quinta-feira, 28 de agosto de 2014
quarta-feira, 27 de agosto de 2014
Óculos
O óculos era dobrável. Escuro. Achou-o por acaso num canteiro de avenida. Não viu ninguém por perto. Pegou-o, levou para casa, lavou, desinfetou e colocou no rosto na primeira manhã de sol. Nunca mais o tirou, nem para dormir. Se quisesse, como tentou, não conseguiria. Mas, para que tentar? Ao colocar aquela armação com lentes negras, ele passou a enxergar o que jamais tinha prestado atenção. Os olhos das pessoas, seja conhecidas ou não. Antes, tinha medo.
Agora, não precisava, porque ninguém via os seus. Mas ao olhar os outros ele via além, ele conseguia distinguir entre os bons e maus. Os maus, descobriu logo, não revelavam o interior da alma. Os outros, sim. Como? Pelo brilho. Os olhos destes pareciam sorrir, se é que é possível. Ele também começou a ver os detalhes de tudo quanto a natureza oferecia, mesmo numa cidade grande. Por isso deu de cantar feliz por onde andava. Até o dia que alguém achou que ele estava de gozação. Um taco de beisebol apareceu, a pancada foi forte o suficiente para quebrar o óculos. Quando acordou, estava num quarto de hospital. Via tudo cinza. Saiu dali do mesmo jeito. Perdeu a vontade de viver. Mas segurou o tranco. Passa o dia procurando outro óculos igual. Acham que pirou.
Agora, não precisava, porque ninguém via os seus. Mas ao olhar os outros ele via além, ele conseguia distinguir entre os bons e maus. Os maus, descobriu logo, não revelavam o interior da alma. Os outros, sim. Como? Pelo brilho. Os olhos destes pareciam sorrir, se é que é possível. Ele também começou a ver os detalhes de tudo quanto a natureza oferecia, mesmo numa cidade grande. Por isso deu de cantar feliz por onde andava. Até o dia que alguém achou que ele estava de gozação. Um taco de beisebol apareceu, a pancada foi forte o suficiente para quebrar o óculos. Quando acordou, estava num quarto de hospital. Via tudo cinza. Saiu dali do mesmo jeito. Perdeu a vontade de viver. Mas segurou o tranco. Passa o dia procurando outro óculos igual. Acham que pirou.
terça-feira, 26 de agosto de 2014
pedra que voa
De Paulo Leminski
Ai daqueles
que se amaram sem nenhuma briga
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa
aqueles que deixaram
que a mágoa nova
virasse a chaga antiga
ai daqueles que se amaram
sem saber que amar é pão feito em casa
e que a pedra só não voa
porque não quer
não porque não tem asa
Revolução animal
Foi tudo muito rápido. Um cavalo relinchou para o outro e começou a revolução nas baias. Ali estavam cerca de cem animais tratados com a melhor ração e atendimento veterinário de primeira categoria. O problema, segundo os cavalos, era o dono deles. Um ditador de república de bananas que chegara ao poder pelo voto dos miseráveis, a quem sempre enganou como se fosse o novo messias, e nunca mais saiu porque sua guarda pretoriana era uma das mais sanguinárias do planeta. Os Tonton Macoute do Haiti perto deles eram coroinhas com asas de anjo. Os cavalos traçaram os planos durante as madrugadas. De baia para baia a estratégia foi passada e repassada. Até o dia em que o ditador resolveu cavalgar bem cedinho. O animal escolhido sabia o que fazer, assim como qualquer um que tivesse a honra daquela escolha. Longe da vista de todos, derrubou o líder do povo e o pisoteou até que o corpo se transformasse numa pasta de sangue, ossos e músculos misturados. Então relinchou e empinou as patas da frente - em comemoração.
segunda-feira, 25 de agosto de 2014
Barriga
Comia terra, tijolo, o que desse vontade. Era uma criança com cabeça grande, pernas finas e, obviamente, uma barriga que ia aumentando na medida em que o leque de alimentos não convencionais crescia. Um dia alguém fez uma foto dele. Pés descalços, caça curta, camisa de colarinho branca que só fechava no primeiro botão, perto do gogó. O resto abria espaço, feito uma cortina de teatro, para o espetáculo daquele bucho enorme ornamentado pelo umbigo que parecia pronto a explodir com o resto. Depositário de lombrigas, tomou remédio e melhorou. Então mostraram-lhe o retrato. Morreu de vergonha. Tirou-a da mão de quem fez a maldade e picotou-a ao máximo. Cinquenta anos depois, se arrependeu do gesto. Queria ver a imagem. Para comparar com o barrigão de hoje que se espalha feito uma ameba de banha.
sexta-feira, 22 de agosto de 2014
quinta-feira, 21 de agosto de 2014
O que quer dizer
De Paulo Leminski
O que quer dizer diz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
Não fica fazendo
o que, um dia, eu sempre fiz.
Não fica só querendo, querendo,
coisa que eu nunca quis.
O que quer dizer, diz.
Só se dizendo num outro
o que, um dia, se disse,
um dia, vai ser feliz.
Crianças
O filho ligou e pediu o cartão de crédito do pai. Queria comprar algo no exterior - e estava a zero. O pai quis saber qual seria o tamanho do estrago. Cinquenta dólares. Autorizou e adiantou que era presente de aniversário, pois sabia que não seria reembolsado. O filho concordou e apareceu para entrar no site, clicar no carrinho e jogar o produto dentro. Pouco antes do processo, o pai perguntou o que ele iria comprar. Um pijama, respondeu o filho. O pai deu a dica: na Casa Edith o filho poderia encontrar uns bem bacanas, tradicionais, do tempo dos shows ao vivo na Rádio Clube que ficava ali perto. O filho disse era era um pijama da turma do Star Trek, vulgo Jornada nas Estrelas. O pai abriu um sorriso. Viu que ali estava um herdeiro nato. O filho tem quase quarenta anos. O pai caminha célere para os setenta. Este então mostrou o avião do Barão Vermelho que acabara de comprar escondido da mulher. Ao filho revelou que, quando ela descobrir, vai dizer que a janela do escritório estava aberta e a aeronave de três asas entrou e pousou - e que ele só viu depois. Pai e filho se abraçaram e sorriram como crianças que se amam.
quarta-feira, 20 de agosto de 2014
Candidato a que?
