos. Como vou saber? Entendo tiro de calibre doze no céu da boca. Deve ser por isso. 

Amar você é coisa de minutos…

De Paulo Leminski


Amar você é coisa de minutos
A morte é menos que teu beijo
Tão bom ser teu que sou
Eu a teus pés derramado
Pouco resta do que fui
De ti depende ser bom ou ruim
Serei o que achares conveniente
Serei para ti mais que um cão
Uma sombra que te aquece
Um deus que não esquece
Um servo que não diz não
Morto teu pai serei teu irmão
Direi os versos que quiseres
Esquecerei todas as mulheres
Serei tanto e tudo e todos
Vais ter nojo de eu ser isso
E estarei a teu serviço
Enquanto durar meu corpo
Enquanto me correr nas veias
O rio vermelho que se inflama
Ao ver teu rosto feito tocha
Serei teu rei teu pão tua coisa tua rocha
Sim, eu estarei aqui

segunda-feira, 22 de agosto de 2016

Editar é viver

Agarrei a testa com força, fechei os olhos, forcei o pensamento tentando criar algo novo, uma história, um delírio, a descrição de uma cena nunca vista, algo no futuro... Nada. No cinema mudo do quengo só fatos ocorridos durante a longa e estafante vida. Escrever sobre o passado é muito bom, porque dá para distorcer - e tudo é distorcido porque é assim mesmo. Também podemos editar do jeito do que a gente quer. Viver para contar, como disse o grande Gabo. Aquele teste para entrar na empresa gigante e começar a ganhar dinheiro escrevendo, mesmo sem nunca antes ter escrito nem bilhete com poema panaca para a namorada. Tempo de máquina de escrever, mas quem disse que a datilografia era dominada? O melhor foi a o teste de reportagem onde, numa mesa do restaurante da tal editora, entrevistamos, eu e outro colega que tentava o milagre, as estrelas de uma revista de informação semanal. Claro que não sabíamos quem eram e muito menos que o que iria analisar nossas invenções estava ali. Ele mesmo perguntou porque um dos atrevidos não anotava nada. Apontei o indicador para  têmpora direita e expliquei que guardava tudo ali. No dia seguinte, por ter ali se alimentado, o outro aprendiz foi parar no pronto-socorro com intoxicação ´- e não pode escrever seu texto na data prevista. Claro que era mais um molho para a reportagem, colocado bem no final do catatau escrito primeiro à mão e depois catando milho durante horas para deixar a coisa impressa na lauda. Os dois passaram na peneira e até hoje enganam por aí. Faz tempo... Ah, sim, veio uma ideia sobre o que poderia inventar como ficção futura: ao tentar limpar a máquina de escrever velha, ele prendeu o dedo de tal forma nas engrenagens, que morreu ali, pois morava sozinho e não dava para carregar o trambolho até a rua para pedir socorro.

O homem de ferro

De Marcos Prado


Êxtase sob dureza!
Voltemos à idade do ferro!
Ferro! Sobre ferro!
Não haverá terra pra suportar o que peso!

Morte lenta a quem enferruja!
Abelhas dentro da armadura!
Merece chumbo a cultura!
Um homem se conhece pelo tamanho da ferradura!

Não haverá mais remédios!
Os belos serão os bélicos!
Elmos no lugar de cérebros!
O ferro-velho tomará os cemitérios!

Vinicius de Moraes Canto de Ossanha


quinta-feira, 18 de agosto de 2016

PENÚLTIMA

De Marcos Prado


Como posso agora estar alegre? 
era de se esperar que eu desesperasse 
talvez mais tarde eu desintegre 
entre o penúltimo gole do último porre 
e leve ao meu lado os que me seguem 

sim, 
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho, 
mas aprendi que o céu é mais embaixo 
ainda não sei o quanto dei 
a tantas quantas amei 
ainda não sei ao certo se eu errei
Marcos Prado

Elza Soares Mas que Nada


Fura meias

Como vou pensar no paraíso se estão enfiando agulhas embaixo das unhas dos meus pés? É uma frase forte? Não dá para saber - e que os ativistas sob o calor dos edredons não pensem em tortura de militares, policiais, etc. É só uma frase de alguém que teve o rumo da vida normal atropelado por uma enfermidade, que não é fatal, mas tirou sua energia e dificultou a respiração e o simples ato de tomar um copo de água. Quanto sacrifício, mesmo sem dor, apenas com um incômodo que grudou na alma como se dela insista em nunca mais sair! Será isso um exercício de paciência para, depois, dar valor à vidinha normal e saudável? Quantas perguntas! Não há respostas - e se alguém falar sobre isso, como aconselhamento, corre o risco de levar um contravapor, para deixar de ser besta. O paraíso é visto num álbum de fotografias de vários lugares do mundão. Olha lá a felicidade num barquinho singrando o Rio Amazonas e vendo um transatlântico iluminado navegando em sentido contrário! Praias, lagoas, sítios. Tudo devidamente grudados no papelão cinza por cantoneiras daquelas. As unhas estão intactas. Falta cortar. Estão a furar meias. Vai ver que é isso.

