terça-feira, 26 de julho de 2016

Aviso aos náufragos

De Paulo Leminski


Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Henrique Cazes Brincando com Cavaquinho


segunda-feira, 25 de julho de 2016

Acaba?

De Paulo Leminski

Amor, então, 
também, acaba? 
Não, que eu saiba. 
O que eu sei 
é que se transforma 
numa matéria-prima 
que a vida se encarrega 
de transformar em raiva. 
Ou em rima.

Elza Soares Mulher do Fim do Mundo


No pântano

O pântano fétido. Nada perto. Atolado até a cintura ele tentava caminhar. Bichos comiam o que de pele estava exposto. O olhar duro mirava algo adiante – e ele seguia adiante, com uma determinação pouco comum para alguém mimado e criado em cidade grande. Lá estava ela, agora mais perto. Uma única flor branca naquele pedaço feio, fantasmagórico. Chegou lá depois de muitos e muitos dias. Nem lembrava mais porque entrou ali, sozinho. Lhe veio a expressão “sozinho e Deus”. Sentiu o perfume, inebriante. Foi tocar uma pétala – estancou. Embaixo havia uma caixa de madeira bem trabalhada. Pegou e abriu. Um pergaminho bem conservado lhe fez a revelação. Ele começou a chorar ao mesmo tempo que uma chuva forte começou a cair. Todo o esforço para aquilo? Como voltar para a cidade? Tentou rasgar o documento. Não conseguiu. Então, leu de novo: “O homem criou os deuses para ser filho deles e esconder a verdadeira imagem destrutiva e maligna”. Ficou por lá mesmo. Ninguém foi procurá-lo.

quinta-feira, 21 de julho de 2016

arrepio lancinante

De Dalton Trevisan

Só de vê-la — ó doçura do quindim se derretendo sem morder — o arrepio lancinante no céu da boca.

Criolo Bogotá


Aurora

Fui ao planetário, fiquei olhando para o teto e mostraram lá a aurora boreal. Explicaram o fenômeno, mas nem liguei. Fiquei encantado e com vontade de ver ao vivo, lá nos confins, onde a Terra faz a curva. Saí dali crente que conseguiria realizar o sonho de menino, 12 anos, a vida sendo ainda um mistério de fantasia. Esqueci, fui sendo atropelado pela realidade, trabalho em caixa de banco, dinheiro contado, nada - nem de viagem até a praia dos farofeiros. Até que um dia a Aurora veio até meu guichê. Alta, tranquila, vestido estampado mostrando cintura de pilão. Ela abriu um sorriso tão esplendoroso ao dizer que queria depositar dez reais na conta, que eu perdi o rebolado. Fiquei pasmo. Só então perguntei o nome e ela disse Aurora, não Orora, como na música. Era mais que boreal, era o próprio universo concentrado naqueles olhos, no tom da voz. Perguntei o sobrenome e veio um Silva como se fosse da mais nobre das famílias europeias. Gamei. Ela deu o número de telefone e nunca mais nos desgrudamos. Aurora. Não preciso ir atrás. Durmo com uma toda noite.


quarta-feira, 20 de julho de 2016

Cansei

Pisquei e descobri que estava trabalhando há 45 anos. Sem parar. Feito um autômato que se alimentava do prazer do próprio ato do trabalho. Não vou dizer o que faço, apenas que é extenuante física e mentalmente. Pisquei de novo e me perguntei o que foi feito de minha vida durante todo esse tempo. Sim, tenho família, os filhos criados, casa de alto padrão, um apartamento na praia, um sítio, boa reserva financeira, essas coisas. Nunca curti. Quase não fui a estes lugares - e muito menos viajei.  O trabalho. Pra que tudo isso? Meu corpo está em frangalhos. Outro dia que tive um piripaque no coracebo. Desmaiei. Bati com a cabeça na quina da mesa de trabalho. Sangue escorreu e melou o tapete. Quando acordei, a visão estava vermelha. Foi aí que pensei em tudo, assim, num piscar de olhos. Parei. Fui pra casa, tomei um banho bem quente, coloquei pijama limpinho e não o tirei mais. Cansei de cansar. Eu não tinha noção disso. Vou viver mais. Flanando.

Cruel

De Marcos Prado


Curitiba é uma cidade tão cruel com as pessoas que criam que não basta você ir para São Paulo e pro Rio e as pessoas te reconhecerem não...Você precisa morrer para as pessoas te reconhecerem!

Céu Perfume Invisível


terça-feira, 19 de julho de 2016

Templo

Guardei aquela folhinha. Faz muitos e muitos anos. Eu tinha acabado de pedir um bolinho de carne no boteco que era boteco, não essas imitações que só enganam os trouxas que pagam pela decoração retrô. Depois da primeira mordida, o molho de pimenta penetrando no interior do salgado, um gole de cerveja e... Estava ali, entre algumas garrafas empoeiradas. O templo, sem identificação, parecia todo feito em ouro. Pelo horário em que a foto foi feita, no final de uma tarde luminosa, só poderia mesmo hipnotizar. Chamei o dono do bar, pedi mais um bolinho, outra cerveja - e aquela imagem. Era antiga e, imaginei, não tinha ido para o lixo por causa da beleza. Guardei em casa no baú onde estão as coisas que marcaram minha retina. Outro dia tirei de lá. A parte de cima da foto estava rasgada, mas nada que comprometesse o templo. Olhei tudo com carinho, verifiquei se havia uma identificação. Não havia mesmo. Agora procuro na internet todos os monumentos indianos para ver se encontro este local de adoração. Se achar, assim que puder, vou pra lá. Porque assim é.

