quarta-feira, 29 de julho de 2015

Renato Teixeira Tocando em Frente


Lasque-se

Tá olhando o que aí? Não quero saber se a mula é manca ou se você está mais por fora do que umbigo de vedete. Aqui não tem nhenhenhem. Abriu o espaço em branco, eu meto os dedos. Se sai sinfonia, maracatu, congada, bolero, samba atravessado, o problema não é seu - é meu. Leitor é para ler. E fim de papo. Melhor, meio. Estou virado pelo avesso. Com a macaca. Quem não gostar que se arranque com uma quente e outra fervendo. Texto tem que ter música e porrada, mesmo carinhosa. Aprendi no muque, tateando feito cego em muro chapiscado. Saí do escuro analfabeto e fui olhando e lendo. Encontrei meu time e eles estão aqui ao meu lado. Na estante. Quem quiser entrar nele tem de me convencer. De cara, nas primeiras linhas, com soco no estômago ou magia encantadora ou ainda uma mão a me puxar pelos caminhos. Os deles, que também são meus - e vice-versa. E você? Continua olhando aí? Entendeu o que eu disse ou faz parte da multidão de ignorantes que faz deste país aquilo mesmo que vocês sabem? Nem sei porque botei isso aqui. Vai ver é porque estou triste, sem saber. Não, não é fuga, babaca. É arrancar de dentro e jogar no espaço em branco. Não gostou? Lasque-se.

terça-feira, 28 de julho de 2015

primavera

De Alice Ruiz

primavera
até a cadeira
olha pela janela

Orlando Silva Lábios que Beijei


O espinho sou eu

Eu sou o espinho. Ninguém nunca deu bola pra mim. Só a quem furei - e ceguei um olho. Nunca me procuraram. Nem quando aconteceu (e faz tempo!), nem depois. Resisti a tudo e estou aqui, perdido na caatinga e com o mesmo gosto daquilo que vazei. Já sei que apareci em filme, mas ninguém sabe mesmo o que aconteceu. Filme é invenção em cima da invenção que vai sendo inventada de conversa em conversa. Quando entrei no olho dele, sem querer, o capitão não gritou. Só caiu para trás com a mão tapando onde havia o furo. Homem temperado, aquele. Amargo e doce. Anjo e demônio. Justiceiro. Amado e odiado. Caçado durante anos. E eu aqui me achando - porque furei ele. Quando soube que caiu em emboscada em Angicos, verti uma lágrima. Sim, porque o mandacaru onde nasci chora. Desgraceira aquela que fizeram cortando a cabeça de quase todos do bando. Maldade. Mas aí que a fama aumentou. E eu aqui, no oco do mundo. Várias secas e chuvas depois, ainda espero. Não sei o que. Não quero fama e, pensando bem, se pudesse teria evitado aquela desgraça. Aí, talvez, quem sabe, Virgulino Ferreira da Silva tivesse durado mais tempo. Lampião com os dois olhos seria mais difícil de matar. Mas ele não morreu. Nem eu. 

segunda-feira, 27 de julho de 2015

no espelho

De Sérgio Rubens Sossélla

sim
eu no espelho
vim


O filme da morte

Planejei minha morte há muito tempo. Morte para o cinema. O roteiro veio no dia em que me disseram que tenho fogo no rabo. Minha mãe falava diferente. Ela era mais direta e dizia fogo no cu - por isso me sinto liberado para dizer qualquer palavrão, em qualquer lugar e, se for o caso, para qualquer pessoa que ultrapasse a linha imaginária riscada no chão. Misturei Hitchcok com De Palma, dei um toque de Fellini no script e fiquei com ele guardado aqui, na cachola, até a hora - não da minha morte, mas da filmagem. Sei que o cenário será todo branco, com flores, caixão e o terno. Sei que no close do rosto, sem algodão nas narinas, vou abrir os olhos e, depois que a câmera se afastar, pegarei o celular no bolso do paletó e discarei para alguém. Direi então "agora baixei o fogo" - e depois de guardado o aparelho, continuarei como antes de abrir os olhos, mortinho da silva. The end.

Milionário e Zé Rico Sonhei com Você


quinta-feira, 23 de julho de 2015

Madrugada São João

A madrugada da avenida São João não é para amadores. A esquina com a Ipiranga, que o baiano rico disfarçado de pobrezinho imortalizou na música para os basbaques, ainda não tinha sido tomada pelo restos de gente do crack. Os bares com quinhentos metros de fundo ficavam abertos até amanhecer - e a lamentar somente o fim da boate Oasis e os salões de bilhar onde reinava o gênio Carne Frita. Mas havia a aura, nebulosa, cores esmaecidas, mulheres sambadas da vida, aprendizes de malandros, malandros em fim de linha, uma cerveja por favor. Às três da madruga, depois do trabalho pesado, o primeiro gole era como voltar à terra, apagar a fadiga, olhar em volta e pensar no que fazer até o primeiro ônibus chegar junto com o raiar do dia. O subúrbio dormia à espera. E um sebo com livros e revistas antigas também, ali na porta de aço ao lado. Foi assim que ele viu a mulher dos sonhos na capa de O Cruzeiro. O que mais chamou atenção foi a cintura de pilão. Pagou o preço. Caminhou até o Vale do Anhangabaú, desceu a ladeira Porto Geral e ficou encostado no poste do ponto abraçado e com ela no peito. Durante todo o trajeto até a vila olhou-a apaixonado. Abriu a porta da casinha de fundos e foi dormir de roupa de tudo no colchão de palha. Estava feliz por ter encontrado. Guardou-a para sempre. Marta Rocha.