quarta-feira, 17 de agosto de 2016

Dinheiro na conta

Juro que ouvi. Apertei um botão do rádio do carro emprestado e lá estava o pastor, de voz rouca, ouvindo os milagres dos fieis que tinham ido ao encontro do manto sagrado, divino, ou algo parecido. Os médicos em geral são considerados uns paspalhões que não conseguem resolver o que uma passada de mão no tal pano dá um jeito – e automaticamente. Entrou no ar, então, uma mulher de voz esganiçada, para contar o que aconteceu com ela. Disse que estava matando cachorro a grito, como todo brasileiro normal, mas que depois de ter ido à tal igreja, começou a aparecer dinheiro na conta dela. “Numa semana tinha cinquentão. Na outra, mais de mil e quinhentos”. Até o guia espiritual, que já ouviu milhões de histórias malucas, não acreditou muito e perguntou se ela tinha certeza. Ela disse que sim. Era o que eu precisava. Fiz um cavalo de pau na caranga e parti direto para o templo, a fim de me enrolar no manto e ficar esperando depósitos vindos de qualquer lugar daqui ou do além. No caminho, entretanto, o bom senso me pegou pelo colarinho. Imaginei então a cena do microfone desligado e o pastor pedindo para a mulher doar todo dinheiro que entrava para a igreja – afinal, é assim que Jesus Cristo salvador quer.

não sei

De Paulo Leminski

pelos caminhos que ando
 um dia vai ser
   só não sei quando

Celly Campello Estúpido Cupido


terça-feira, 16 de agosto de 2016

de pano

De Sérgio Rubens Sossélla

a bonequinha de pano.
o quanto envelheceu.

João Nogueira Batendo a Porta


Cova funda

Nunca tive medo da morte. Questão lógica. Nasceu, morreu. No meio tem um monte de atrapalhadas. Alguns momentos de extrema felicidade - e muitos de monotonia total. Desde que me entendo de gente, sempre falei sobre o vestir o paletó de madeira com a maior naturalidade, mesmo porque um avião poderia cair na minha cabeça a qualquer hora. Gostei de saber da moda no México onde uma funerária atende os pedidos do morto (quando vivo) e faz o velório nos lugares que ele mais gostou em vida. Tem um lindo, do sujeito sentado à mesa do bar e o resto em volta na maior naturalidade. Acho que ali, em vez de um gole ao santo, davam ao morto presente. Meu sonho nunca chegou a  tanto. Primeiro porque velório não é uma palavra do meu dicionário. Acho tudo aquilo uma hipocrisia só. Por isso resolvi cavar minha cova desde que consegui sobreviver até os quarenta anos. Cavava devagar, num terreno à beira de um lago, silêncio quase total. Devagar, mas constantemente. O buraco passou - e muito! - dos tradicionais sete palmos. Mais parecia um poço. O tempo foi passando e eu me dedicando cada vez mais. Virou vício. Até que um dia me toquei e resolvi fazer outras coisas. Não deu. Morri atrofiado.


segunda-feira, 15 de agosto de 2016

Cartola Sim


pergunte ao sapo

De Paulo Leminski


noite alta lua baixa
pergunte ao sapo
o que ele coaxa

Atrás da porta

Disfarcei bem porque sabia que em casa ninguém ia entender. Aproveitei um momento em que estava sozinho e levei o objeto para trás da porta do banheiro do escritório. Dificilmente entrariam ali. Fiquei sossegado. De vez em quando dava uma olhada, passava a mão na lâmina - mas também não entendia porque tinha comprado. Nada a ver com apoio a movimento ou reverência ao famoso símbolo vermelho. Sim, comprei uma foice, dessas que toda hora vemos nsa mãos de integrantes do MST em manifestações. Novinha, cabo de madeira comprido... uma arma e tanto. No dia em que descobriram, por acaso, a presença dela como parte integrante da coleção de armas brancas, comecei a pensar de fato no motivo de tal aquisição. Provavelmente um filme daqueles de fotografia deslumbrante, com o camponês usando a ferramenta para cortar algo cor de ouro, seguindo a sinfonia do vento. Pode ser. Pode não ser. Sei que ela está lá quietinha com sua lâmina curva, muita afiada, esperando algum movimento. Nisso eu não penso.

quinta-feira, 11 de agosto de 2016

Surto

Me convenceram. Sou candidato. Não tenho um puto de tostão furado. Disseram que isso faz parte da estratégia. Para enganar os que estão em situação igual. Eles vão votar em mim, garantiram. Me convenceram porque acreditam que sou honesto. Caso raro. Precisam ter mais gente para que o partido a consiga o que quer. O que? Fazer o bem para o povo, me disseram. Mas quando ouvi isso, todos na minha frente estavam olhando para o chão. Teve gente que se virou. Acho que riam. Passaram uns dias e um jornalista veio me entrevistar. Foi a primeira vez na minha vida. Eu disse que não sabia o que faria caso fosse eleito. O mané deu uma risadinha, como se soubesse de tudo. Vi minha cara na tv durante a campanha. Uma vez só. Fui um dos mais votados. Eleito, foi aquela badalação dos donos do partido. Já falavam dos planos para mim, do que eu poderia ganhar falando em nome dos durangos. Renunciei antes de assumir o mandato. Ninguém entendeu. Expliquei - e não acreditaram. Quando aceitei o convite, estava em surto psicótico. Depois, passou.