espelho

De Sérgio Rubens Sossélla


sim
eu no espelho
vim

Sivuca Quando me Lembro


segunda-feira, 18 de julho de 2016

O vento e a curva

Hoje todo mundo fala. Todo mundo sabe tudo. Paga-se para centenas de imbecis ficarem cagando regras, por exemplo, sobre futebol. Se jogarem uma bola na direção deles, saem correndo na direção oposta. Mas sabem tudo e, de vez em quando, recebem um contravapor de um boleiro para deixar de falar besteira. Em economia, política, sexo, etc., há os especialistas. A moda agora gira em torno dos chefs de cozinha - e todo mundo virou cozinheiro de chapelão e uniforme. Qualquer hora vai aparecer aquele que vai analisar a personalidade da pessoa através do cocô, bolo fecal, troço, tolete, produto interno bruto. Foi por tudo isso que zarpei e não quero saber de nada - mesmo porque não sei de nada. Simplesmente cansei dessa palhaçada toda. Para quem insiste em me dizer que leu não sei o quê ou viu não sei onde, tenho uma resposta pronta para calar a boca de quem quer me incomodar: "Onde o vento faz a curva eu passo reto".

deito

De Paulo Leminski

tudo dito,
nada feito,
fito e deito

Amelinha Foi Deus quem fez Você


quinta-feira, 14 de julho de 2016

Jardim encantado

Eles me levaram porque estava falando com a parede - há um bom tempo. Começou porque ali havia um jardim muito florido e o natural encantamento de quem nasceu no mato. Quando viemos para a cidade, a sorte foi achar aquela casa bonita, ensolarada e com um quintal enorme, sem muros, que se estendia para os lados até perder de vista. As folhagens e as flores nasceram porque plantadas com amor. Muita gente pedia mudas - ninguém se atrevia a entrar e roubar. Ganhavam apenas aquelas que eu achava que mereciam. Foi então que veio o muro - erguido exatamente por alguém que tinha ganho as mais lindas flores. Não houve conversa. De um dia para o outro o paredão estava lá. O pior é que tudo do lado de cá começou a murchar, a morrer - e uma tristeza invadiu a casa e o coração de quem morava nela. Fui falar com o muro, tentando convencê-lo do quanto seria bom para todos se ele caísse, sumisse, para que tudo voltasse a ser como antes. Tentei em vão. Me levaram enrolado. Me deixaram dentro de uma sala com paredes acolchoadas. Não vou tentar me matar. Mesmo porque consigo ver e sentir aquele jardim encantado.

saudade

De Sérgio Rubens Sossélla

as pinturas
os retratos nos olham
com saudade


Tom Zé Só (Solidão)


quarta-feira, 13 de julho de 2016

Confissão

Na calçada da avenida movimentada. Dia de semana. Trânsito intenso. Do outro lado, uma igreja antiga e um padre velhinho na porta. Deu o estalo. Há séculos sem uma confissão. Pecados? Quase todos. Esperei uma brecha, atravessei e fui falar com o sacerdote. Sim, ele poderia me confessar, mas perguntou antes meu estado civil. Nunca sei direito o que falar, mas oficialmente sou divorciado. O padre então disse que era impossível atender meu pedido, pois divorciados não podem confessar, pagar a penitência e comungar. Eu disse então que poderia ter mentido para ele, revelando que era solteiro ou viúvo e que, lá dentro, no confessionário, contaria mentira. Ele fez de conta que não ouviu e entrou pela porta enorme. Fiquei ali parado. Fiz o sinal da cruz e pensei tantas coisas que, só elas, me acarretariam uns dez terços para me livrar dos pecados. Amém.

No mundo da lua

De Helena Kolody

Não ando na rua.
Ando no mundo da lua,
falando às estrelas.

Martinha Eu te amo mesmo assim


terça-feira, 12 de julho de 2016

Branca

Sempre esteve aqui ao lado, mas nunca pensei que ali estava a explicação que nunca consegui. Xangô com seus dois machados empunhados. Saravá! Bati forte no peito, como vi a mãe de santo fazer no terreiro, e com a ponta do dedo indicador alisei a lâmina. O corte, a dor, o pingo de sangue - mata, cachoeira e pedreira eu senti. Soube então porque desde sempre fui juntando todo tipo de arma branca: faca, punhal, navalha, foice, canivete, bisturi. Juntos numa gaveta pouco abaixo do meu santo, o silêncio metálico à espera de algo, talvez nada, talvez a justiça. Quando abri o local, a gota de sangue batizou a peixeira. Ela veio lá de cima, onde andava enfiada na cintura da calça bem no meio das costas de um homem sereno que nunca precisou furar o bucho de ninguém, mas que sempre estava atento. Olhei Xangô. Ao lado, uma imagem do mesmo tamanho de Nossa Senhora Aparecida parecia dar equilíbrio a tudo. Arma branca também é paz.

epitáfio para o corpo

De Paulo Leminski


Aqui jaz um grande poeta.
Nada deixou escrito.
Este silêncio, acredito,
são suas obras completas.