Candidato a que, mesmo? O outro não podia responder. A ponta do cano do Colt Python fazia cócegas na úvula da garganta, mai conhecida pelo povão como campainha. O dedo estava no gatilho e o cão puxado para trás. O candidato podia ver a ponta de algumas balas - tinham uma cruz, mas não eram de prata. Pensou nos filhos. Lembrou que há muito tempo não fazia isso. Sua vida era inteiramente dedicada à política parlamentar. Foi assim que ganhou fama como articulador de primeira, capaz de eleger prefeitos, governadores só com uma aceno de mão - enquanto a outra esperava para o pagamento gordo durante todo o mandato. Os filhos estavam fora do país, estudando para manter o patrimônio amealhado nos acordos que os que o elegiam nunca souberam. Era amigo de todos os empreiteiros e só conhecia a periferia porque obrigado até a comer sarapatel e quiabo gosmento na busca de votos. Candidato a que, mesmo? Ouviu de novo e jamais imaginou que, numa sociedade democrática iria passar por uma situação como aquela. Não conhecia o homem que empunhava aquela arma com uma segurança impressionante. Piscou uma, duas vezes. O cano saiu da boca e ele disse em meio a um suspiro longo: "A nada!". O outro guardou a arma e foi em busca do próximo. O que deixou para trás convocou entrevista coletiva para o dia seguinte. Anunciou que, por motivos particulares, estava desistindo da candidatura e da longa carreira política. Nada mais disse e não permitiu perguntas. Sumiu da vida pública. Hoje gosta de ficar o dia todo vestido com um pijama listrado. Com problema sério na próstata, a calça sempre está molhada/manchada.
terça-feira, 19 de agosto de 2014
Cavalar
Os cavalos começaram a entrar na vida dele quando ainda era bebê. Olhava do berço a imagem do anjo protetor e fazia associação com o trotar do cavalo da carroça que distribuía leite em garrafa no bairro. Essas associações malucas continuaram durante toda a vida dele. Ninguém se importava, pois era era um gênio para o resto das coisas, inclusive o ensino. Foi a Harvard e voltou um mês depois dizendo que aquilo parecia colégio de subúrbio. Sim, tinha espírito de grandeza. O anjo não o acompanhava mais, porque ele disse um dia que tinha matado Deus – e ficava puto quando alguém dava este crédito a Nietzsche. Resolveu se isolar. Comprou uma fazenda no interior do Paraná com o dinheiro que ganhou em jogos de azar. Azar dos que ele limpou, porque descobriu uma fórmulas de burlar qualquer parada no carteado, porrinha ou jogo de dados. Os cavalos estavam lá, no pasto. Resolveu comer junto. Alfafa e grama. No segundo dia já estava acostumado ao gosto. Sozinho, com vizinhos a quilômetros de distância, queimou as roupas e passou a andar nu e de quatro. Um dia tentou seduzir uma égua. Levou um coice. Morreu com uma marca de ferradura no meio do peito. Antes de apagar definitivamente, ouviu um relincho – e viu novamente o anjo.
segunda-feira, 18 de agosto de 2014
Estrela
A oportunidade chegou! Ele pensou assim ao receber a notícia da viúva de um ex-delegado de polícia que tinha morrido velhinho. Havia uma arma na casa - e ela queria se desfazer daquilo porque morria de medo. Era um revólver, foi informado. Ele pensou num Smith&Wesson ou Colt calibre 45. Se fosse trezoitão serviria também. Foi até a casa, enorme, vazia, só com a velhinha ali dentro e perguntou onde estava o trabuco. Ela o levou até o quarto, pediu que abrisse o maleiro e informou que ele estava ali escondido. Ele, coração batendo, enfiou a mão e tateou. Encontrou um pacote plástico, mas pelo tamanho... Tirou e viu uma cartucheira e abrigando um trequinho de cano tão fino e cabo tão pequeno que teve vontade de chorar. Duas balinhas estavam acomodadas na cartucheira. Chegavam a ser ridículas para alguém que, no passado, até de metralhadora ponto cinquenta atirou. Ele devolveu para ela e disse que preferia que fosse um revólver de cabo vermelho da brinquedos Estrela. Foi embora e adiou o projeto de limpeza eleitoral. Com aquele 22 velho ele iria é causar risos para quem o apontasse. E ele estava cansado de ser palhaço de poderosos.
sexta-feira, 15 de agosto de 2014
quinta-feira, 14 de agosto de 2014
Mosca
De Dalton Trevisan
De repente a mosca salta e
pousa na toalha branca. Você a espanta, sem que voe — uma semente negra de
mamão.