a voz

De Sérgio Rubens Sossélla

a vozque disse
no princípio era o verbo
transferiu-se do gênesis
e me espera no apocalipse
(minhas mãos vazias que o digam)

Sergio Reis Coração de Papel


quarta-feira, 10 de agosto de 2016

um bom poema

De Paulo Leminski

um bom poema leva anos 
cinco jogando bola,
mais cinco estudando sânscrito,
seis carregando pedra,
nove namorando a vizinha, 
sete levando porrada, 
quatro andando sozinho, 
três mudando de cidade, 
dez trocando de assunto, 
uma eternidade, eu e você, 
caminhando junto

Telefone

Que doce ingenuidade era dele! Achava que era só entrar numa loja e comprar um aparelho de telefone e, pronto, podia falar com o mundo. Nunca fez isso, mesmo porque tinha medo das modernidades e, pelo que lhe falavam, o telefone custava os olhos da cara. Nunca teve um automóvel, apesar de ter passado um período de bonança nos negócios. Como dirigir uma geringonça daquela? Era do tempo do lampião a gás. Mais que isso: de onde veio, quando a noite caía, a lamparina era quem iluminava. Por isso, nunca esquecia as noites de lua cheia no sítio, pois tudo ficava como se dia fosse. Foi embora antes que a revolução dos computadores tomasse conta do mundo. Sim, ainda pegou a expansão da rede telefônica e, lá para onde voltou, nos grotões do fim do mundo, instalaram um aparelho onde podia falar com os filhos que estavam a léguas de distância. Não era de muito papo, e sempre meio desconfiado, mesmo porque quase não gastou nada para ter o aparelho falador que era da cor cinza. Um dia recebeu um telefonema de um parente da Europa. Não acreditou que aquilo era possível. No que fez bem. O outro queria uma grana emprestada.

Rita Lee Ovelha Negra


terça-feira, 9 de agosto de 2016

Ó, céus

De Roberto Prado



nenhum pio
nada de nuvens
não há azul

ó, céus!, que são tantos,
que cada um tem o seu
e ainda tem quem não veja
quando a gente cai do céu

Miau

Sou do tempo do seja o que deus quiser ou, num melhor tradução, foda-se o mundo porque não me chamo raimundo. Quando descobri que o mundo tinha um acelerador só pra mim, pisei até o fim – e dá-lhe postes pela frente para desviar ou se esborrachar. Podia sair da casa dos pais com mochila nas costas e cantando Sá, Rodrix e Guarabira. A outra opção era casando. Fiz a mais tresloucada. Com pouco mais de vinte anos já era pai, depois vieram mais dois filhos e nunca os avós receberam um pedido de socorro, mesmo porque não concordavam com a primeira patuscada e eram pobres. Vida que segue. Hoje todos as crianças são adultas e, como diziam antigamente, com orgulho, formados. Mas… cadê meus netos? Essa moçada parece encruada. Sabem tudo de internet e o caralho a quatro, agora caçam pokemons e eu pergunto se dá para fritar o bicho pra gente comer. Eles riem na minha cara, porque sou um velho dinossauro. A que teria mais chances de me dar o “filho com açúcar”, a mais nova, não sei porque cargas d’água é a mais equilibrada e ajuizada da tropa. E o que ela fez? Cria duas gatinhas que eu já chamo de netas. Miau!

segunda-feira, 8 de agosto de 2016

Murrasco

Murrasco. A palavra veio no meio de uma conversa - mas só na minha cabeça. Não soube o motivo e não sabia o significado. Passei quase 24 horas encafifado. Claro que procurei no gugol e nos dicionários tradicionais. Nada. No meio da madrugada ouvi uma voz. Era da minha mãe: "Onde você esteve, peste, que está com esse cheiro de murrasco?" Seria o que o cheiro? Mais alguns dias com aquilo martelando e lá vem de novo minha mãe, que deus a tenha, falando em fogueira, em fumaça. Era isso! Aquele cheiro que fica impregnado até na alma se ficamos perto de uma fogueira ou mesmo churrasqueira fumacenta. Murrasco! Então pensei nas festas de fim de semana dos bacanas de Brasília, onde carnes nobres são servidas, etc. Os poderosos se entopem de comida - e os pobres empregados ficam com o murrasco. Assim é.

a sério?

De Paulo Leminski

rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?

Milton Nascimento Maria Maria


quinta-feira, 4 de agosto de 2016

Hora da cobrança

A fatura do corpo um dia aparece. É a cobrança. Ela veio com a idade, exatamente quando ele achava que estava numa fase esplendorosa. Tinha passado por tudo na época em que se achava imortal. E não é que era mesmo! Experimentou todas as drogas lícitas e ilícitas e o máximo que ficou marcado no corpo foi uma cicatriz no meio da testa - porque acertou um poste durante uma apagamento de bebedeira. Sobrevivente, espantou a todos por virar um careta que só tomava água. Até que um dia... Acordou estranho, corpo ardendo em febre. O primeiro espirro foi tão forte que quase uma ponte-móvel voou boca afora. No segundo, escorreu aquela nata do nariz. Ele chamou a mulher e pediu um papel para escrever o testamento. Ela disse para se acalmar, afinal, aquilo era apenas uma gripe. Ele não ouviu. Pediu que telefonasse para um amigo dono de hospital. Queria reservar uma UTI.