Clara Nunes Canto de Areia


segunda-feira, 11 de julho de 2016

Delírio

Fiquei cego no orquidário. Depois de anos voltei a ver os mesmos monstros e bichos iguais àqueles dias em que estive amarrado na cama. Delírio. Urrava tão alto, com medo de ser devorado pelo medo, que os outros pacientes reclamaram com a direção do hospício. Décadas depois sem beber uma gota de álcool, aconteceu. Primeiro olhei com carinho uma orquídea branca que veio dos confins do mundo. Fechei os olhos naquela estufa para sentir o perfume inebriante e, quando olhei de novo aquele paraíso, lá estavam eles - e ceifando todas as plantas. Como num pesadelo acordado, fiquei imobilizado. Não podia gritar dessa vez. Não sabia o que fazer. Pensei então em todas as coisas bonitas que aquelas plantas poderiam proporcionar. Quantas declarações de amor e de amizade? Então tudo voltou ao normal - e só então vi quantos brotos estavam para nascer em todas elas. Era o futuro, como no presente e passado.

O que quer dizer

De Paulo Leminski


O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.

Maysa Alguém me Disse


quinta-feira, 7 de julho de 2016

O poeta e o campeão

Na casa do poeta fui. Missão profissional. Ele aceitou a encomenda - e escreveu. Era sobre um time - inimigo do dele. Poeta é rubro e negro, mas o campeão vestia verde e branco. Vi um jardim na casa de madeira. Ele escreveu sobre como a cidade amanheceu pela primeira vez com um campeão do país. Foi lido no Brasil inteiro, dentro de um espaço onde a moldura era apenas o registro do momento. Depois, o poeta foi embora - e quando resolveram homenagear aquele campeão no século de vida, lá estava a poesia. Mas por erro ou má fé de algum ignorante, era ele quem assinava todo o texto - e não só sua obra. Quem escreveu o feijão com arroz se sentiu gratificado, mas o povo foi enganado.

um dia vai ser

De Paulo Leminski

pelos caminhos que ando
 um dia vai ser
   só não sei quando

Rildo e Misael Hora Sampa


quarta-feira, 6 de julho de 2016

Gelo

O retrato da minha alma aparece por inteiro nos dias de geada forte. Eu não sabia disso porque na minha terra não tem disso não. No dia em que a temperatura baixar dos dez graus, morre toda a população da região. Quando desembarquei no sul, que não é tão maravilha, fui morar em casa de madeira que parecia coisa de filme. Tinha um gramado enorme na frente e um pomar atrás. Diziam que o bairro era nobre. Mas quando o inverno chegou... Dentro da casa, marrom com detalhes em branco, fazia mais frio que fora. Acostumei. Foi ali que um dia me descobri no tanque. A água acumulada ficou com uma fina camada de gelo durante a madrugada. Coloquei o dedo e ele se desintegrou. Aquilo era - e é, meu retrato interior. Daí a preocupação em me proteger o máximo possível, com medo de que alguém aponte o dedo, mesmo sem cutucar qualquer ferida - e eu logo desapareça pelo buraco da insegurança. 

Insensatez

De Nelson Capucho


o que tivesse tido
não me bastaria
de todo haver
eu jamais seria
como sou das coisas
sem serventia

do pó de estrelas
aspiro o brilho
longe da insensatez
                 dos dias

Raul Seixas


terça-feira, 5 de julho de 2016

Pediu!

Ouvi. Sem querer, mas ouvi. O adolescente de queixo erguido diante de uma mãe já meio carcomida pelo tempo, gritou: "Eu não pedi para nascer!" O barulho do tapa na cara foi muito maior que o de uma bomba atômica no meio do deserto. Depois, tudo parou. O silêncio podia ser cortado em fatias. O garoto ficou com o corpo todo roxo. Menos a face esquerda, onde estalou a palma da mão da mãe. Olhei para o rosto dela. Parecia rejuvenescido. Agora era bonita e iluminada. Imaginei que aquilo estava entalado na sua alma. O que tinha suportado daquele fedelho de calça caída, mostrando a cueca colorida e o início do rego da bunda? As roupas e o tênis eram de grife, provavelmente comprados com muito sacrifício pela doce senhora. E o que mais? Será que ele já era da turma do tubão, da maconha e etc? Se ele não tinha pedido para nascer, depois daquele tabefe, se fosse decente, iria encontrar o motivo para caminhar e respeitar aquela mulher. A que virou o corpo e saiu caminhando pelo corredor do shopping como se estivesse flutuando nas nuvens. Ela tinha acabado de renascer.