Em miúdos
Viu pela primeira vez quando era criança. Matadouro. O bicho entrava no corredor como se do outro lado estivesse o pasto mais verde e tenro do Planeta. De repente a marreta descia bem no meio da testa e tudo estava acabado. Mais um pouco ele estava esquartejado e pendurado em ganchos nos açougues da cidade de porte médio. A cena foi tão forte que produziu o seguinte: alguns anos depois ele empunhava aquela mesma marreta - e o som da pancada na testa soava como música para ele. Era um especialista renomado, porque não errava uma. Mas não comia carne. Ninguém perguntava. Num dia de folga encontrou a amada num parque de diversões. Ficaram encantados um pelo outro. Na primeira oportunidade ele levou-a para conhecer a sua profissão. Ela desmaiou antes de a marreta atingir o meio dos olhos do bicho. Quando acordou, ele perguntou o que tinha acontecido. Ela: "Trocando em miúdos, coração, por favor".
quarta-feira, 13 de agosto de 2014
A laço
Não me esforcei, está certo. O laçador também não. Agora estou aqui preso com meus companheiros de rua. Alguns choram. Eu, não. Não aguentava mais aquela vida vadia, sem casa, tendo de procurar comida todo dia e sem lugar definido para dormir. Não há mais seres humanos na Terra! Soube de histórias passadas onde os da minha raça sem raça recebiam comida boa das almas caridosas. Agora só vejo esse povo falando no celular ou digitando no aparelhinho sem se importar com mais nada. Cansei. Quero conferir se o final é aquele mesmo, o tradicional. Não tive coragem de me suicidar no trânsito. Um dia fiquei no meio fio observando o tráfego. Buscava coragem para fechar os olhos e atravessar a via rápida. Aí veio um mané e me deu um bico nas costelas. Perdi o fôlego. Senão ia arrancar um pedaço da panturrilha dele. Agora estou aqui, trafegando na carrocinha. Se eu virar sabão, pelo menos que seja vendido em supermercado onde as empregadas compram para as casas de madame. O veículo não é confortável, mas penso que, se forçar a imaginação, ela se transforma numa carruagem. A da última viagem.
Balada do Inquilino
De Miguel Sanche Neto
Esta vida, não se iluda,
É uma casa alugada.
Haverá um dia em que
Não poderemos pagá-la
E seremos despejados.
Antes, outros perderão
O direito de habitá-la.
Aquele que vive no quarto
Com medo do desfecho
E quem, corajosamente,
Armou sua cama na sala
- todos irão do mesmo jeito.
Este senhorio é implacável.
Um dia não poderemos pagá-lo
E então nos expulsará deste berço
E passaremos a noite ao léu
- fantasma que nada tem de seu,
corpo, roupas ou endereço.
Um dia nos livraremos do aluguel.
terça-feira, 12 de agosto de 2014
oração a são nunca
De Roberto Prado
dei
duro e eros me abriu seu coração
não preciso nem de boca pra baco me estender o garrafão
marte me deu uma mão
mamom perguntou quanto era e puxou o talão
um belo dia tive de dizer não
mas ainda amo essa humanidade marrom
fiel a eros, baco, marte e mamom
não preciso nem de boca pra baco me estender o garrafão
marte me deu uma mão
mamom perguntou quanto era e puxou o talão
um belo dia tive de dizer não
mas ainda amo essa humanidade marrom
fiel a eros, baco, marte e mamom
Noite no rio da floresta
A viagem foi longa. De São Paulo a Cuiabá em ônibus toco duro. De lá, carona em caminhão que atolou na estrada para Porto Velho. Uma semana de lama. Depois, barquinhos pelo Rio Madeira para chegar a Manaus, com paradas em vilarejos onde padre só era visto uma vez por ano - e todos pareciam liberados para pecar enquanto aguardavam o homem de batina. Aí ele entrou no barco com a mochila nas costas e um saco de dormir e ficou oito dias ali dentro, na imensidão do rio no meio da floresta. Esperava algo, que não sabia o que era. Apenas tinha uma certeza: sua alma estava nas trevas e ele carregava o peso do mundo. Nem o transatlântico com luzes de Felini no meio da noite conseguiu levar para longe aquilo que o oprimia. Até que, de repente, numa virada de rosto, ele viu a lua clara na noite escura. Era o que procurava sua alma obscura.
segunda-feira, 11 de agosto de 2014
Pilhado
Não lembra quando foi a primeira, mas depois de um mês estava engolindo pilhas como se fossem pastilhas Valda. Pode ter sido uma coincidência, mas quando a primeira caiu no estômago ele achou que sentiu uma melhora significativa na vida - que era medíocre até então. Começou a ler os clássicos e bula de remédio. Passou a correr todo dia e chegou a fazer cinco quilômetros sem colocar os bofes pra fora. Banho, tomava três. Apareceu uma mulher que dizia estar doidinha para fazer sexo com ele, coisa que não acontecia desde que foi levado pelo pai para perder a virgindade num puteiro. E a transa dos dois parecia coisa de cinema. A pilha! Ele passou a engolir duas por dia. Certo, era do tamanho palito, mas os resultados começaram a fazê-lo sonhar em mandar para dentro uma do tamanho grande - e de longuíssima duração. Foi o que fez depois de passar um final de semana como se estivesse no paraíso. Os socorristas chegaram o mais rápido possível. Ele não morreu. Mas a pilha do gato ficou entalada no meio da garganta.A vida dele ficou pior do que era antes de engolir a primeira.
sexta-feira, 8 de agosto de 2014
quinta-feira, 7 de agosto de 2014
Cassetete
Não foi como no filme. Ele estava de bem com a vida sob o céu azul e sol ameno. Mas ao olhar o cassetete que comprara numa feira de antiguidades... teve um troço. Pela primeira vez olhou a etiqueta colada e lá estava escrito que era inglês e do início do século passado. A primeira imagem que veio foi a dos policiais que perseguiam Carlitos. Sim, ele era cinéfilo e tinha um arquivo impressionante de cenas na memória. Aí vieram cenas de pancadaria pura em cima de grevistas, trabalhadores de minas de carvão, estudantes querendo mudar o mundo, etc. Ele empunhou aquele pedaço de madeira e as primeiras vítimas foram os santos e anjos que mantinha num pequeno altar. Depois espatifou a tela do computador que estava ligado, quebrou todos os televisores e espelhos da casa e saiu para rua com olhar esbugalhado - em busca do que não sabia. Não atacou ninguém, mesmo porque as pessoas ficavam bem distantes dele. Foi então que viu um casal de canários da terra ciscando num jardim. Parou e ficou olhando por um longo tempo. Depois sentou no meio-fio e começou a chorar e soluçar feito menino perdido no oco do mundo.
quarta-feira, 6 de agosto de 2014
Antes da curva
Não foi uma briga qualquer. Era definitiva. Ele bateu a
porta com tanta força que a maçaneta voou. Mais um casamento no ralo. Teve
vontade de socar a parede, mas se contentou em espatifar o aquário no chão.