Por um lindésimo de segundo

De Paulo Leminski


tudo em mim
anda a mil
tudo assim
tudo por um fio
tudo estivesse no cio
tudo pisando macio
tudo psiu

tudo em minha volta
anda às tontas
como se todas as coisas
fossem todas
afinal das contas

Agnaldo Rayol Onde Estará Meu Amor

quarta-feira, 3 de agosto de 2016

No paraíso

Uma pequena enseada com areia fina e branquinha, uma montanha protegendo-a - e esta coberta por um manto de mata explodindo de verde. Olhei e pensei no quanto tinha esperado pelo momento. Viajei anos, comi o pão que o diabo amassou, sobrevivi a tudo, inclusive tentativa de assassinato. Fui atrás porque a cidade grande caiu sobre minha alma num dia em que acordei e vi que não havia cor no céu. Sem família, sobrevivendo de um trabalho escravo que me esgotava os nervos e rendia apenas para a comida mínima e o aluguel da pensão, o que poderia me impedir? Família eu não conhecia desde que nasci. Fui e, agora, estou aqui, num canto desconhecido do Brasil. Sentei e depois deixei meu corpo cair na areia. Ouvia só o barulho do mar e o canto de alguns pássaros. De repente me cutucam. Era um sujeito estranho, de óculos escuros e chapéu de abas largas. Ele pediu para que eu me retirasse dali. Isso mesmo! Nem perguntei por quê. Ele avisou que a praia tinha sido alugada para que gravassem um comercial de cerveja. Saí correndo. Agora não sei mais para onde ir.

VÔO

de Nelson Capucho

não existe sorte
azar não existe

tudo é risco
arrisque

leão de zôo
tem os olhos tristes

                  

Tim Maia Gostava Tanto de Você


segunda-feira, 1 de agosto de 2016

Estrela no olho

De Paulo Leminski

A noite me pinga
uma estrela no olho
e passa.

João Gilberto Desafinado


Colonoscopia

Seria o fim? O médico examinou e balançou a cabeça negativamente. Não mentiu. Disse que estava preocupado com aquela barriga grande e dura. Pediu todos os exames possíveis, mas o que encafifou o paciente foi a tal de colonoscopia. Ok, ele tinha relatado o aparecimento de sangramento, mas nunca tinha feito tal prospecção, apesar de já ter quase 70 anos. Fez os outros, mas ficou preocupado com aquele, apesar de muita gente que já tinha se submetido ao tal ter tentado lhe acalmar. Ele sabia que seria anestesiado e só voltaria depois de tudo terminado. O medo dele eram as fotos do seu interior. A preparação para tal exame foi um martírio. Ele acha que colocou a alma para fora na véspera. Fez a coisa, o resultado saiu na hora. Olhou as fotos, horríveis, mas leu que estava tudo dentro da normalidade. Ao voltar para casa, com uma médica da família que o acompanhou no dia de céu azul e sol forte, de repente falou, do nada, enquanto esperavam o sinal abrir para seguir caminho: “No fim de tudo o fim prevalece”.

quarta-feira, 27 de julho de 2016

O primeiro

Tinha um caderninho fechado com um elástico. Pequeno. Guardava longe da vista dos familiares. Mas alguns tinham notado e, com o tempo, foi crescendo o mistério sobre o que estava escrito naquelas páginas - que não eram muitas. De vez em quando ele olhava para o objeto. Mas não abria. Deixava da mesma maneira que trouxe de uma longa viagem além oceano. Era um observador, uma espécie de retratista de cenas, situações, locais. Talvez ali tivesse anotado o que mais lhe falou à alma na longa travessia que fez sozinho pela primeira vez por aqueles países distantes - e que ele só conhecia por flashes em filmes. Ficou velho, doente - e ninguém se atrevia a perguntar o que estava escrito nas pequenas páginas e o que queria fazer com ele. Perto da morte, pediu a um dos filhos que o caderno fosse cremado junto. Determinou até o bolso em que fosse colocado. O herdeiro então se atreveu a questionar o que havia naquelas páginas. O velho respondeu que era seu primeiro livro.

CAÇADOR E VÍTIMA

De Miguel Sanches Neto



Escrever é caçar caranguejos
à maneira do guaximim.
Enfiando o rabo no buraco
onde se aloja  o crustáceo,
ele espera que este o morda
como suas impiedosas tesouras
para sacar logo em seguida
a presa cravada em sua cauda.
O próximo passo é saboreá-la
— a memória da dor em carne viva.

Enquanto espera, o guaximim chora,
sofrendo de antemão a investida.
Caçador e vítima, é sua própria isca.
Contorcendo-se nesta emboscada,
o sabor e a cicatriz ele preliba
— a água na boca é a mesma das lágrimas.