grilo

De Alice Ruiz


amigo grilo
sua vida foi curta
minha noite vai ser longa

Trio Nordestino


quarta-feira, 22 de julho de 2015

pesadelo

De Paulo Leminski

acordei e me olhei no espelho
ainda a tempo de ver
meu sonho virar pesadelo

Wilson Simonal Sá Marina


Sórdido

Aquele boteco sórdido tinha de existir. Não, ele não queria beber lá, porque já tinha passado o limite entre a vida e a morte e sobrevivido. Mas queria conhecer porque, quando bebia, desde a hora em que acordava até onde não lembrava mais, fazia sempre em botecos como aquele descrito pelo mestre da escrita. O bar era tão absurdamente sujo que os frequentadores puxavam para dentro os cachorros sarnentos que passavam na calçada em frente. O que mais interessava, contudo, era a imagem de Jesus Cristo com tapa-olho. Se a visse, achava que entraria numa nova dimensão da vida, agora regada a água e suco. Procurou em todo o Rio Grande do Sul, porque a indicação era de lá. Um dia, chegou lá. Entrou e logo se ajoelhou para a imagem. Fez então sinal da cruz e rezou um Pai Nosso. Depois, pediu ao dono do bar para chegar mais perto  do que buscava - verificou então que, realmente, havia uma barata esmagada no olho esquerdo de Jesus. Chorou de emoção. Ia saindo quando lhe perguntaram se queria comer algo. Ele pensou duas vezes e ... por que não? Disse sim, afinal, não tinha morrido com todas as porcarias que mandou pra dentro nos tempos das bebedeiras. Olhou um prato sujo em cima do balcão e pediu o último quibe que estava ali. Lhe disseram que não era quibe. Alguém abanou a mão logo acima do quitute e todas as moscas voaram. Surgiu então um ovo cozido e descascado. Ele dispensou a iguaria - e saiu feliz agradecendo Luis Fernando Verísssimo. 

terça-feira, 21 de julho de 2015

longe da insensatez

De Nelson Capucho

o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia

do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
                  dos dias


Paulinho da Viola Timoneiro


Um caco de vidro

O caco de vidro escondido no terreno baldio. Fundo de garrafa se elevando em picos sujos pelo tempo. Ali, escondido, acompanhando o silencioso crescimento do mato em volta. Armadilha à espera de um pé descalço, com brancura ingênua como a brincadeira que leva aquele menino a correr olhando para trás no pique-esconde. O caco de vidro é o grito. Ele procura a veia, o osso, lacerando músculos, arrebentando a pele. Sangue regando a relva, manchas no céu, escuridão. Salvem o menino! O vidro, agora rubro, vai para o fundo de um quintal. Um martelo o estraçalha com raiva. Os pedaços jogados no lixo somem daquele pedaço de vila. O menino está salvo. Pé enfaixado e um sorriso nos lábios. Ganhou carinho e guaraná para tomar no bico Ali perto, numa casa de madeira, o chuveiro é aberto e alguém canta. Depois todos daquele universo desaparecem durante o sono. Os cacos de vidro continuam como sempre. Em silêncio.

segunda-feira, 20 de julho de 2015

De fianco

Abraçou assim, de ‘fianco’ – e era para ser assim mesmo no primeiro encontro depois de anos conversando através das estrelas. Para entrar na alma – como se isso precisasse. Apareceu lá no portão sem aviso, porque assim é que chegam as cartas importantes, escritas a mão, Parker 51, tinta azul lavável. Explicou que o escrever para quem escreve mesmo é uma herança de milhões de anos, muito antes de Homero soltar Ulisses no ar. Televisão e rádio e um locutor, que é poeta, poderia ser Super Big Boy com cultura. Dínamo a rodar e fazer a cadeira girar e o tapete persa a enrolar a seus pés. Uma imagem que remeteu a outra, outra pessoa, mas igual, explosão criativa, ansioso para fazer jorrar o que lhe alimenta, como se não pudesse perder tempo porque a gente não sabe o que pode acontecer agora. Um encontro entre os dois será o Big Bang. Depois, na saída, outro abraço de fianco – revelação em cima da revelação, porque já se sabia pelos sinais que furaram a cidade.

amor ao bar

De Marcos Prado
 
uma pessoa, agora sua íntima
foi parar um dia no hospício
não por uma obsessão legítima
nem por doença ou vício
ele foi por estar claro
que o álcool fazia-lhe mal
e porque o bar o
lembrava um hospital
essa pessoa, que sou eu
percebeu de si a manobra
o que de mim o álcool bebeu
dele ele fez sua obra

Cartola, Leci Brandão Deixa Pra Lá


quinta-feira, 16 de julho de 2015

Cesar Camargo Mariano, Luizão, Paulo Braga e Bala com Bala


Cavalo com espora

De Luiz Antonio Solda e Paulo Leminski

Eu quero me afogar na salmoura
dormir na manjedoura
ser um monge de outrora
o dia inteiro fazendo hora
Cortar o mal com tesoura
eu quero o mal
mal quero
e tudo me apavora

O polvo
o povo
a pólvora
tudo enfim
que meu cavalo sente
quando me senta
espora.

Duas mães

O psiquiatra perguntou se ele lembrava de alguma coisa antes dos três anos de idade. Só vendo as fotos, disse o paciente, com 35 anos de divã. O doutor queria saber como a mãe o tratava naquele início de vida. Ele só lembrou da história do leite condensado que tomava no lugar do leite materno - e brincava que tinha ficado um docinho para enfrentar a vida. Não tinha mais como perguntar para quem o pariu. Lembrou então que uma pessoa da família poderia informa alguma coisa. Era a irmã da mãe, que morava no mesmo terreno, mas na casa da frente. Fez o telefonema interurbano. Ouviu uma história linda. As duas eram costureiras, mas uma passava o filho para a outra porque era mais devagar, cautelosa com as encomendas. A tia contou que impulsionava a máquina com o pé direito enquanto a perna esquerda ficava de lado para sustentar e proteger a criança. Ele cresceu a chamando de mãe. Um dia chegou chorando desesperadamente naquela casa. Contou que alguém tinha-lhe dito que a tia não era mãe. Era - e só ele e ela sabiam e sentiam isso.