Cinco e dez

De Paulo Leminski

Cinco bares,
dez conhaques
atravesso são paulo
dormindo dentro de um táxi

Germano Mathias


segunda-feira, 4 de julho de 2016

Goleiro

Nosso campinho ficava num terreno entre duas casas. Não sabíamos quem era o dono. Limpamos tudo, deixamos só na terra, fizemos as marcas com cal, as traves com uns caibros de um depósito de material de construção que ficava perto de um morro que tinha ali perto - e, claro, desafiamos a turma da outra rua para a batalha. Na verdade, para as batalhas, pois enquanto durou aquele espaço, todo santo domingo de manhã, para pegar o público que voltava da missa, os inimigos da avenida Central eram nossos adversários. O campo era uma desafio para a lógica futebolística, pois totalmente descaído, ou seja, um ponta esquerda poderia ver o da direita como se este estivesse em outra dimensão, tal a desproporção que havia entre as laterais do terreno. Um estava no céu - o outro, no inferno. A bola tentava nos obedecer. Nosso time não tinha camisa oficial, mas o nome era sonoro e colorido: Ouro Verde. De onde veio isso? Acho que foi ideia do técnico, um adulto que a gente chamava de vermelho por motivos óbvios. Um dia nosso goleiro enfiou o quengo no poste, desmaiou e saiu ainda no primeiro tempo. Ele gostava da posição, por isso a gente achava que lhe faltava um parafuso na cachola. Como não havia reserva, passaram a função para o perna de pau mais próximo - no caso, eu mesmo, lateral direito de dar bicuda até na sombra. Fui e me dei bem. Só tomei um frango e quatro gols inapeláveis, como diziam os locutores da época. Anos mais tarde arrisquei voltar para a posição. Não durou muito. Mas sempre no meu time, ou seja, dos amigos do peito. Tenho as luvas até hoje. Não alugo para ninguém.

PARADA CARDÍACA

De Paulo Leminski


Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.

Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Benjor


quinta-feira, 30 de junho de 2016

Viagem na escuridão

No último vagão do trem de carga. Estava lá o menino no meio de uma aventura que começou com a família perdendo o trem que a levaria para uma chácara de um parente. Aconteceu numa baldeação. Então surgiu a carona. Embarcaram lá atrás no começo da madrugada. O céu nublado e nenhuma réstia de luz dentro ou fora daquela serpente sobre os trilhos. O som alto da locomotiva e o chacoalhar não assustaram o garoto. Os olhos, verdes, estavam arregalados. A sensação era a de estar entrando no desconhecido e, por mais paradoxal, ele morria de medo do desconhecido. Mas ali, não! O tempo deixou de existir. Ninguém falava - e a máquina que puxava uma infinidade de vagões, rasgava a escuridão impetuosamente. Até que parou, como o previamente combinado. Todos desceram, andaram um pouco e, na porteira da chácara, estancaram ao ouvir as feras chegando. O menino então teve medo, porque os latidos eram apavorantes. O mais velho da família falou algo em tom alto. Os cães reconheceram e se acalmaram. Entraram. A casa pareceu um castelo de contos de fadas. No dia seguinte, o garoto pode ver o sol nascendo dentro do lago envolto em neblina. Aí teve certeza de que a viagem na escuridão foi apenas uma preparação para o deslumbre.
De Helena Kolody

arco-íris no céu.
está sorrindo o menino
que há pouco chorou

Dick Farney


quarta-feira, 29 de junho de 2016

Pança

Foi de repente. Um dia ele estava olhando uma foto onde se viu posando de sunga numa praia deserta. Corpo seco, esguio - magricela na língua venenosa dos amigos. Foi então que resolveu se olhar no espelho, só de cueca, quarenta anos depois. De frente, ainda se sentiu aliviado, apesar dos peitos flácidos. Mas de lado... Aquilo não era barriga, era uma pança que caía - e em forma de dobra na linha da cintura. Ficou triste. Pensou em como tinha chegado àquilo e só lembrou do tempo em que era viciado em hambúrguer gorduroso e muita, muita Coca-Cola. Assim é que se punia da depressão que tirava sua vontade até de respirar. O que fazer com a pança? Foi para a academia. Enganaram o bicho dizendo que em pouco tempo estaria em forma, parecendo os artistas das novelas da Globo. Passado um ano, continua na mesma - até porque não parou de comer o que gosta, ou seja, muito pão e massas, sempre com um tipo de doce nos finalmente. Pensa que ligou. Agora revela para todos que, quando vai fazer suas séries de exercícios, reclama com os professores afirmando que só vê gente cada vez mais peituda - e ele se esforça, se esforça, mas só a barriga é que aumenta.

lá embaixo

De Paulo Leminski


lá embaixo
vai ter
o que eu acho

Os Vips Faça alguma coisa pelo Nosso Amor


terça-feira, 28 de junho de 2016

Bimba de boi

Durante muito tempo os assassinos do oco do nordeste, aqueles bichos ruins, aqueles que cuspiriam na cara do Tinhoso se ele aparecesse, essas pestes só temiam uma coisa se fossem pegos pela polícia: a bimba do boi. Instrumento utilizado nas masmorras das delegacias, era produzida a partir do nervo do pinto do animal. Um peso de ferro era colocado numa ponta, a outra presa num varal alto - e aí, esticado até o máximo, secava sob o sol ferrado daquelas bandas. A bimba vergava, mas nunca quebrava. E cada lambada dela cortava o tecido da roupa, a pele, a carne e, se quem batia era violento, chegava ao osso. Quem não confessava até o que não tinha feito? Às vezes a resenha saía completa só ao se mostrar a ferramenta de convencimento. Num cantinho discreto de casa eu tenho uma, cerca de metro e meio de comprimento, furada numa extremidade e com uma tira de couro para encaixar no punho para não sair na hora da pancadaria. Nunca usei. Mas já tive vontade. Principalmente de dar na boca de alguns imprestáveis. Toda vez que penso nisso, bato com a palma da mão na minha e, como fazia mamãe, peço perdão pelos pensamentos. Mas que seria bom fazer o estrago...