Depois pegou o peixinho de rabo vermelho e colocou num copo com água filtrada.
Estava melhorando. No primeiro casamento deu um tiro na mulher e acertou um
filtro. Ainda bem. Foi o primeiro. O que acabara agora era o quinto. Pegou a
ruazinha e cismou de andar até não dar mais. Embaixo no viaduto na saída da
cidadezinha entrou no bar. Pediu a “poca-ôio”, uma mistura de álcool com
metanol. Tomou tudo de um gole. Sentiu tudo queimar. Do céu da boca às paredes
do estrômbo, como falava. Andou um pouco e começou a incorporar o inferno na mente. Mirou a estrada e viu uma curva. Parou, sentou, se encostou
numa cerca e disse: "O certo, na curva, se perde. O torto, se deita. Nem certo,
nem torto, sigo reto em linhas tortas". Não sabia de onde vinha aquilo. Nem
ficou sabendo. Caiu para o lado e só foi acordar porque levaram-no de camburão
para casa. Ele olhou a porta. A maçaneta estava lá. Quando entrou na sala, viu
o peixinho no copo. No outro dia comprou um aquário maior que o antigo
terça-feira, 5 de agosto de 2014
O grito
Dobrou a esquina e viu na praça da vila o ônibus parado. Leu de longe que ali dentro encontraria bichos ferozes da Amazônia. Pelo estado do veículo, deduziu que já devia ter rodado o Brasil inteiro. Perto da entrada, uma bilheteria improvisada. Dentro, uma mulher com rosto vincado pelo tempo, maquiagem pesada e uma pinta perto do canto esquerdo da boca. Ele pagou e entrou. No lugar dos bancos, aquários e pequenas jaulas. Bicho preguiça não é fera, mas estava lá com aquela cara de coitado. Um peixe elétrico nadava em água turva. Um macaquinho olhava triste num cubículo fedido. Então ele viu a gigantesca e monumental jiboia toda enrolada e sem se mexer no último compartimento daquele cenário nada agradável. Chegou perto e daquele monte enrolado apareceu uma cabeça que abriu a boca. Ele ouviu um grito, teve certeza. Saiu correndo e só parou em casa, ofegante. Nunca mais aquilo lhe saiu da cabeça. Era um grito de socorro.
segunda-feira, 4 de agosto de 2014
Lacrado
De Miguel Sanches Neto
O que fui em menino
é hoje um baú lacrado
que, alheio à minha história,
tenho como inquilino.
Em vão tentam arrombá-lo
as raízes da memória.
O que fui em menino
é hoje um baú lacrado
que, alheio à minha história,
tenho como inquilino.
Em vão tentam arrombá-lo
as raízes da memória.
Na cabeça
No plantão o enfermeiro vê o senhor de olhos esbugalhados entrar com uma criança no colo. Ele diz que ela precisa de socorro. Ela não precisa de socorro. Está morta. Uma parte do couro cabeludo caiu para a testa e lhe cobre os olhos. O tampo do crânio sumiu, deixando o que restou do cérebro à mostra. O homem entrega a criança e sai em disparada. Um carro da polícia freia na frente do pronto socorro. Prendem o velho, que não oferece resistência. Era o avô do bebê. Os policiais depois contaram o que várias testemunhas viram. O velho segurou a criança com uma mão, ergueu-a para o alto e deu-lhe um tiro na cabeça com o revólver. Não estava bêbado, não estava alucinado, não estava nada. Fez, como se fosse a coisa mais normal. O enfermeiro começou a chorar quando ouviu isso. Já tinha visto de tudo naqueles plantões, mas ainda não tinha conhecido o lado escuro e perverso da alma humana.
sexta-feira, 1 de agosto de 2014
quinta-feira, 31 de julho de 2014
Multidões
O Cantor das Multidões saiu do pequeno auditório e foi até a sacada do prédio que abrigava a rádio. Havia milhares de pessoas em todas as direções que olhava. Ele ergueu a mão direita espalmada e o silêncio se fez. Então cantou sem acompanhamento ou microfone. Sua voz era ouvida até por quem não conseguia distinguir aquela figura muito alinhada, gravata com nó perfeito e sapatos brilhantes que escondiam seu grande problema. Carinhoso já era um hino nacional - por isso foi cantada em tom suave por todas as vozes - e a cidade inteira a ouviu. O slogan da rádio viajou no tempo. Foi naquela sacada, o saudosista pensou, enquanto ouvia o barulho infernal do trânsito na esquina e via o prédio abandonado até a parte da loja de eletrodomésticos que se abria para a calçada. Lá de dentro vinha um som que poderia ser breganejo, funk, axé ou alguma coisa da moda atual. Ele enfiou as mãos nos bolsos e saiu cantarolando meu coração, não sei por que, bate feliz, quando te vê...