quarta-feira, 15 de julho de 2015

Marina Lima Fullgás


No centro do terreiro

Sentou no banquinho de palha bem no centro do terreiro. Fechou os olhos e as palmas das mãos foram colocadas para cima - por outras mãos. Recebeu apenas uma orientação: se deixar ir. Ele foi, sob o som do atabaque e músicas populares, para a viagem mais alucinante da sua vida. E quem agora lhe falar em outro tipo, quando se cavalga substâncias que podem levar à morte, ele sabe o que dizer. Até o dia em que foi gerado ele viu, porque cena de uma noite silenciosa, céu de estrelas e amor feito na rede. Do outro lado da estradinha estava o pé de manga centenário que o fez sofrer quando soube que foi derrubado. Mas ali, ao ver ele ser cortado, soube que tudo tinha vindo para dentro da sua alma, aquele gigante que presenciou tudo desde os tempos imemoriais dos antepassados estava eternamente salvo. Passou por tudo e acompanhou a mãe carregando uma sacola com comida para o pai caminhando na ladeira infinita, todo dia - e ela feliz porque ele só gostava do que ela fazia. O sacrifício da caminhada ladeira abaixo, ladeira acima, era o de menos. Teve cachoeira, teve pedreira, teve selva, teve rio, teve bola, teve gente. Era tudo vida. Ao abrir os olhos, continuou como sempre, com mais certeza de o normal é que é o delírio.

terça-feira, 14 de julho de 2015

Cariados

De Sérgio Rubens Sossélla

pesadelos
esses cariados buracos da noite
onde caímos e nos repetimos


A Cor do Som Beleza Pura


Leila na madrugada

Ela olhou do alto da banca de revista e soltou um palavrão. Gamei! Comprei o jornal onde aparecia com uma toalha enrolada na cabeça e um roupão cobrindo o corpão. Nunca mais nos separamos. Mesmo depois da explosão do avião em que estava junto com Agostinho dos Santos. Será que ele cantou só para ela, com aquela voz doce que entra e não sai mais da alma? Musa é musa – e por isso nunca tive inveja dos seus incontáveis homens. Porque Leila Diniz era todas as mulheres do mundo. Ela que foi professora de profissão e da escola da vida. Quando abri os olhos no meio da madrugada e apertei o botão para a tela acender, estava lá um filme com o nome dela – não com ela. Quase chorei de raiva, porque não se faz um lixo como aquele, supostamente para contar a história dela, onde, para começar, o corpo da atriz protagonista era uma tábua de passar roupa – e os coadjuvantes imbecis com roupas imbecis e falando imbecilidades. Desliguei, mas antes vi o final que era mais patético e retumbante do que o resto. Então, no escuro, ela apareceu com aquele sorriso, a voz acariciante e os olhos cujo brilho dizia: “Eles não sabem o que fazem”.

quinta-feira, 9 de julho de 2015

Na lua

De Helena Kolody

Não ando na rua.
Ando no mundo da lua,
falando às estrelas

Nelson Gonçalves Caminhemos


Dentro d''água

Ouviu dizer que, ao contrair uma gripe muito forte, a pessoa entra num estado como se estivesse por muito tempo com a cabeça dentro d'água. Tirou o termômetro do sovaco, olhou o mercúrio nos 40 graus, tossiu - e uma bola de catarro amarelo saiu do seu peito, atravessou a boca e foi parar num guardanapo de papel que tinha no criado mudo. Duas marretas batiam nas têmporas. A nuca espetada por uma adaga. Arrastou os pés e levou o corpo até o banheiro. Encheu a banheira com água morna. Entrou de roupa e tudo. Olhou o teto, fechou as narinas com o indicador e o dedão da mão direita. Afundou. Ficou até o pulmão arder. Quase explodiu. Tirou os dedos, a água entrou pelos dois buracos e depois pelo túnel da boca. Não sufocou. Achou estranho. Os olhos confirmaram que estava mesmo coberto pela água. Então apareceram pessoas conhecidas sorrindo. Ele sorriu também. Depois o céu em frente a uma casa que conheceu nos arredores de Londres. Aí vieram as montanhas em Palm Springs, o K2, o Kilimanjaro, o Fuji. Uma casinha em Arembepe, o mar de cana no interior do Brasil, uma passista de escola de samba, o Zé Trindade pulando de lado, Dick Farney e João Gilberto cantando, o salto do Morato visto de baixo... Tossiu. Sentiu-se afogado. Pulou para fora da água. Tirou a roupa. Se enxugou. Não sentia mais nenhuma dor.

quarta-feira, 8 de julho de 2015

Na batida do pandeiro

A prima batia no pandeiro, o pai dela girava o afoxé, um amigo dedilhava o violão de doze cordas e o líder empunhava o cavaquinho com um sorriso que iluminava o quintal. Chorinho. Era assim, todo sábado, no final da tarde. Eles se reuniam ali e descia tudo lá não se sabe de onde, porque ali Valdir Azevedo e Jacob do Bandolim não eram inimigos. Vai ver que era a presença de São Pixinguinha. Vai ver. O menino ficava encostado numa parede, dedo na boca, e lembrava de algumas músicas que escutava na rádio-vitrola de olho mágico. Ao vivo era outra coisa. Ele sentia o som até no umbigo estufado, principalmente o arrancado do pandeiro. Foi o primeiro instrumento que gostou. Queria saber tocar. Compraram um pequeno para ele. Era uma bateção só. Um dia, num casamento bem longe dali, estava lá o conjunto, e ele queria tocar junto - com o seu pandeiro. Tanto fez que foram buscar em casa. Ele acha que tocou junto. Ninguém reclamou. Depois disso guardou-o e ficou o resto da vida ouvindo o som que tirou do couro naquela noite.

terça-feira, 7 de julho de 2015

gato e janela

De Alice Ruiz

janela que se abre
o gato não sabe
se vai ou voa

Antes e no tempo certo

Matei, sim. Foi consciente. Não foi violento, mas poderia ter sido. Num olhar, depois de um encontro sem querer na rua, me pediu. Pediu, não, implorou. Nunca vi olhos tão tristes. Sentamos para tomar um café no boteco sórdido. Só ouvi coisas maravilhosas de uma vida de realizações, de aprendizado constante, de viagens para lugares paradisíacos, de encontros com pessoas do bem. Mas o olhar do primeiro contato era um pedido. Havia dose suficiente em casa para dizimar uma manada de elefantes. Convidei para continuar a conversa. Fiz um chá decente, servi em porcelana chinesa. Aqueceu a alma e me olhou de novo como no primeiro contato. Fui até o armário, preparei a dose e quando voltei já tinha erguido a camisa do braço direito. Achei fácil a veia. Sou profissional. Injetei. Foi apagando com um sorriso beatificado. Tudo terminou rápido. Levei-o para uma praça bem arborizada. Ficou sentado num banco como se a admirar uma árvore centenária à sua frente. Ao retornar, chorei um pouco. Quando enxuguei as lágrimas, dei de cara com a fotografia que sempre amei. Dois olhos - e dentro deles o meu reflexo. Dois olhos que foram embora bem antes do tempo. E sem pedido.