Penúltima

De Marcos Prado



Como posso agora estar alegre? 
era de se esperar que eu desesperasse 
talvez mais tarde eu desintegre 
entre o penúltimo gole do último porre 
e leve ao meu lado os que me seguem 

sim, 
perdi a razão do que eu achava e do que eu acho, 
mas aprendi que o céu é mais embaixo 
ainda não sei o quanto dei 
a tantas quantas amei 
ainda não sei ao certo se eu errei

Gonzaguinha Sangrando


segunda-feira, 27 de junho de 2016

Não pedi

Estava morto lá nos confins e não pensava nada. Aí me chamaram - e não houve tapa na bunda. Me arrancaram com ferros e ouvi os gritos de alguém. Depois disseram que era minha mãe e que meu pai tinha ajudado a me dar vida e tirar do escuro. Que coisa esquisita! Todo mundo nasce assim, mas antes inventam uma história de cegonha que é uma ave e até hoje não sei como ela arruma aquele pano para pendurar no bico para voar carregando gente. Quer dizer que se ela passa numa zona de conflito no Oriente, baubau? Já me atrapalhei nos pensamentos. Antes não tinha nada disso. Eu não incomodava ninguém - e vice-versa. Fui para as escolas e de tudo o que aprendi, utilizei só três das operações matemáticas. Eu queria ser artista porque um dia vi um quadro do Siron Franco. Mas nem pintar o sete eu sei. Fiquei distante do mundo, ouvindo música, comendo sanduíche de queijo e salaminho com manteiga. Disseram que eu tinha de trabalhar. Reclamei no velho estilo de que eu não pedi para entrar nessa barafunda. Nem ligaram. Agora tenho de ir. Me deram um emprego no governo. Não preciso fazer nada. Ainda bem.

o sono

De Paulo Leminski


A vocês, eu deixo o sono. O sonho, não! Este eu mesmo carrego!


Noite Ilustrada


quinta-feira, 23 de junho de 2016

Fafá de Belém Desabafo


Se

De Paulo Leminski

se
nem
for
terra
se
trans
for
mar

Enigma

Fui procurar o hotelzinho no meio do nada naquela estrada só de retas intermináveis. Talvez por causa das piadas do Mineirinho, sei lá. Achei, na Belém-Brasília. A noite chegando, estacionei o carro, notei que não havia mais nenhum veículo, entrei e um senhor de sorriso franco me atendeu. Havia todo tipo de quarto, porque eu era o primeiro a chegar naquele dia, naquela semana, naquele mês, naquele ano. Perguntei a ele como sobrevivia. Com o rosto me apontou uma máquina encostada na parede. Parecia uma jukebox, mas não havia música ali. Ele pediu para eu apertar o botão verde. Fiz isso. Não aconteceu nada, mas imediatamente me deu uma sensação de bem estar, de dever cumprido e... uma preguiça! O senhor disse que era assim mesmo e que foi um viajante estranho que deixou o trem ali, sem cobrar nada. Ele, o dono do hotel, apertava o botão todo dia logo cedo. Há décadas. E ficou feliz, com ou sem hóspedes. Coisa estranha, mas muito boa. No outro dia eu lhe disse, antes de apertar o botão verde, que aquilo era um enigma, uma coisa enigmática, mas com certeza o inventor era certamente um vagabundo daqueles, no bom sentido. Aí eu apertei o botão. É o que faço há anos. Eu e o dono do hotelzinho na reta da Belém-Brasília.


quarta-feira, 22 de junho de 2016

Clementina de Jesus Yaô


Grampola

Chutei a lata, como fazia no tempo em que isso não era politicamente incorreto. Dela caiu um papelzinho dobrado. Peguei a lata, coloquei numa lixeira próxima. O papel foi para o bolso. Abri quando cheguei em casa, num dia em que, como dizia meu pai, tudo estava aquela graxa. Li: "Desajustado, caminhando sem rumo num mundo desconsertado, procurando quem dê jeito. Pode? Esqueceu? Esse só volta quando o pino da grampola fuder de vez!" Gostei do pino da grampola, porque o resto era uma ladainha que, de outras formas, ouvi desde que nasci em meados do século passado. Grampola. O que seria? Gosto de palavras sonoras. Essa me lembrou Grapette, aquela que quem bebe repete. Não achei a dita no gugol. Liguei para amigos. A explicação mais lógica foi de um que disse que tal palavra deve ser sinônimo de parafuzeta. Fui dormir satisfeito. Sonhei com o pino da grampola, mas não lembro como era. Fudeu.

terça-feira, 21 de junho de 2016

Espírito de porco

O espírito de porco é tão espírito de porco que ele não sabe que é espírito de porco. A vida dele é porca a tal ponto que ele só olha para os outros torcendo para que a desgraça aconteça. Assim, vai se sentir feliz na pocilga em que vive. Conheci alguns. Espírito de porco que se preze acha que é diferenciado, como dizem sobre jogadores de futebol. Ele se dá o aval de analisar pessoas - para desejar o pior. No ambiente de trabalho acontece muito. Vi uma vez uma mulher solitária, que falava como se tivesse sentada num toco, dizer para o chefe sobre um colega: "Não falei que não era para contratar aquele drogado?" Talvez o alvo do veneno tenha escutado tal coisa enquanto estava internado, pois nunca mais voltou às catacumbas - e se tornou uma pessoa feliz, ao contrário daquela encrenca. O espírito de porco pensa no pior e, se possível, não deseja isso na cara daquele que ele acha que é vítima. Não tem coragem. O espírito de porco tenta envenenar atrás das moitas e ficar escondido. Seu destino sempre está traçado: caminha célere para morrer com a boca cheia de formiga, depois de tomar formicida com guaraná.