quarta-feira, 30 de julho de 2014
Dentro da parede
Sempre tive medo do suicídio tradicional. Tiro na cabeça, enforcamento, salto do décimo quinto andar, navalha cortando os pulsos, coquetel de barbitúricos, escapamento de automóvel, gás de cozinha. Não pelo ato em si, mas o que antecede tal coisa. Nunca tentei. Mas a vida estava tão sem cor, que um dia, pensando nisso, enquanto assentava tijolo por tijolo numa parede na casa que ajudava a construir em bairro nobre, de repente a ideia começou a surgir e ganhar forma como aquele pedaço da obra. Fiquei até mais tarde e disse para o mestre de obras que precisava adiantar um serviço porque, no dia seguinte, tinha um compromisso inadiável que faria eu me atrasar um pouco. Ele aceitou. Então me emparedei numa reentrância que o dono da casa não gostou e mandou fechar. No dia seguinte ouvi meus companheiros iniciarem o acabamento que terminou na massa corrida e pintuyra. Fiquei quieto na escuridão. Sabia que a cada minuto o ar diminuiria e a cimento secaria mais, tornando quase impossível a saída. Desmaiei a não sei quantas horas ali dentro, um espaço razoável que dava até para se esticar. Acordei no hospital. Tinham arrebentado a parede e me salvaram. Eu quis saber como. O chefe contou que ouviram gritos. Eu sonhava que estavam me emparedando e entrei em pânico.
terça-feira, 29 de julho de 2014
Confissão
Atravessou a rua quando viu a igreja de torres altas. Lá estavam os sinos anunciando a hora. Para ele não era isso. Para ele era o sinal de ali entrar, depois de anos, e se confessar. Estava carregado de pecados, menos roubo e assassinato. Encontrou o frade franciscano curvado pela idade e pelo peso da barba. Disse o que queria. Ouviu como resposta uma pergunta: "É divorciado?" Ele não só era divorciado como já tinha morado e se separado com umas doze mulheres. Brincava que queria ser o novo Vinicius de Morais. O padre disse que ele não podia se confessar. Lei da igreja. Incrédulo, perguntou se teria de ir para o inferno porque tinha se divorciado. O velhinho não respondeu. Virou as costas e entrou na escuridão do templo. No outro dia ele voltou e encontrou outro padre. A mesma pergunta ouviu. Ele disse que não, não era divorciado. Entrou, fez a confissão de todos os pecados que lembrou e, no fim, revelou que tinha mentido. Ao próprio padre. Dito isso, saiu do confessionário sem ouvir a penitência e crente que tinha pavimentado o caminho da salvação.
segunda-feira, 28 de julho de 2014
Invernáculo
De Paulo Leminski
Esta língua não é
minha,
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.
qualquer um percebe.
Quem sabe maldigo mentiras,
vai ver que só minto verdades.
Assim me falo, eu, mínima,
quem sabe, eu sinto, mal sabe.
Esta não é minha língua.
A língua que eu falo trava
uma canção longínqua,
a voz, além, nem palavra.
O dialeto que se usa
à margem esquerda da frase,
eis a fala que me lusa,
eu, meio, eu dentro, eu, quase.
O bife
Os meninos eram pequenos e moraram numa casa pobre. Mas naquele tempo pobre se dava ao luxo de ter empregada. Ela era magrinha, pequena. Ficava a parte da tarde ali, fazendo um servicinho ou outro enquanto a patroa trabalhava duro na máquina de costura. Jantava cedo. No cardápio sempre havia bife. O dela ia para o prato, mas ela não comia. Embrulhava e levava para casa. Aquilo intrigava os meninos que ela cuidava. Um dia eles resolveram segui-la. Achavam que ela guardava o pedaço de carne para ir comendo no caminho. Não era isso que acontecia. Foram até a casa dela, muito, muito mais pobre. Conseguiram ver que, assim que chegava, ela entregava o bife para a mãe, que a esperava na porta. E aí imaginaram o que acontecia. Aquele bife pequeno seria dividido para várias bocas.
sexta-feira, 25 de julho de 2014
quinta-feira, 24 de julho de 2014
Aqui!
Perguntou e ouviu: “Nem
longe, nem perto; aqui”. Ele estava no telefone de um orelhão que tinha sido
queimado por alguns noiados que acham que a fumaça dá barato. Mas o aparelho funcionava. Discou porque precisava falar com uma atendente do serviço
funerário. O motivo não importa. Do outro lado aconteceu uma voz tão doce que ele imaginou ter acessado uma linha do céu. Ficou encantado e engatou uma conversa. A moça era muito
educada e amável. Dosava a seriedade com bom humor - e ele, já maluco, pensava em sexo. Ele queria
saber o nome dela, onde trabalhava e o endereço. Ela só disse “nem longe, nem
perto; aqui”. Foi aí que desligou. Ele
ficou com a voz e a indicação na mente por vários dias. Até que assumiu que
também não estava nem longe, nem perto. E permaneceu na dele.
quarta-feira, 23 de julho de 2014
Winchester 44
A Winchester 44 que deu o primeiro tiro no final do século XIX apareceu nas mãos dele porque tinha de aparecer nas mãos dele. Lembrou de Antonio das Mortes e engatilhou. Não havia balas. Ele não queria. Apenas para saber se a máquina estava funcionando. Quando apontou para o nada e olhou através da mira, foi que viu. Era a produção dela através dos tempos. Tiros em todos os cantos dos corpos, mas principalmente na cabeça, letais. Abaixou a arma. Não havia nem vivos nem mortos naquela paisagem do agreste nordestino. Um galo de campina voou, o xexéu de bananeira imitou o canto de outro pássaro, ele mirou de novo e mais e mais mortes desfilaram à sua frente. Foi aí que recebeu uma bala, uma única bala, de alguém que estava olhando a cena. Colocou, armou, apontou e atirou. Tudo voltou à paz. Ele então foi colocar o rifle para descansar numa parede da casa.
terça-feira, 22 de julho de 2014
Pastéis
De Dalton Trevisan
Uma bandeja inteira de pastéis. Como escolher um deles? São tantos.