Roberto Carlos Nossa Senhora


terça-feira, 26 de julho de 2016

No açougue

Um dia fizeram a pergunta tradicional: o que você quer ser quando crescer? O menino não pestanejou e respondeu na bucha: açougueiro. De onde tinha tirado aquilo, os pais nem imaginavam. Mas ele, sim, porque ficava encantado com tudo o que acontecia no açougue onde a mãe comprava o bife nosso de cada dia. Via alguns parrudos descarregando dos caminhões frigoríficos peças enormes nas costas, camisetas manchadas de sangue e o pedaço do bicho com uma pata só apontando para o céu. E quando o açougueiro cortava a peça de coxão mole com a destreza de um cirurgião... Ele entrava em êxtase acompanhando o fio da faca partindo a carne - e os bifes descansando uns sobre os outros antes da hora inesquecível de o profissional pegá-los com a mão para pesar e embrulhar. Ele relembrava tudo na hora de comer - e, claro, sempre pedia o seu pedaço de carne mal passado. Outra lembrança era a carne sendo moída e saindo dilacerada pelos orifícios da máquina trituradora. Assim cresceu. Bem que tentou transformar em realidade o sonho. Não deu. Trabalha numa floricultura. Cuida das orquídeas. As mais lindas da cidade.

Aviso aos náufragos

De Paulo Leminski


Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Henrique Cazes Brincando com Cavaquinho


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Acaba?

De Paulo Leminski

Amor, então, 
também, acaba? 
Não, que eu saiba. 
O que eu sei 
é que se transforma 
numa matéria-prima 
que a vida se encarrega 
de transformar em raiva. 
Ou em rima.

Elza Soares Mulher do Fim do Mundo


No pântano

O pântano fétido. Nada perto. Atolado até a cintura ele tentava caminhar. Bichos comiam o que de pele estava exposto. O olhar duro mirava algo adiante – e ele seguia adiante, com uma determinação pouco comum para alguém mimado e criado em cidade grande. Lá estava ela, agora mais perto. Uma única flor branca naquele pedaço feio, fantasmagórico. Chegou lá depois de muitos e muitos dias. Nem lembrava mais porque entrou ali, sozinho. Lhe veio a expressão “sozinho e Deus”. Sentiu o perfume, inebriante. Foi tocar uma pétala – estancou. Embaixo havia uma caixa de madeira bem trabalhada. Pegou e abriu. Um pergaminho bem conservado lhe fez a revelação. Ele começou a chorar ao mesmo tempo que uma chuva forte começou a cair. Todo o esforço para aquilo? Como voltar para a cidade? Tentou rasgar o documento. Não conseguiu. Então, leu de novo: “O homem criou os deuses para ser filho deles e esconder a verdadeira imagem destrutiva e maligna”. Ficou por lá mesmo. Ninguém foi procurá-lo.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

arrepio lancinante

De Dalton Trevisan

Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder — o arrepio lancinante no céu da boca.

Criolo Bogotá


Aurora

Fui ao planetário, fiquei olhando para o teto e mostraram lá a aurora boreal. Explicaram o fenômeno, mas nem liguei. Fiquei encantado e com vontade de ver ao vivo, lá nos confins, onde a Terra faz a curva. Saí dali crente que conseguiria realizar o sonho de menino, 12 anos, a vida sendo ainda um mistério de fantasia. Esqueci, fui sendo atropelado pela realidade, trabalho em caixa de banco, dinheiro contado, nada - nem de viagem até a praia dos farofeiros. Até que um dia a Aurora veio até meu guichê. Alta, tranquila, vestido estampado mostrando cintura de pilão. Ela abriu um sorriso tão esplendoroso ao dizer que queria depositar dez reais na conta, que eu perdi o rebolado. Fiquei pasmo. Só então perguntei o nome e ela disse Aurora, não Orora, como na música. Era mais que boreal, era o próprio universo concentrado naqueles olhos, no tom da voz. Perguntei o sobrenome e veio um Silva como se fosse da mais nobre das famílias europeias. Gamei. Ela deu o número de telefone e nunca mais nos desgrudamos. Aurora. Não preciso ir atrás. Durmo com uma toda noite.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Cansei

Pisquei e descobri que estava trabalhando há 45 anos. Sem parar. Feito um autômato que se alimentava do prazer do próprio ato do trabalho. Não vou dizer o que faço, apenas que é extenuante física e mentalmente. Pisquei de novo e me perguntei o que foi feito de minha vida durante todo esse tempo. Sim, tenho família, os filhos criados, casa de alto padrão, um apartamento na praia, um sítio, boa reserva financeira, essas coisas. Nunca curti. Quase não fui a estes lugares - e muito menos viajei.  O trabalho. Pra que tudo isso? Meu corpo está em frangalhos. Outro dia que tive um piripaque no coracebo. Desmaiei. Bati com a cabeça na quina da mesa de trabalho. Sangue escorreu e melou o tapete. Quando acordei, a visão estava vermelha. Foi aí que pensei em tudo, assim, num piscar de olhos. Parei. Fui pra casa, tomei um banho bem quente, coloquei pijama limpinho e não o tirei mais. Cansei de cansar. Eu não tinha noção disso. Vou viver mais. Flanando.