se tocou

De Alice Ruiz


Era uma vez
uma mulher que
via um futuro grandioso
para cada homem
que a tocava.
Um dia
ela se tocou

Zé Ramalho Táxi Lunar


segunda-feira, 20 de junho de 2016

Fim de tarde

Vi o quadro e entrei nele. Não lembro quem pintou, onde foi que o encontrei, nada. Especial ele era porque não tinha nada de especial. Uma casa grande, algumas árvores em volta, um poste com uma luz amarelada na frente e um céu… Foi aquele céu azul, sem uma nuvem, naquela hora entre o fim do dia e o começo da noite. Sim, foi ele que me atraiu para dentro da tela como um imã de ilusão. E a mistura daquela luz natural com a elétrica me fez querer conhecer o lugar, rodar o mundo atrás daquele momento. Para bater na porta do casarão e saber quem mora lá dentro. Uma família ou uma donzela de contos de fada a esperar um olhar iluminado? Nunca mais vi a tela, apesar de procurar feito um louco nos museus. Outro dia, andando pela cidade, aquela luz me encantou de novo. Parei o carro e havia um poste com luz amarelada em frente a uma casa no alto de um terreno que começava no final de uma rua sem saída. A casa era parecida. Abri o portão e entrei. Não precisei bater à porta ou me anunciar. Eu moro nela.

Amor

De Paulo Leminski



Amor, então, 
também, acaba? 
Não, que eu saiba. 
O que eu sei 
é que se transforma 
numa matéria-prima 
que a vida se encarrega 
de transformar em raiva. 
Ou em rima.

Nana Caymmi Não se esqueça de Mim


quinta-feira, 16 de junho de 2016

Mato

A casinha era pequena, mas jeitosa. Na frente e atrás havia terra suficiente para dois jardins, um ou jardim e uma horta. Nunca fiz nada porque, mais do que achar um saco o cultivo e o trabalho para preservar tudo. sempre fui da opinião de que mato é lindo. Ele não precisa de cuidados especiais. Aliás, não precisa de cuidado algu. Nasce, cresce e sobrevive como manda a natureza. A variedade de espécies é enorme - e, ao crescerem, as plantas vão se entrelaçando como numa enorme suruba vegetal. A chuva lhe dava o alimento água e o sol incrementava o crescimento, além dos adubos naturais do subsolo. Eu olhava aquilo e sentia prazer. Os vizinhos, não. Achavam que aquilo poderia juntar bichos peçonhentos ou algo assim. Coisa de doidos. Um dia fui mandado embora do trabalho. Me tranquei em casa para meditar. Não sei quanto tempo fiquei. Ao tentar sair, não consegui. O mato lindo tinha engolido a casa. Fechei a porta e fui dormir. Poderia ter aberto caminho até o portão da frente ou a um dos muros de trás para sair. Mas achei que se eu cortasse aquelas plantas maravilhosas elas iam chorar. Fiquei ali. Estou aqui. Sem cachorro. 

jornada

De Helena Kolody


tão longa a jornada!
e a gente cai, de repente,
no abismo do nada

Leno e Lilian Pobre Menina


quarta-feira, 15 de junho de 2016

Paçoca

Acabei de comer uma e, como das outras vezes, veio a expressão: firme na paçoca. Como firme? Por que? Paçoca que é boa desmancha até antes de chegar à boca. Lá dentro se dissolve e a sensação é muito boa. Doce. Firme na paçoca. Estava há um mês dentro do quarto, trancado, vendo direto tudo o que o Telecine podia me dar. Se pudesse, só deixaria os olhos de fora para me anestesiar com qualquer filme - daqueles de kung fu até os melodramas xaroposos. O que eu não podia era pensar - se é que estava pensando nesta fase negra. Aconteceu de eu acordar um dia e achar que não iria conseguir nem levantar. Lembrei do livro "O demônio do meio-dia", onde o autor, que descreve sua crise forte de depressão, tem que se arrastar até o banheiro para tomar banho, apesar de estar há dias fedendo e ter consciência de que deveria se limpar. É assim. Eu até que ia ao banheiro, afinal, estava a dois passos da cama na suíte do apartamento, mas o pavor de tudo era terrível. Passou, sim, a custa de remédios e terapia - mas foi pesado. Durante o tempo todo  os amigos ligavam e alguns perguntavam seu eu estava firme na paçoca. Eu pensava um pouco e dizia que sim. Tinha a ver.

antigamente

De Paulo Leminski

Abrindo um antigo caderno
foi que eu descobri:
Antigamente eu era eterno.

Sandra de Sá Quem é Você


terça-feira, 14 de junho de 2016

Rosa Passos O que é que a Baiana tem


para aprender

De Paulo Leminski


Nesta vida,
pode-se aprender três coisas de uma criança:
estar sempre alegre,
nunca ficar inativo
e chorar com força por tudo o que se quer.