— Fácil: deixe que ele te escolha.
— Fácil: deixe que ele te escolha.
Tela viva
Uma estrada e uma ponte que cruzava um lago, um mar. Ele não lembra bem. Estava viajando no banco do carona e um sacolejo o fez acordar e se deparar com aquilo. O sol tinha descido e a luz era a que antecede o breu da noite. Barcos minúsculos ainda se conseguia ver na lâmina da água escura. Parecia cinema. Ficou para sempre com aquilo na memória. Imaginava filmar ali, apesar de nunca ter empunhado uma câmera. Não sabia o enredo, nunca tentou fazer o script, mas tinha certeza de que aquilo precisava ser registrado -porque os personagens dispersos começaram a povoar sua alma. Ficou velho e nunca mais passou por aquele lugar. A cena nunca saiu da tela viva do da sua memória.
segunda-feira, 21 de julho de 2014
Fugaz
De Rodrigo Garcia Lopez
passagem por uma paisagem,
lugar do onde, do ontem, do quando,
quantas palavras ficaram faltando
na boca cheia de imagens.
o outro é aquele que ficou à margem,
no espanto de um pronome,
no corpo de uma brisa suave;
o outro é como uma fome
pluma à deriva, à distância, ou quase.
estranho em sua própria viagem,
garrafa com uma mensagem,
olhar durando numa flor,
sem nome, secreta, selvagem.
Desterro, água bebida num trem,
peça incompleta, festa adiada, vertigem,
a cabeça sempre em alguém,
eu outro, eu todos, ninguém.
passagem por uma paisagem,
lugar do onde, do ontem, do quando,
quantas palavras ficaram faltando
na boca cheia de imagens.
o outro é aquele que ficou à margem,
no espanto de um pronome,
no corpo de uma brisa suave;
o outro é como uma fome
pluma à deriva, à distância, ou quase.
estranho em sua própria viagem,
garrafa com uma mensagem,
olhar durando numa flor,
sem nome, secreta, selvagem.
Desterro, água bebida num trem,
peça incompleta, festa adiada, vertigem,
a cabeça sempre em alguém,
eu outro, eu todos, ninguém.
Depois do jardim
Só depois dos 70 ele descobriu que era bonito aos 20. E muito mais magro. E com muito mais cabelo. E com muito mais energia. E sem saber de nada. E sem medo de arriscar. E sem saber dos perigos. Então olhou para a árvore do belo jardim do casarão e viu um pássaro pousar num galho com pouca folhagem. Conversou com a única pessoa que o ouvia - ele mesmo. Veio uma alegria intensa por estar vivo, por descobrir que o interlocutor era ainda mais jovem que aquele de meio século atrás. Havia o diálogo que antes era apenas um monólogo de quem estava do lado de fora e se sentia no comando. De repente uma brisa mais fria interrompeu tudo. Ele ajeitou a manta que cobria as pernas. Uma enfermeira disse que era hora de voltar para o quarto. Empurrou a cadeira de rodas que ajudava-o a não fazer muito esforço, apesar de ele ainda poder dar alguns passos. Voltou para o quarto do asilo e ligou a televisão. Não existia mais ele nem o outro. Era melhor assim.
sexta-feira, 18 de julho de 2014
quinta-feira, 17 de julho de 2014
Ratos
Ele conseguiu! Todos os líderes mundiais assassinos estavam ali à sua disposição. Ditadores, democratas de fachada, enfim, todos os que determinaram massacres sem dó nem piedade. Assassinatos com bombas, tiros, fome, epidemias, ignorância e mentiras. Olhou todos e notou que tinham a postura altiva daqueles que acreditavam ter feito o que precisava para que tudo se mantivesse sob controle. Tinham convicção absoluta nisso, daí a certeza de que eram psicopatas sanguinários. Ele não fez discurso, nada. Saiu da sala, trancou a porta a prova de som e abriu o compartimento por onde ratazanas famintas entraram sentindo cheiro de alimento. Eram milhares e o que mais chamava a atenção, além dos dentes, eram os olhos negros e esbugalhados. Ele então pode descansar um pouco. Então olhou a paisagem tranquila de um fim de tarde à beira de um lago longe de qualquer aglomerado urbano. No outro dia começou relacionar onde aqueles líderes poderiam ter deixado como herança seus rastros de ódio.
quarta-feira, 16 de julho de 2014
Descompassado pela freira
A madre superiora saía na varanda da casa que abrigava a diretoria e batia um sino ouvido em todo o colégio. Soava como música dos anjos. Recreio ou hora de ir embora. Mas havia mais. Uma das freiras. Toda coberta de preto, só o rosto aparecendo naquela moldura branca. O menino estava no primeiro ano primário e quando a viu pela primeira vez se apaixonou perdidamente. Não queria saber de mais nada e rezava, pedia aos santos, a Nosso Senhor Jesus Cristo, a Deus, enfim, que fizessem com que ela aparecesse todo dia, nem que fosse por uma fração de segundo. Quando isso acontecia, o coração batia descompassado como bongô, como mais tarde ele ouviu e concordou com o poeta Aldir Blanc. Sim, ele tremia mais que as maracas e nunca confessou isso ao padre no sábado porque, não, definitivamente não era pecado. Era como se fosse um milagre que ele ainda não entendia direito, mas sabia ser do lado bom da vida.
Lição
De Helena Kolody
A luz da lamparina dançava
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
frente ao ícone da Santíssima Trindade.