Veronica Sabino Demais


segunda-feira, 6 de julho de 2015

Teu nome

De Paulo Leminski

A noite - enorme
Tudo dorme
Menos teu nome


Zezé Gonzaga Falando de Amor


Ilusão e guerra no céu

Foi a coisa mais linda surgida no céu da vila e também a mais destruidora. No tempo certo de soltar papagaio (lá a gente chamava de quadrado), a brincadeira era a mais ingênua e infantil possível, pois a graça era confeccionar os tais com papel de seda e varinhas de bambu, fazer um rabo de pano, comprar carretel de linha e colocá-los no ar. Ficavam lá sustentados pelo vento e colorindo tudo - cada criança encantada com o que tinha ao comando. Então, surgiu. Obra dos adolescentes baianos, filhos do único dentista da redondeza. O deles parecia com o nosso "lata de óleo", mas a construção era diferente. Na folha recortada em forma de retângulo, colavam duas cascas de bambu verde e a rabiola era feita de pedaços de algodão que iam decrescendo de tamanho e, ali, no final, amarravam lâminas de gilette - e toda nossa turma descobriu isso tarde demais. Obrinquedinho deles parecia uma serpente no ar, que ia para a esquerda, direita ou "desbicava" rebolando em mergulho ao comando da linha sobre o dedo indicador. Eles cortaram a linha de todos, durante vários dias - e lá ia o sonho dos ingênuos flanando sem amarras e sem destino até cair em lugares desconhecidos. Ninguém fez mais "quadrados" durante um tempo. Até um foi passar férias no Rio de Janeiro e de lá trouxe várias pipas e o segredo do cerol cortante, a mistura de cola e vidro moído que se passava na linha para as batalhas. A moda pegou, os baianos não levantaram mais vôos e o que era doce ilusão se transformou em guerra constante nos ares.

quinta-feira, 2 de julho de 2015

Choro e fortuna

Olhou algo e começou a choramingar. A mãe não entendeu. Ele não parou. E apontou o dedo. Para a tv. Era um pudim. A mãe não sabia como reverter a situação. Tentou de tudo. Colocou-o no colo, fez cafuné, andou pela casa. Nada. Ele não berrava. Choramingava. Por algum motivo ela lhe deu dinheiro. Cédula dourada. Ele parou com o choro na hora. Pegou o papel e ficou olhando. Só largou quando dormiu de braços e mãos abertas no berço. Sem querer descobriu a fórmula. Tanto que a mãe guardava as notas mais novas para ele. E guardava depois numa caixinha que deixou perto do berço, depois no criado mudo ao lado da cabeceira da cama. Quando cresceu, antes de dormir, ele olhava a quantidade de dinheiro que tinha acumulado. Não gastava nada. Aperfeiçoou o choramingo. Desenvolveu uma técnica. Às vezes bastava fazer um olhar desconsolado para ganhar algo. Expandiu o universo de doadores. Adolescente já tinha mais dinheiro que o pai. Virou empresário. Arrancava tudo dos donos do poder. Milionário, não se divertia, não comprava nada que não revertesse em mais dinheiro. Não casou para não ter herdeiros. Tratava os empregados a pontapés. Achava que todos choravam pitangas para conseguir mais salário e benefícios. Morreu assim. Ninguém derramou uma única lágrima em sua lápide, de mármore cinza, cor que ele mais gostava - a cor de seu cofre.

samambaia

De Alice Ruiz

som alto
vento na varanda
a samambaia samba

Sergio Murilo Broto Legal


quarta-feira, 1 de julho de 2015

no buraco

De Paulo Leminski

debruçado num buraco
vendo o vazio
ir e vir




Cartola Peito Vazio O Sol Nascerá


No escuro

Perdeu o show da Tina Turner e a visão - tudo ao mesmo tempo agora. Tinha comprado ingresso, viajou mais de mil quilômetros, mas antes de ver a energia negra de pernas luminosas, e bem antes de ver o marido que a espancava depois de cheirar cordas de coca, antes ele foi visitar um amigo na casa do litoral. E foi aí que se perdeu. Talvez tenha sido a carga de adrenalina recebida num passeio de moto - e sem capacete, mas a verdade é que saiu da garupa e entrou numa garrafa de cachaça que o tirou do compasso do tempo. Depois derrubou outra e mais outra... quando acordou, sabe-se lá quanto tempo depois, não estava enxergando nada. Gritou que estava cego, mas ninguém o ouviu. Sozinho, não tinha noção do espaço onde estava. A canela bateu em algo e a dor foi lancinante. Foi tateando tudo e descobriu um quarto. Achou a porta e, ao girar a maçaneta, tomou um banho de estrelas no céu, ao mesmo tempo que sentia a brisa do mar. O coração disparou e a lembrança voltou, como a visão. Tina Turner, àquela altura, cantava Acid Queem num estádio de futebol muito distante. Ele sentou na areia da praia e chorou. De alegria e tristeza.

terça-feira, 30 de junho de 2015

palavras na mesa

De Roberto Prado

sombras se esgueiram
entre vírgulas
separadas por tontas sílabas
que se espantam

nesta mesa, caros amigos,
como em tanta véspera
o que ainda me separa
de minha santa ceia?