Mergulho

Fiquei pagando trezentão por sessão do psiquiatra durante anos. Ia duas vezes por semana. Papai bancava. Era rico - até o dia em que foi atropelado por uma crise econômica em forma de Fenemê. Contei para o doutor. Ele encerrou o tratamento na hora. Me deu alta, mas como eu não tinha melhorado nada e continuava nas dúvidas do labirinto das trevas, encerrou o papo com um enigmático conselho: "Mergulhe em si mesmo para se encontrar". Lembrei do livro do Jamil Snege, o espetacular "Como eu se fiz por si mesmo", mas o buraco aqui era mais embaixo. Tive uma ideia e desci pendurado num balde num poço do terreno de um conhecido, lá nas quebradas do mundaréu. Mergulhei na água e subi. Pelado. O frio era de menos um, sem sensação térmica. Veio o momento mágico que eu tanto esperava. Me vi por dentro, se é que a frase exprime bem o que aconteceu. Aleulia! A fortuna gasta no divã teve resultado. Mas..., para encurtar a curta história, o que ficou claro foi o seguinte: mergulhei em mim pra me encontrar; achei muitos, mas nenhum era quem eu realmente esperava.

segunda-feira, 13 de junho de 2016

Rondon

Cobertor sobre as pernas, óculos de lentes grossas, fica vendo televisão durante um bom tempo. Gosta dos noticiários. Não fala nada, apenas balança a cabeça negativamente com a sequência de tragédias, roubalheiras, o incompreensível linguajar sobre economia e a idolatria por qualquer idiota que chute uma bola ou solte gemidos em forma de música de corno, como ele diz. O espaço que dão à previsão do tempo é outro absurdo que ele condena, mesmo porque jamais vai sair dali para enfrentar o calor infernal do sertão do Piauí. Mas outro dia ele levantou da poltrona para esbravejar. Nos temporais que derrubaram árvores em algumas grandes capitais, ele fez um discurso dizendo que tudo aquilo era coisa do homem, não da natureza. Lembrou então o longo período que passou na selva e garantiu que, apesar das chuvas constantes, nunca viu uma árvore caída pela força das águas que vinham do céu ou do vento. Depois, se acalmou, sentou de novo, olhou para o lado e pareceu dar uma piscadela para a foto do Marechal Cândido Rondon que tem em cima de uma estante e de quem foi grande amigo.

apagar-me

De Paulo Leminski

Apagar-me 
diluir-me
desmanchar-me
até que depois
de mim
de nós
de tudo
não reste mais
que o charme.

Maysa Ouça


quinta-feira, 9 de junho de 2016

Pelos

Os pelos do nariz saíam para fora. Nunca notei, mesmo porque não me olhava no espelho com medo do que poderia ver. Tinha cabelo comprido e barba enorme. Me escondia também com óculos escuros. No pinel um psiquiatra disse isso. Não gostei. Tirei tudo. Quase tudo. Ficaram os pelos do nariz. Tentei cortar com uma tesourinha pontiaguda. Furei uma das paredes internas da "nasa". Saiu muito sangue. Lembrei de um dia no banheiro do boteco - um tiro, e o sangue escorrendo sem eu perceber. Quem estava comigo na mesa se assustou. Mas isso é outra coisa. Os pelos, me disseram, me deixavam com a aparência de quem tinha duas tarântulas querendo sair dali. Um dia, numa farmácia, vi uma maquininha especial para aparar os tais. Comprei. Fui para casa, liguei e enfiei no buraco do meu lado direito. Aconteceu um problema. Houve um enrosco e a máquina foi lá pra dentro. Acho que atingiu meu cérebro. Desde então tenho visões e já fiz uma planta seca pela geada voltar a ser verde. A história se espalhou. Tem fila na porta de casa. Acham que eu sou santo. O problema é que parte da máquina de cortar pelos ficou para fora do nariz. Não sei se os estranhos vão entender o que aconteceu.

Vento

De Paulo Leminski


Tarde de vento.
Até as árvores
querem vir para dentro.

Os incríveis


quarta-feira, 8 de junho de 2016

Autorizado pela mãe

Falar palavrão é uma coisa, xingar é outra. Mãezinha, que está no céu, uma santa, falava cu seiscentas vezes por dia. Coisa de nordestina arretada. E dizia com aquela cara triste, que não mudava nem se quem estava ao lado dela se rolava no chão de tanto rir. Cu da gota, cu da serena, cu de loca, cu da peste, cu da bobônica... E se encontrava na rua alguma mocinha de calça ou saia apertada, daquelas que tem as nádegas adernadas para o centro, repetia um dos seus clássicos: "Lá vai ela com o cu abotoado". Sempre achei, portanto, que estava liberado para disparar os meus palavrões em qualquer lugar, a qualquer hora, porque minha mãe autorizou, mesmo sem documento assinado. Foi ela,aliás, que, na minha tenra idade, me batizou para o que desse e viesse. Ao olhar pra mim, criancinha de cinco anos, decretou: "Mas não é que esse meu filho tem uma cara de puta santa..."

Que botijão a pariu?

De Marcos Prado

1

gorda
dizem que me chamou de vagabundo
pela enésima vez
saiu banha dos meus olhos quando
soube
como escorre sua menstruação oleosa
e seu corrimento
meus olhos derreteram nesta tarde
por sua causa, porca máter
obesa
você me chama de vagabundo
de inútil e aproveitador
me conte uma história boa, suína
algo que justifique sua vida mesquinha
e que solte o seu rabo colesterolizado
gorducha
eu te conto uma história
que entra dentro de uma história
que explica uma história
que eu ainda não contei
como não conto com você, pelancuda

2

dragão
faço do teu nariz
tomada
do teu bafo
gasogênio
da tua bosta mole
metano
qual foi
o seu trabalho
neste mundo
javali fêmea?
onde estão os seus méritos?
fritando alguém?
refogando algo?
ensebando quem?