Paciente, a avó ensinava
a prostrar-se em reverência,
persignar-se com três dedos
e rezar em língua eslava.
De mãos postas, a menina
fielmente repetia
palavras que ela ignorava,
mas Deus entendia.
terça-feira, 15 de julho de 2014
Pelos e pelos
Não tinha notado, mas um dia lhe contaram que seus pelos do nariz estavam saindo da cavidade. Disseram mais: que eles se pareciam com os das pernas de aranhas caranguejeiras. Só aí ele resolveu olhar. Também se assustou. Pegou a primeira tesourinha que achou e cortou tudo, mas sentiu uma dor profunda ao furar o teto interno de um dos túneis. Notou no dia seguinte que os pelos tinham crescido de novo, só que estavam maiores. Passou a acordar no meio da noite para cortá-los. Ao amanhecer, cortava de novo. Os pelos não cresciam durante o dia. Ele consultou médicos especialistas. Acharam que ele estava batendo biela. Partiu para o ataque agressivo e depilou com cera. Quando lhe arrancaram tudo, sentiu que sua massa encefálica tinha saído junto. Também não adiantou. Comprou um aparelho elétrico, um aparador de pelos que queimou no segundo uso. Lhe recomendaram xixi de lagarto. Conseguiu o produto depois de muito tempo. Deu certo. Não tem mais pelos no nariz - mas os dos ouvidos parecem touceiras.
segunda-feira, 14 de julho de 2014
Encontro com Anna Magnani
Ele viu Anna Magnani no rosto da prostituta da Casa de Pedra. Queria ser o motorista de caminhão alucinadamente apaixonado por aquelas olheiras, mesmo estando longe de ter qualquer traço da fachada e do corpo de acrobata de Burt Lancaster. Cinco "velho Jack" regados a muita cerveja sempre faziam isso com ele. A vida se transformava em película e o coração era mais romântico que um casal enamorado dançando na penumbra ao som de um bolero. Anna veio a um sinal. De perto ele sentiu o perfume do jardim daquele lar doce lar da viúva de A Rosa Tatuada. E mergulhou sem se preocupar se teria águas calmas ou um precipício a espera. Acordou no dia seguinte - e Anna não era Anna. Ela perguntou se ele estava bem. Ele disse que sim. Ouviu o choro de uma criança dentro da casa de madeira. Não se importou. Pagou e saiu caminhando com o sol lhe ferindo os olhos. Estava numa rua de terra vermelha. Caminhou como nos finais de vários filmes. O dele demoraria muito para terminar.
Vida
De Antonio Thadeu Wojciechowski
Vida/ um ano a mais/ um ano a menos/ que diferença faz/ quando já somos/ mais ou menos/ mais suaves/ mais sábios/ mais fortes/ mais justos/ e de mais a mais/ cromossomos/ um ano a mais/ um ano a menos/ a vida é cais/ e lá vão nossos sonhos:/ barcos pequenos/ um ano a mais/ um ano a menos/ lendo os sinais/ nos esquecemos/ e quando nos lembramos/ é tarde demais/ um ano amais/ outro odiais/ um ano demais/ outro de menos/ um ano tanto fez/ outro tanto faz/ um ano como nunca ouve outro/ um ano sem pagar e só levando o troco/ um ano que vem/ um ano que vai/ e os mesmos ais/ mais amenos.
Vida/ um ano a mais/ um ano a menos/ que diferença faz/ quando já somos/ mais ou menos/ mais suaves/ mais sábios/ mais fortes/ mais justos/ e de mais a mais/ cromossomos/ um ano a mais/ um ano a menos/ a vida é cais/ e lá vão nossos sonhos:/ barcos pequenos/ um ano a mais/ um ano a menos/ lendo os sinais/ nos esquecemos/ e quando nos lembramos/ é tarde demais/ um ano amais/ outro odiais/ um ano demais/ outro de menos/ um ano tanto fez/ outro tanto faz/ um ano como nunca ouve outro/ um ano sem pagar e só levando o troco/ um ano que vem/ um ano que vai/ e os mesmos ais/ mais amenos.
quinta-feira, 10 de julho de 2014
Homenagem
Em homenagem aos jogadores da seleção brasileira, estou em outros mundos e não sei fazer nada em campo.
terça-feira, 8 de julho de 2014
Comunhão
De Miguel Sanches Neto
Uma de minhas namoradinhas
era pobre de pé no chão
casebre de madeira e manhã
e tinha tanto piolho
que acabei herdando-os.
Quando brigamos,
eu quis romper para sempre.
Com pente fino
expulsava os piolhos
de minha cabeleira
e ia, um a um,
estalando-os nas unhas.
(O sangue que saía era meu e dela.)
Uma de minhas namoradinhas
era pobre de pé no chão
casebre de madeira e manhã
e tinha tanto piolho
que acabei herdando-os.
Quando brigamos,
eu quis romper para sempre.
Com pente fino
expulsava os piolhos
de minha cabeleira
e ia, um a um,
estalando-os nas unhas.
(O sangue que saía era meu e dela.)