Cruel

De Marcos Prado


Curitiba é uma cidade tão cruel com as pessoas que criam que não basta você ir para São Paulo e pro Rio e as pessoas te reconhecerem não...Você precisa morrer para as pessoas te reconhecerem!

Céu Perfume Invisível


terça-feira, 19 de julho de 2016

Templo

Guardei aquela folhinha. Faz muitos e muitos anos. Eu tinha acabado de pedir um bolinho de carne no boteco que era boteco, não essas imitações que só enganam os trouxas que pagam pela decoração retrô. Depois da primeira mordida, o molho de pimenta penetrando no interior do salgado, um gole de cerveja e... Estava ali, entre algumas garrafas empoeiradas. O templo, sem identificação, parecia todo feito em ouro. Pelo horário em que a foto foi feita, no final de uma tarde luminosa, só poderia mesmo hipnotizar. Chamei o dono do bar, pedi mais um bolinho, outra cerveja - e aquela imagem. Era antiga e, imaginei, não tinha ido para o lixo por causa da beleza. Guardei em casa no baú onde estão as coisas que marcaram minha retina. Outro dia tirei de lá. A parte de cima da foto estava rasgada, mas nada que comprometesse o templo. Olhei tudo com carinho, verifiquei se havia uma identificação. Não havia mesmo. Agora procuro na internet todos os monumentos indianos para ver se encontro este local de adoração. Se achar, assim que puder, vou pra lá. Porque assim é.

espelho

De Sérgio Rubens Sossélla


sim
eu no espelho
vim

Sivuca Quando me Lembro


segunda-feira, 18 de julho de 2016

O vento e a curva

Hoje todo mundo fala. Todo mundo sabe tudo. Paga-se para centenas de imbecis ficarem cagando regras, por exemplo, sobre futebol. Se jogarem uma bola na direção deles, saem correndo na direção oposta. Mas sabem tudo e, de vez em quando, recebem um contravapor de um boleiro para deixar de falar besteira. Em economia, política, sexo, etc., há os especialistas. A moda agora gira em torno dos chefs de cozinha - e todo mundo virou cozinheiro de chapelão e uniforme. Qualquer hora vai aparecer aquele que vai analisar a personalidade da pessoa através do cocô, bolo fecal, troço, tolete, produto interno bruto. Foi por tudo isso que zarpei e não quero saber de nada - mesmo porque não sei de nada. Simplesmente cansei dessa palhaçada toda. Para quem insiste em me dizer que leu não sei o quê ou viu não sei onde, tenho uma resposta pronta para calar a boca de quem quer me incomodar: "Onde o vento faz a curva eu passo reto".

deito

De Paulo Leminski

tudo dito,
nada feito,
fito e deito

Amelinha Foi Deus quem fez Você


quinta-feira, 14 de julho de 2016

Jardim encantado

Eles me levaram porque estava falando com a parede - há um bom tempo. Começou porque ali havia um jardim muito florido e o natural encantamento de quem nasceu no mato. Quando viemos para a cidade, a sorte foi achar aquela casa bonita, ensolarada e com um quintal enorme, sem muros, que se estendia para os lados até perder de vista. As folhagens e as flores nasceram porque plantadas com amor. Muita gente pedia mudas - ninguém se atrevia a entrar e roubar. Ganhavam apenas aquelas que eu achava que mereciam. Foi então que veio o muro - erguido exatamente por alguém que tinha ganho as mais lindas flores. Não houve conversa. De um dia para o outro o paredão estava lá. O pior é que tudo do lado de cá começou a murchar, a morrer - e uma tristeza invadiu a casa e o coração de quem morava nela. Fui falar com o muro, tentando convencê-lo do quanto seria bom para todos se ele caísse, sumisse, para que tudo voltasse a ser como antes. Tentei em vão. Me levaram enrolado. Me deixaram dentro de uma sala com paredes acolchoadas. Não vou tentar me matar. Mesmo porque consigo ver e sentir aquele jardim encantado.

saudade

De Sérgio Rubens Sossélla

as pinturas
os retratos nos olham
com saudade


Tom Zé Só (Solidão)


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Confissão

Na calçada da avenida movimentada. Dia de semana. Trânsito intenso. Do outro lado, uma igreja antiga e um padre velhinho na porta. Deu o estalo. Há séculos sem uma confissão. Pecados? Quase todos. Esperei uma brecha, atravessei e fui falar com o sacerdote. Sim, ele poderia me confessar, mas perguntou antes meu estado civil. Nunca sei direito o que falar, mas oficialmente sou divorciado. O padre então disse que era impossível atender meu pedido, pois divorciados não podem confessar, pagar a penitência e comungar. Eu disse então que poderia ter mentido para ele, revelando que era solteiro ou viúvo e que, lá dentro, no confessionário, contaria mentira. Ele fez de conta que não ouviu e entrou pela porta enorme. Fiquei ali parado. Fiz o sinal da cruz e pensei tantas coisas que, só elas, me acarretariam uns dez terços para me livrar dos pecados. Amém.