3

sou vagabundo
mas eu posso contar a sua história
bucho
placa de costela gorda
na boca de bebedor de cerveja
jogando truco
com o pessoal do almoxarifado
as estrias
a celulite
as cartucheirinhas
provam que você
trabalhou demais
coisa balofa

Francisco Petronio


terça-feira, 7 de junho de 2016

A ferramenta

O que é que eu vou fazer? O cara mora aqui na frente do bar, pediu a ferramenta emprestada. Não sei dizer não - emprestei. Isso foi há seis meses. Todo dia eu dou de cara com ele quando levanto a porta do boteco. Ele parece que ri. Da minha cara. Aí vira as costas e vai embora. Não sei pedir o que emprestei. Parece até que eu é que estou fazendo uma desfeita. Isso sempre aconteceu comigo. Contei o caso para meu vizinho. Ele é encardido. Vi quando peitou o cara no portão da casa dele. Vi quando o outro, depois de um tempo, foi lá dentro e depois entregou o que emprestei. Meu vizinho me devolveu. Contou que o sonso quis dar uma de migué, mas foi lembrado só no olhar fuzilante. A ferramenta está enferrujada. Vou comprar outra. Preciso mudar de atitudes. Meu vizinho disse que era assim também, mas teve coragem para se transformar. Não empresta nada e, se tiver de cobrar, vai lá e fala. Eu queria ser assim, mas não sei dizer não. Acho até que se o cara da frente viesse me vender minha ferramenta, eu comprava. Só para não ter confusão. O que será que acontece comigo?

imperativo da primavera

De Roberto Prado


humano, assuma o ar silvestre
época de amor conforme o calendário
flores façam tudo o que não digo
coração, aceite o eixo terrestre
ninho esta vida leve no bico
viva de brisa o papo sozinho
estações, aqueçam seu poeta
primaveras, passem com carinho

Verônica Sabino Demais


segunda-feira, 6 de junho de 2016

Última noite

Não tenho muito tempo de vida. Não, não é como na piada do Miojo, aquela dos três minutos e o que fazer, doutor? Ainda há uma noite. Mas como vou dormir? Poderia tomar um remédio daquele do Michael Jackson, mas o doutor não quis me receitar. Disse para eu aguentar firme. É sempre assim. Estes professores de Deus falam numa calma absurda, mas quando o calo aperta eles não vão se consultar. Conheço a raça. Por que tinha que acontecer isso logo agora que começo a conhecer as delícias da vida? É muito azar! Tomo um banho quente, pelando, abro a torneira fria, fico elétrico, me enxugo, vou para cama nu, entro embaixo das cobertas cheirosas e fico esperando a hora. Nada de dormir. Coloquei o despertador, daqueles antigos, só para me precaver. Sabia que não conseguiria pregar os olhos. Como, numa situação dessa? Vou embarcar daqui a pouco. O martelinho do geringonça começa a fazer barulho e eu realizo um sonho: arremesso o relógio contra a parede, com toda força. Talvez meu último ato violento. Então, me troco e vou. De táxi. Para onde? Ora, para o aeroporto. O vôo é às seis e tenho de estar lá às cinco. É o primeiro que faço na vida. Antes, sempre evitei. De medo. Agora, não dá mais. Adeus.

PARADA CARDÍACA

De Paulo Leminski

Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.

Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.

Rosinha de Valença e Silvia Telles


quinta-feira, 2 de junho de 2016

Mente

Conhecia muitos poderosos pela profissão que exercia. Desde sempre funcionário público concursado, eficiente, discreto, profissional, enfim. No palácio era chamado nas horas mais difíceis porque inteligente, rápido nas decisões que apontavam caminhos para saídas que não deixavam manchas no currículo do chefe - e muito menos no poder. Ele fazia isso pensando apenas nos interesses do Estado, e porque sabia que qualquer turbulência acabava prejudicando aqueles que tinham colocado aqueles senhores aparentemente sérios no comando de tudo. Até que um dia presenciou cena bárbara, que não cabe aqui relatar, tal a baixeza, a podridão, o mau-caratismo de quem a praticou. Resolveu ele mesmo denunciar tudo. O escândalo fez a casa cair, como se falava no bairro onde morava. Acabou ele também sendo exonerado mais tarde, pois os novos "patrões" não confiavam mais em seu trabalho. Um dia lhe perguntaram porque tinha feito aquilo. Respondeu de forma enigmática: "A mente não mente. O dono é quem manda mentir".

Aviso aos náufragos

De Paulo Leminski

Esta página, por exemplo,
não nasceu para ser lida.
Nasceu para ser pálida,
um mero plágio da Ilíada,
alguma coisa que cala,
folha que volta pro galho,
muito depois de caída.
Nasceu para ser praia,
quem sabe Andrômeda, Antártida
Himalaia, sílaba sentida,
nasceu para ser última
a que não nasceu ainda.
Palavras trazidas de longe
pelas águas do Nilo,
um dia, esta pagina, papiro,
vai ter que ser traduzida,
para o símbolo, para o sânscrito,
para todos os dialetos da Índia,
vai ter que dizer bom-dia
ao que só se diz ao pé do ouvido,
vai ter que ser a brusca pedra
onde alguém deixou cair o vidro.
Não e assim que é a vida?

Tonico, Tinoco Pé de Ipê