MPB4 Amigo é Pra Essas Coisas


O poço

O mistério do poço era o poço. E o balde. E a corda. E tudo desaparecendo naquele buraco. O menino olhava a mãe sair do casebre com a bacia de alumínio, deixá-la no chão, tirar aquela tampa de madeira, destravar a manivela e descer o balde cinza, de metal, cuja alça estava com a corda amarrada bem no meio - e que antes de desaparecer sempre balançava mesmo sem vento, sem nada. Depois tinha aquele barulho que mais tarde ele ouviu na voz de Luiz Gonzaga, mas no caso era a caneca entrando na água quando ele voltou ao nordeste e levou uma chamada de Januário. Tibung! Aí ele via a mãe com a mão esquerda segurando "os quartos", como ela dizia, e enrolando a carretilha grande, fazendo força, até aparecer o balde chorando. Ela o tirava na mira do buraco e depois despejava a água limpa na bacia, que levava pra dentro. Naquele dia o menino reparou que a mãe esqueceu de fechar a tampa do poço. Ele foi lá olhar. Se esticou até conseguir ver tudo - e era escuro, e parecia que um monstro iria sair dali e puxá-lo. Mas ele olhou direito e viu, lá embaixo, no fim do mundo, um pedaço do céu e algumas nuvens que estavam acima dele, pois olhou para verificar. E aí se viu naquele espelho. Era uma cabecinha de alfinete. Quis saber também se podia aparecer  a mãozinha dando tchau. Apareceu. E as duas, daria? Deu. E aí foi sonho ou pesadelo porque sumiu tudo que o amparava. Lembra que escutou um grito. Depois, ainda tonto, um braço segurando seu corpo e ele subindo na corda até os olhos se ofuscarem com a luz do sol. Ouviu gente rindo, chorando, foi abraçado, beijado, tudo mais. Falaram em milagre e ele foi colocado na cama depois de tomar banho quente. Foi assim que o mistério do poço aumentou muito mais para ele.

segunda-feira, 29 de junho de 2015

vazia

De Alice Ruiz

A gaveta da alegria
já está cheia
de ficar vazia

Ultraje a Rigor Ciúme


Animal!

Queria ser famoso, celebridade, essas coisas de agora. Quinze anos. Entrou numa academia. Como era pobre de subúrbio da caixa prego, teve de ir para uma que se chamava Hércules. Os pesos estavam enferrujados. O dono tinha sido mister Carapicuíba em 1953. Estava entrevado e babava por um canto da boca. Mas os exercícios estavam lá. Ele puxou ferro durante três anos, cinco horas por dia - e ainda tomou umas bombas feitas para encorpar jegues a fim do abate para exportação de carne a países asiáticos. Um dia viu um cartaz escrito à mão num poste da vila. Teste para atores de novela. Ele foi. Tirou a roupa, mostrou o corpão dentro de uma cuequinha que comprou numa liquidação no supermercado, onde pagou R$ 6,60 por três e levou quatro. Disseram que foi aprovado e que no dia seguinte ele começaria as gravações. Estava lá. Era num quarto de motel vagabundo, tipo Iglu Inn. Tinha um cineasta com uma câmera na mão e uma mulher de 40 anos que só podia ficar com os braços esticados para cima para que mantivesse a altivez mamária. Ele encarou a missão. Recebeu elogio do diretor pelo desempenho. Da mulher, não - ela preferiu sair para fumar. Ele voltou para casa feliz. Lhe disseram que grandes atores de Hollywood começaram assim. Da Globo não conhecia nenhum, mas a emissora não deixa divulgar um treco desses. No dia seguinte tinha outro capítulo. Lhe informaram que ia ser sexo animal.

quinta-feira, 25 de junho de 2015

Sem nome

Ficou na dúvida se tinha ou não perdido a memória. Não completamente, mas para as coisas que vinham de repente - e nada. O nadador do filme "Enigma de uma vida", por exemplo. Foi assim que ficou preocupado. Lembrava dele atravessando várias piscinas dos vizinhos e também entrando no mundo das drogas por acaso, já velhinho, em "Atlantic City", ou ainda aquele beijo famoso na areia da praia em "A um passo da eternidade", ou, mais ainda, o caminhoneiro apaixonado por Anna Magnani em "A rosa Tatuada". Mas... cadê o nome? Não quis ir ao Google, apesar de saber entrar e se perder ali. Queria lembrar pelas próprias pernas, se é que elas têm a ver com isso. Os dias se passaram e ele ali com as cenas, o rosto, o corpo, o sorriso do ator na cabeça - e nada. Fez esforço para esquecer o esquecimento. Esqueceu. Mas aí vieram outros apagamentos, sempre com ator ou atriz da tela grande. Achou melhor procurar um médico. Foi. Este deu risada quando ouviu o drama. Disse que passava por isso também. Ele contou o primeiro caso. O doutor também conhecia todos os filmes daquele ator, mas não recordava o nome.

Voos

De Sérgio Rubens Sossélla

um passarinho
e uma borboleta
o que eles são?
dois vôos.

Zeca Baleiro Lenha


quarta-feira, 24 de junho de 2015

Filosofia

Achou a filosofia bem filha da puta. No bom sentido, se é que poderia ser classificada assim. A frase veio do nada, mas o fez pensar em quantos seres filhos da puta, no mau sentido, tinha conhecido em tantos anos de existência. Não, não tinha a ver com as mães dos tais, porque elas nunca merecem, mas com o caráter filho da puta dos crápulas que, do nada, demonstraram porque eram filhos da puta. Teve um que, do nada, foi pedir sua cabeça ao chefe do local onde trabalhava. Teve outro que ficou lhe devendo uma fortuna por trabalho feito e certa vez, ao ser cobrado, resmungou: "Você só pensa em dinheiro!" Cortou dos pensamentos as revelações dos descasamentos, porque estas eram clichês conhecidos em todas as Varas de Família. Lembrou de um amigo empresário de jogador que, no meio de uma madrugada, ao saber que sua estrela tinha caído com o carro dentro de um rio canalizado, e às vésperas de ser vendido por milhões, gritou: "Este filho da puta quer me foder!!" Não era o caso de caráter, apenas de bebedeira. Então ele se debruçou de novo sobre a frase que desencadeou tudo rapidinho, e repetiu em voz alta, olhando nos próprios olhos diante do espelho: "Ser filho da puta não é um ideal a ser alcançado. É, sim, uma grande filhadaputice".

querer

De Paulo Leminski

isso de querer
ser exatamente
aquilo que a gente é
ainda vai nos levar
além

Demetrius Ritmo da Chuva


terça-feira, 23 de junho de 2015

Lembra

De Alice Ruiz


Lembra o tempo em que você sentia
e sentir era a forma mais sábia de saber 
e você nem sabia?