Um corpo na água
O corpo apareceu boiando na água límpida. Estava inchado e em decomposição. O primeiro que viu não acreditou naquilo. Ficou observando alguns detalhes. Não podia ver o rosto, mas prestou atenção nas orelhas que lembravam um personagem de seriado interestelar. O cadáver vestia uma jaqueta vermelha e a calça jeans era apertada nas canelas. Isso fez inchar ainda mais a parte visível até chegar à meia. O espanto do curioso foi passando com o tempo e ele resolveu não chamar a polícia por acreditar que não iam acreditar no que falaria ao telefone. Ele virou o corpo e levou um susto. O rosto era angelical - e não estava inchado. Lembrava o anjo de Morte em Veneza e a expressão era de que tinha morrido feliz. Um suicídio? Talvez. Então a testemunha pegou o copo e derramou o líquido no rio caudaloso. O corpo deslizou devagar e seguiu boiando, agora em águas barrentas. O copo foi lavado e colocado no escorredor. Ficou ali por um bom tempo até que outra pessoa o pegasse para tomar água. Nunca mais apareceu um cadáver naquela casa.
segunda-feira, 7 de julho de 2014
Não há mais
Havia. Não há mais. Um verbo que rasga o peito, queima a memória e verte lágrimas sentidas. Ele então olhou-se no espelho e se sentiu velho e cansado. Estava no banheiro de uma pensão barata numa vila que brotou junto com o garimpo descoberto no meio da floresta. De dia o sol queimava a pele. À noite a lua trazia junto o som dos demônios da mata. Alguns goles de cachaça serviam para embaralhar tudo. O copo da cerveja quente o levou até aquele espaço de dois por dois, chão de terra batida com um buraco cimentado onde todos se aliviavam. Ba parede aquele pequeno espelho, que refletia um pouco da luz da lamparina colocada em lugar estratégico - e os rostos daquela multidão de desgarrados da vida, anônimos feito as árvores que os cercavam. Havia. Não há mais. Ele pensou e sentiu o cheiro das roupas de cama limpinhas onde um dia deitou. E o cheiro da mulher amada, as vozes dos filhos que reinavam pela casa. Por que agora estava ali? Aconteceu como num corte abrupto de filme, no tempo exato da passagem de um fotograma para outro. E o passado foi derretido na chama de uma vida de erros.
sábado, 5 de julho de 2014
quinta-feira, 3 de julho de 2014
Na madrugada
A fotografia estava num álbum que há muitos anos ele não via. Lembrou dela no meio da madrugada da insônia constante - e a imagem apareceu como se tivesse a poucos centímetros dos seus olhos. Ele então resolveu escrever para quem estava registrada ali. Ao enfileirar as palavras que saíam como se ele estivesse num transe, descobriu o quanto conhecia aquela figura esguia a percorrer decidida uma ladeira e tendo ao fundo uma floresta iluminada. As revelações da cena congelada no instante do clique feito feito por ele, na verdade não eram revelações, mas sim a explosão de tudo que tinha trancafiado na alma e não sabia. A caneta acompanhou seu pensamento. Quando terminou, estava exausto e muito, muito feliz. Mandou a carta no dia seguinte, na primeira hora. Não esperou a resposta, pois aquilo que fez era uma a mais pura e sincera declaração à filha distante.
subtrações
De Roberto Prado
que tal pegar tudo que temos
e deste todo fazer a grande falta
um salto que cai, uma queda que salta
essa soma assim sem mais nem menos?
por que não juntar o nosso nada
o eterno que move, o nunca que repousa
e fazer destas perdas somadas
o achado de alguma coisa?
quarta-feira, 2 de julho de 2014
Na cama
De Dalton Trevisan
Na cama, diz o marido:
- Você é gorda, sim. Mas é limpa.
- ...
- Você é feia, certo? Mas é de graça.
Na cama, diz o marido:
- Você é gorda, sim. Mas é limpa.
- ...
- Você é feia, certo? Mas é de graça.
Para engolir
O livro cheirava a mofo e havia túneis feitos por traças.
Foi o único que ele encontrou na casa do bisavô paterno que herdou e estava
fechada há muitos anos. Antes era uma fazenda. Foi engolida por uma cidade e
estava cercada de favelas. Tentaram destruí-la, mas era impossível. Paredes de
pedra, como uma fortaleza. Ele folheava as páginas escritas em latim quando um
papel caiu sobre uma das tábuas largas do piso. Apanhou. Em letra garatujada
estava escrito: “Coisa ruim eu não mastigo, engulo”. Aquilo foi como receber um soco no estômago
da alma, se curvar com a dor, recuperar-se e nunca mais esquecer. Foi
também como o canto de um anjo empunhando uma espada vingativa e com o fio ensanguentado.
Ele então saiu dali, foi para casa e a primeira coisa que fez foi jogar algumas
mudas de roupa na mochila e sair para sempre sem dizer absolutamente nada para
a mulher que o atormentava há 25 anos. Fez isso porque, se ouvisse algo,
poderia lhe quebrar os dentes e ser preso. Engoliu e voou, sabendo que ela
também faria o mesmo.
terça-feira, 1 de julho de 2014
Desconstruído
Tem uma construção que vejo aqui da minha janela. Faz tempo que não ouço a música do Chico. Do compositor chegam as convicções do delírio, mas isso é coisa dele - a poesia, não, isso é coisa nossa! O céu está muito azul e, em vários momentos, a luz do sol e suas sombras fazem tudo se transformar em imagens lindas. Os pedreiros e ajudantes trabalham duro. Agora estão cobrindo o casarão com milhares de telhas. Daqui não vejo mãos calejadas, não sinto os corpos cansados, não sei a miséria que ganham, nem se têm mulher, filhos, nada. A vontade que dá é a de retratar as cenas, seja com câmera analógica, digital, em desenho ou em pintura. Não sei fazer nada disso. Ficam as imagens na retina da alma. Se fosse bilionário pagaria pelo que me proporcionam. Sou pobre e estou desempregado. Mas não gostaria de ser modelo ou inspiração para poesia subindo em construção e atrapalhando a vida.
BUSCA
De Nelson Capucho
a bordo de nau
sem rumo
só me encontro
quando fumo
sem rumo
só me encontro
quando fumo
nenhum minotauro
me assusta
meu labirinto
é apenas o que eu sinto
me assusta
meu labirinto
é apenas o que eu sinto
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