No mundo da lua

De Helena Kolody

Não ando na rua.
Ando no mundo da lua,
falando às estrelas.

Martinha Eu te amo mesmo assim


terça-feira, 12 de julho de 2016

Branca

Sempre esteve aqui ao lado, mas nunca pensei que ali estava a explicação que nunca consegui. Xangô com seus dois machados empunhados. Saravá! Bati forte no peito, como vi a mãe de santo fazer no terreiro, e com a ponta do dedo indicador alisei a lâmina. O corte, a dor, o pingo de sangue - mata, cachoeira e pedreira eu senti. Soube então porque desde sempre fui juntando todo tipo de arma branca: faca, punhal, navalha, foice, canivete, bisturi. Juntos numa gaveta pouco abaixo do meu santo, o silêncio metálico à espera de algo, talvez nada, talvez a justiça. Quando abri o local, a gota de sangue batizou a peixeira. Ela veio lá de cima, onde andava enfiada na cintura da calça bem no meio das costas de um homem sereno que nunca precisou furar o bucho de ninguém, mas que sempre estava atento. Olhei Xangô. Ao lado, uma imagem do mesmo tamanho de Nossa Senhora Aparecida parecia dar equilíbrio a tudo. Arma branca também é paz.

epitáfio para o corpo

De Paulo Leminski


Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

Clara Nunes Canto de Areia


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Delírio

Fiquei cego no orquidário. Depois de anos voltei a ver os mesmos monstros e bichos iguais àqueles dias em que estive amarrado na cama. Delírio. Urrava tão alto, com medo de ser devorado pelo medo, que os outros pacientes reclamaram com a direção do hospício. Décadas depois sem beber uma gota de álcool, aconteceu. Primeiro olhei com carinho uma orquídea branca que veio dos confins do mundo. Fechei os olhos naquela estufa para sentir o perfume inebriante e, quando olhei de novo aquele paraíso, lá estavam eles - e ceifando todas as plantas. Como num pesadelo acordado, fiquei imobilizado. Não podia gritar dessa vez. Não sabia o que fazer. Pensei então em todas as coisas bonitas que aquelas plantas poderiam proporcionar. Quantas declarações de amor e de amizade? Então tudo voltou ao normal - e só então vi quantos brotos estavam para nascer em todas elas. Era o futuro, como no presente e passado.

O que quer dizer

De Paulo Leminski


O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

Maysa Alguém me Disse


quinta-feira, 7 de julho de 2016

O poeta e o campeão

Na casa do poeta fui. Missão profissional. Ele aceitou a encomenda - e escreveu. Era sobre um time - inimigo do dele. Poeta é rubro e negro, mas o campeão vestia verde e branco. Vi um jardim na casa de madeira. Ele escreveu sobre como a cidade amanheceu pela primeira vez com um campeão do país. Foi lido no Brasil inteiro, dentro de um espaço onde a moldura era apenas o registro do momento. Depois, o poeta foi embora - e quando resolveram homenagear aquele campeão no século de vida, lá estava a poesia. Mas por erro ou má fé de algum ignorante, era ele quem assinava todo o texto - e não só sua obra. Quem escreveu o feijão com arroz se sentiu gratificado, mas o povo foi enganado.

um dia vai ser

De Paulo Leminski

pelos caminhos que ando
 um dia vai ser
   só não sei quando

Rildo e Misael Hora Sampa


quarta-feira, 6 de julho de 2016

Gelo

O retrato da minha alma aparece por inteiro nos dias de geada forte. Eu não sabia disso porque na minha terra não tem disso não. No dia em que a temperatura baixar dos dez graus, morre toda a população da região. Quando desembarquei no sul, que não é tão maravilha, fui morar em casa de madeira que parecia coisa de filme. Tinha um gramado enorme na frente e um pomar atrás. Diziam que o bairro era nobre. Mas quando o inverno chegou... Dentro da casa, marrom com detalhes em branco, fazia mais frio que fora. Acostumei. Foi ali que um dia me descobri no tanque. A água acumulada ficou com uma fina camada de gelo durante a madrugada. Coloquei o dedo e ele se desintegrou. Aquilo era - e é, meu retrato interior. Daí a preocupação em me proteger o máximo possível, com medo de que alguém aponte o dedo, mesmo sem cutucar qualquer ferida - e eu logo desapareça pelo buraco da insegurança. 

Insensatez

De Nelson Capucho


o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia

do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
                 dos dias

Raul Seixas


terça-feira, 5 de julho de 2016

Pediu!

Ouvi. Sem querer, mas ouvi. O adolescente de queixo erguido diante de uma mãe já meio carcomida pelo tempo, gritou: "Eu não pedi para nascer!" O barulho do tapa na cara foi muito maior que o de uma bomba atômica no meio do deserto. Depois, tudo parou. O silêncio podia ser cortado em fatias. O garoto ficou com o corpo todo roxo. Menos a face esquerda, onde estalou a palma da mão da mãe. Olhei para o rosto dela. Parecia rejuvenescido. Agora era bonita e iluminada. Imaginei que aquilo estava entalado na sua alma. O que tinha suportado daquele fedelho de calça caída, mostrando a cueca colorida e o início do rego da bunda? As roupas e o tênis eram de grife, provavelmente comprados com muito sacrifício pela doce senhora. E o que mais? Será que ele já era da turma do tubão, da maconha e etc? Se ele não tinha pedido para nascer, depois daquele tabefe, se fosse decente, iria encontrar o motivo para caminhar e respeitar aquela mulher. A que virou o corpo e saiu caminhando pelo corredor do shopping como se estivesse flutuando nas nuvens. Ela tinha acabado de renascer.