Carmem Miranda Rebola a Bola


Branca

Quando a endorfina bateu ele estava vendo um documentário sobre uma expedição ao K2 que deu merda. Morreram vários alpinistas e os que se salvaram pareciam ter pirado, além de perderem dedos dos pés e das mãos. Um dos guias virou capa da National Geographic, mas não quis falar sobre o que aconteceu. Andando e correndo há mais de duas horas na esteira, velocidade oito, ele ficou vendo aquela imensidão branca e as histórias de alguns heróis sobreviventes ficaram futucando a mente. Dois dias depois esqueceu tudo porque conheceu um grande homem, destes anônimos, que estão ali do lado, menino ainda atrapalhado com a turbulência da alma, perdido por um tempo na procura de algo que fizesse sentido, mas que só o afundou no mundo das drogas. Agora estava dando os primeiros passos depois de um longo tempo de internação, algo parecido como o do jogador Casagrande, até que numa noite, por estes encontros na encruzilhada da vida, alguém entrou trincado na cozinha de uma casa e jogou um pacote com algo  branco e muito perigoso - e não era neve. Os olhos do menino se arregalaram. Ele viu as pupilas dilatadas do cheirado, olhou de novo aquele pó branco, sentiu dor imediata no estômago, relembrou os tempos em que se afundava nas carreiras e trafegava só no universo paralelo, temeu por não aguentar aquilo - mas saiu dali com o coração apertado e aos pulos. Ficou assim por um tempo, trancado no quarto e com uma sensação ruim e boa ao mesmo tempo. Até que falou com gente do seu time, gente que já tinha passado por isso e ali, no relato, recebeu dele a carga reveladora da força da vida que aconteceu no instante mágico da hora da decisão, aquela entre ir por um caminho ou pelo outro, já conhecido e sofrido. E o menino soube então que tinha conseguido chegar ao ponto fundamental de ter o domínio para a escolha.

segunda-feira, 22 de junho de 2015

Necessidade de morrer

De Miguel Sanches Neto

Morrer de vez em quando
em muito melhora
a qualidade de nossa obra

Tonico e Tinoco Moreninha Linda


O bichinho

Entrou no consultório do oncologista como se estivesse adentrando a sala de cinema para ver um filme musical dos velhos tempos. Ouviu toda a explicação do doutor sobre os perigos do câncer na próstata - e a dele estava dando todos os sinais de ter o bichinho do ham-ham, como ele costumava brincar. O médico disse que o perigo são os tipos mais agressivos, que em seis meses saem do casulo - e aí é só resta encomendar o caixão. Ele riu. Em caso de detecção a tempo, dá para fazer tratamento com raios que o partam ou cirurgia para extirpação. Nos dois casos perde-se um pouco a virilidade. Ele riu mais ainda. O especialista contou então que todos os homens que sentam naquela cadeira sempre ficam apavorados - e perguntou por que ele não. Durante 40 anos, explicou o paciente, flertou com a morte sem saber - e conseguiu sobreviver. Não tinha medo porque estava diante de um doutor que aparentava saber tudo e explicava de forma simples e direta, ao contrário dos candidatos a deus que encontrou na vida. No caso da virilidade, ele disse que, se ficasse totalmente brocha, não se incomodaria pois há muito tempo não funcionava. Nessa o homem de jaleco branco também riu. Depois de todos os exames feitos, inclusive com biópsia sofisticada, comprovou-se que o bichinho ainda não tinha aparecido. Mas ele estava preparado para a chegada. Rindo.

quinta-feira, 18 de junho de 2015

Francis Hime Trocando em Miúdos


Do limbo

 O cordão umbilical quase me matou no parto de cócoras. Minha mãe era índia Xucuru e sobrevivente do grande massacre sempre escondido nessa Terra Brasilis. Nasci na aldeia em cima do morro e minha tribo nunca deixou os brancos chegarem muito perto. O contrário sempre aconteceu. Um dia eu desci a ladeira. Literalmente. Comecei tomando Pitu misturada com Jurubeba. Dormia na rua, comia restos, me banhava no açude público. Um pária. A degradação que vem de dentro pra fora. Acordei então na lama de um grande chiqueiro de uma fazenda próxima. Cagado e melado. A lama tinha a cor cinza. Pensei no tal limbo que um dia um padre enganador falou para meus irmãos da tribo. Quando desci ao inferno encontrei-o bebendo cachaça também. Até brindamos. O limbo é isso, pensei. E eu sou feio. Aí veio uma chuva daquelas raras. Temporal. Levantei e fui correndo para um pasto que havia ali perto. Um raio cortou no horizonte e se enfiou na terra. Fiquei limpo. Continuei a correr. Subi o morro. Minha mãe estava na porta da maloca. Ela abriu o sorriso mais lindo que já vi. Descobri que, eu mesmo, sou lindo. 

quarta-feira, 17 de junho de 2015

Gestos

Esticado no sofá ele olhou para os pés e descobriu, depois de velho, que fazia a mesma coisa que o pai. O pé direito passava por cima do esquerdo e nele se apoiava. Ficou ali olhando enquanto a televisão emitia sons sem interesse e a luz azulada iluminava a sala - e os pés. Estava descalço e, pimba, olha lá os pés do pai, dedos compridos como os das mãos... Os das mãos? Olhou com as costas voltadas para o rosto, mas a uma certa distância. Então lembrou que também sempre repetiu outro gesto - o de passar a mão direita na cabeça, a partir da testa até chegar à nuca e ficar ali por um tempo, normalmente quando sentado à mesa e num sinal claro que não estava contente com a vida. Não, ele nunca esteve de bem com a vida e era calado, e balançava a cabeça negativamente sem dizer nada quando se deparava com coisas que achava erradas - e elas eram muitas, principalmente a própria existência. Mas isso nem ele nem o pai sabiam direito. Descruzou então os pés, olhou a tela de tv e viu uma bunda rebolando até perto do chão. O pai tinha razão.

Dalva de Oliveira Estrela do Mar


terça-feira, 16 de junho de 2015

A última paçoca

Quem comeu a última paçoca? O grito foi ouvido até do outro lado da rua. Gutural, como se dizia no tempo do Underground, ou seja, quando Tião Macalé tinha dentes. Ele tinha escondido a última no fundo da gaveta onde jogava todos os cartões de visita e contas pagas. Viciado era - mas duro também. Comprava de caixa, naquelas lojas onde se vende doces de pacoteira para bares da periferia ou aniversário de pobre. Comia uma por dia, sagradamente. Quem comeu a última paçoca?, berrou de novo. O grito bateu nas paredes e só não voltou porque ele saiu da minúscula cozinha, onde tinha revirado tudo, e partiu para procurar no quarto e até no banheiro. Nada. Ele então se jogou no sofá que tinha uma lençol em cima para cobrir as marcas do tempo e ficou olhando para o teto e para o nada ao mesmo tempo. Sentiu de novo o gosto dela na garganta, mas não quis gritar mais. Foi então que lembrou que morava sozinho - e que a última paçoca ele mesmo tinha comido no dia anterior, logo depois da penúltima.

feliz

De Paulo Leminski

jardim da minha amiga
todo mundo feliz
até a formiga

Germano Mathias Joga a Chave


segunda-feira, 15 de junho de 2015

Meu tio

Eu tenho um tio que poderia ter sido campeão mundial de boxe. Ele continua sendo um bloco monolítico de ossos e músculos com uma cabeça grande, pescoço curto, e uma força que derrubaria Rocky Marciano e aguentaria todo tipo de pancada. Ele não sabe disso. Trabalhou no batente pesado como quem vende algodão doce para crianças. Fez isso a vida toda, nunca reclamou, nunca foi visto triste, adorava caminhões e se sentia um felizardo ao ser escalado para carregá-los de mercadorias pesadas e perigosas. Tomava uma cachaça por dia, depois do expediente. A cara que ele fazia, quando a mardita descia goela abaixo, era digna de um quadro do Lucien Freud. Meu tio se aposentou e disse que ia passar uns dias na casa de uma irmã que morava nos cafundós do país. Saiu de casa, filhos criados, e quase não voltou mais. Achou que deveria curtir a vida adoidado depois dos sessenta. Tomava marafa o dia todo, andava pelas ruas da pequena cidade feito um desvalido, ria à toa e dizem que andava com algumas raparigas. Um dia os filhos lhe imploraram para voltar. Ele retornou para a antiga casa. Sua cama continuava no quarto separado, porque durante muitos anos foi assim, desde que as crianças eram crianças e ninguém sabe porque aconteceu a separação sob aquele teto. Agora ele tem quase cem anos e cuida das plantas do jardim, de um cachorrinho que parece um chaveiro para ele. Não pode beber mais, mas continua uma fortaleza. Toda vez que lhe perguntam como está, diz que com a cabeça entre as orelhas e em cima do pescoço. Meu tio é um campeão.

Sem acerto

De Dalton Trevisan

Chorando baixinho, o velho disca todas as combinações possíveis. Mas não acerta o número da própria casa.

Vicente Celestino Porta Aberta


quinta-feira, 11 de junho de 2015

Arco-Íris

De Helena Kolody

Arco-íris no céu.
Está sorrindo o menino 
que há pouco chorou

Mario Zan Quarto Centenário


Estômago

Ainda bem que ouvido não tem estômago. Ele leu aquilo e foi como se uma flecha com veneno tivesse atravessado seu cérebro. Pensou: como alguém consegue tal poder para nos desnortear? Foi o irmão que mandou na tela branca do computador. Assim, sem mais nem menos – e ficou em silêncio, sem explicação, que também não foi pedida. E se tivesse estômago, o que aconteceria? Ele pensou logo nas conversas de políticos, nos gritos dos militantes, na arrogância das ordens policiais, nos xingamentos entre desconhecidos no trânsito… Sim, pensou em coisas ruins, porque aí o ouvido poderia vomitar. Mas as declarações de amor fariam tão bem, alimentariam o estômago da alma. Êpa! O ouvido tem alma ou é da alma? Estava pensando em tudo isso quando lhe colocaram bem na frente o prato que pediu naquele restaurante caído: rabada com polenta e agrião.

quarta-feira, 10 de junho de 2015

De Dalton Trevisan


De repente a mosca salta e pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe — uma semente negra de mamão.

Titãs O Pulso


A dor

Imaginou que a dor era a mesma causada por um tiro. Não houve impacto, ela apenas apareceu e, no terceiro dia, estava insuportável. Naquele pedaço do corpo parecia haver um bombeamento especial de sangue no local que mantinha o latejamento. Tentou remédio, bolsas gelada e fervente - nada fez efeito! Como poderia trabalhar sentindo aquilo? Tudo tinha desaparecido e sua mente estava concentrada ali, naquele canto da cabeça, como se o local quisesse provar que poderia dominar tudo. E dominava, da forma mais terrível possível. Não lembrava mais a última vez que sentira dor em algum dente. Pensou nisso também porque talvez fosse parecido. Ali, naquela cavidade, havia um bicho feio com os dentes cravados na cartilagem e balançando a cabeça como um cão raivoso depois de morder a presa. Apelou para uma reza no nicho cheio de santos. Em vão. Tentou lembrar o que poderia ter deflagrado tal situação. Aí lembrou não só do cotonete, mas do personagem do comediante Agildo Ribeiro que se transformava ao introduzir a haste com cabeça de algodão num dos ouvidos. Foi isso que ele fez, tentando a imitação para ele mesmo ver no espelho. Bem feito!

terça-feira, 9 de junho de 2015

que volte!