Cinco e dez

De Paulo Leminski

Cinco bares,
dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro de um táxi

Germano Mathias


segunda-feira, 4 de julho de 2016

Goleiro

Nosso campinho ficava num terreno entre duas casas. Não sabíamos quem era o dono. Limpamos tudo, deixamos só na terra, fizemos as marcas com cal, as traves com uns caibros de um depósito de material de construção que ficava perto de um morro que tinha ali perto - e, claro, desafiamos a turma da outra rua para a batalha. Na verdade, para as batalhas, pois enquanto durou aquele espaço, todo santo domingo de manhã, para pegar o público que voltava da missa, os inimigos da avenida Central eram nossos adversários. O campo era uma desafio para a lógica futebolística, pois totalmente descaído, ou seja, um ponta esquerda poderia ver o da direita como se este estivesse em outra dimensão, tal a desproporção que havia entre as laterais do terreno. Um estava no céu - o outro, no inferno. A bola tentava nos obedecer. Nosso time não tinha camisa oficial, mas o nome era sonoro e colorido: Ouro Verde. De onde veio isso? Acho que foi ideia do técnico, um adulto que a gente chamava de vermelho por motivos óbvios. Um dia nosso goleiro enfiou o quengo no poste, desmaiou e saiu ainda no primeiro tempo. Ele gostava da posição, por isso a gente achava que lhe faltava um parafuso na cachola. Como não havia reserva, passaram a função para o perna de pau mais próximo - no caso, eu mesmo, lateral direito de dar bicuda até na sombra. Fui e me dei bem. Só tomei um frango e quatro gols inapeláveis, como diziam os locutores da época. Anos mais tarde arrisquei voltar para a posição. Não durou muito. Mas sempre no meu time, ou seja, dos amigos do peito. Tenho as luvas até hoje. Não alugo para ninguém.

PARADA CARDÍACA

De Paulo Leminski


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.

Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Benjor


quinta-feira, 30 de junho de 2016

Viagem na escuridão

No último vagão do trem de carga. Estava lá o menino no meio de uma aventura que começou com a família perdendo o trem que a levaria para uma chácara de um parente. Aconteceu numa baldeação. Então surgiu a carona. Embarcaram lá atrás no começo da madrugada. O céu nublado e nenhuma réstia de luz dentro ou fora daquela serpente sobre os trilhos. O som alto da locomotiva e o chacoalhar não assustaram o garoto. Os olhos, verdes, estavam arregalados. A sensação era a de estar entrando no desconhecido e, por mais paradoxal, ele morria de medo do desconhecido. Mas ali, não! O tempo deixou de existir. Ninguém falava - e a máquina que puxava uma infinidade de vagões, rasgava a escuridão impetuosamente. Até que parou, como o previamente combinado. Todos desceram, andaram um pouco e, na porteira da chácara, estancaram ao ouvir as feras chegando. O menino então teve medo, porque os latidos eram apavorantes. O mais velho da família falou algo em tom alto. Os cães reconheceram e se acalmaram. Entraram. A casa pareceu um castelo de contos de fadas. No dia seguinte, o garoto pode ver o sol nascendo dentro do lago envolto em neblina. Aí teve certeza de que a viagem na escuridão foi apenas uma preparação para o deslumbre.
De Helena Kolody

arco-íris no céu.
está sorrindo o menino
que há pouco chorou

Dick Farney


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Pança

Foi de repente. Um dia ele estava olhando uma foto onde se viu posando de sunga numa praia deserta. Corpo seco, esguio - magricela na língua venenosa dos amigos. Foi então que resolveu se olhar no espelho, só de cueca, quarenta anos depois. De frente, ainda se sentiu aliviado, apesar dos peitos flácidos. Mas de lado... Aquilo não era barriga, era uma pança que caía - e em forma de dobra na linha da cintura. Ficou triste. Pensou em como tinha chegado àquilo e só lembrou do tempo em que era viciado em hambúrguer gorduroso e muita, muita Coca-Cola. Assim é que se punia da depressão que tirava sua vontade até de respirar. O que fazer com a pança? Foi para a academia. Enganaram o bicho dizendo que em pouco tempo estaria em forma, parecendo os artistas das novelas da Globo. Passado um ano, continua na mesma - até porque não parou de comer o que gosta, ou seja, muito pão e massas, sempre com um tipo de doce nos finalmente. Pensa que ligou. Agora revela para todos que, quando vai fazer suas séries de exercícios, reclama com os professores afirmando que só vê gente cada vez mais peituda - e ele se esforça, se esforça, mas só a barriga é que aumenta.

lá embaixo

De Paulo Leminski


lá embaixo
vai ter
o que eu acho