De Paulo Leminski

Vida e morte
amor e dúvida
dor e sorte
quem for louco
que volte


Toni Tornado, Trio Ternura e BR 3


Encontros

Eu vejo meus amigos por aí, quando menos espero. Eles aparecem até em forma de nuvens, como aconteceu naquela estrada onde até parei o carro no acostamento para matar saudade. Era o menino com quem trabalhei e aprendi a gostar porque ele fazia parte do meu universo como o ar que respiramos. Foi embora cedo, seis meses depois de aparecer a doença - e bem no dia em que andei de Maria Fumaça e viajei para o passado. Quando voltei ao presente recebi a notícia e chorei muito. O outro, um pouco mais velho, que encantou tempos depois por causa da mesma doença, vi outro dia descendo de um ônibus na rodoviária, enquanto esperava a filha. Ele passou bem pertinho de mim, tinha outro nome, outra história de vida, mas era aquele com quem dividi cultura e aprendi um pouco a escrever, mesmo porque sofríamos o mesmo tormento para começar um texto nas velha máquinas. Também o vi numa praça apinhada de gente num dia de sol escaldante - e ele olhou pra mim e esboçou um sorriso, tímido que era. Meus amigos aparecem, sinto saudade e também vontade de viver mais um pouco - até para novos encontros com Julio e Pedro.

segunda-feira, 8 de junho de 2015

imperativo da primavera

De Roberto Prado


humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

Egberto Gismonti, Naná Vasconcelos Dança das Cabeças


Olho seco

Olhou direto para o sol do meio-dia depois de ter ouvido centenas de vezes o disco de Egberto Gismonti com este nome. Surtou, cegou, mas não sentiu. A música tinha invadido o seu ser e o anestesiado para a dor. Nunca reclamou. Só pediu óculos escuros de aros redondos, feito um Lennon dos trópicos escaldantes. Lhe deram uma caneca de alumínio, daquelas que ainda ficam embaixo das torneirinhas dos filtros de barro do país desconhecido pela maioria dos habitantes. Foi então para uma esquina que ele conhecia desde criança, sentou e começou a emitir sons que dizia ser música - a do sol do meio-dia. Raramente ouvia o tilintar de uma moeda. Não ligava. Com o passar dos meses e anos se rebatizou como Cego Aderaldo, nome de música do mesmo Gismonti. Até o dia em que alguém duvidou da sua cegueira. A peixeira que carregava atravessada no cinto às costas surgiu feito raio. O sino da igreja tocou doze vezes. A lâmina brilhou e sangrou. Deus então matou. A polícia veio. Ele só disse uma frase: "Olho seco é mais embaixo".

quarta-feira, 3 de junho de 2015

Viagem

De Paulo Leminski


Esta vida 
é uma viagem 
pena eu estar 
só de passagem.

Rosa Passos Você Vai Ver


Neblina

Chegou com os primeiros raios da luz do dia. A neblina cobria tudo. Estava perto da cidade, mas longe de tudo. Duas casas no fim de uma estradinha de terra pareciam cenário de filme de Bergman. Estacionou o carro, passou por entre as construções e seguiu uma pequena trilha em declive acentuado. Parou na beira de um lago - e não conseguia ver a outra margem. Respirou o ar frio da manhã e aquilo pareceu limpar toda a fuligem e o entulho da cidade grande e opressiva. Resolveu andar por aquela margem enquanto o sol, branco, tentava furar o branco da neblina. Estancou ao ver ancorado um barco simples de madeira que, cheio de água, mostrava apenas os contornos. Ele estava preso por uma corrente a uma estaca espetada num barranco. Ficou olhando aquilo como se fosse a tradução da imagem mais simples e encantadora que já tinha visto. Era muito mais do que aquele outro barquinho que encontrou numa vila do Rio Madeira, muitos anos atrás. Então, ouviu um chamado do dono da casa que acabara de acordar. Aí sentiu o cheiro do café que estava sendo coado.

terça-feira, 2 de junho de 2015

Ipês floridos

De Helena Kolody

Festa das lanternas!
Os ipês se iluminaram
de globos de cor-de-ouro.

Pedro Bento, Zé da Estrada e Mágoa de Boiadeiro


Asteriscos da salvação

Foi aquele sorriso que o salvou. E o rosto lindo abaixo de uma cabeça enrolada numa toalha branca. Ele viu no alto na banca de revista e, garoto, ficou ali admirado até com o formato do jornal, tabloide, coisa bem diferente do que conhecia - e apesar de um diário no tamanho tradicional jamais ter entrado em sua casa. Era pobre. Mais que pobre. Vivia naquele gueto onde a palavra cultura poderia ser confundida com palavrão. E da boca daquela mulher linda saía um balão, desses de história em quadrinhos, onde vários asteriscos apareciam entre as palavras. Palavras, não! Palavrões. Ele identificou e gamou - porque sempre gostou de falar. Foi em casa, pediu uns trocados para a mãe, voltou à banca, comprou o exemplar e entrou num mundo onde está até hoje, algumas décadas depois. Conheceu os personagens da República de Ipanema do Pasquim, aprendeu que era possível escrever simples para passar qualquer coisa adiante, e quando, por acaso, se profissionalizou mexendo com as letrinhas, foi daquele jeito que começou a tentar escrever - e a treinar diariamente. Quanto à deusa que o levou a sair daquela vila, inclusive fisicamente, será eternamente musa. Leila Diniz.

segunda-feira, 1 de junho de 2015

que seria de mim...

De Paulo Leminski

Rio do mistério
que seria de mim
se me levassem a sério?


Martinho da Vila, Zeca Pagodinho, Mulheres


A lua e eu

A lua grudou o olho em mim. Fiquei olhando direto para ela na noite fria e me veio a ideia de que era mesmo um olho. Tão lindo e luminoso que foi feito para encantar. Encantar e distrair do resto do seu corpo, que é o universo do escuro da noite. Não, eu não vi estrelas nessa noite em que parei hipnotizado por ela – e como estava andando sem rumo pelas ruas da cidade vazia, de repente o olho da lua se postou acima de um cartaz onde um casal se beijava. Aí eu pensei na lua cantada pelos poetas enamorados, mas logo veio a imagem do lobisomem e fiquei temendo pela mocinha. Não aconteceu nada e também não vi São Jorge porque tinha esquecido os óculos “de longe”. Nessa noite esqueci que a luz da lua ela recebe do sol, porque ela é prata doce e seu raio banhando as águas do Rio Amazonas, no meio da floresta, foi algo que já vi mas não não dei tanta importância como agora. É que naquela noite há muitos anos minha alma estava nublada. Mesmo assim, ficou na retina e hoje, ao ver este olho na cidade grande, eu enxerguei de novo naquela imensidão de silêncio. E descobri que o corpo que envolve esta lua está aqui dentro – e sou eu e é você e somos nós, mas só os que conseguem vê-la.