terça-feira, 29 de abril de 2014
Milagre na catedral
Entrou na catedral milenar e se sentiu como o arquiteto humano achou que o arquiteto de tudo recomendou. Um ponto minúsculo visto por algum marciano lá da casa dele. Fez o sinal da cruz e, assim que beijou a própria mão, foi invadido por uma luz que entrou pelo lado esquerdo. Na parede havia um vitral gigantesco, mas em meio aos desenhos e cores e santos uma janelinha se abriu. E ele viu o telhado de uma construção ao lado. Era o contato com ele mesmo, ou seja, o real. Ficou ali parado, hipnotizado. As pessoas que passavam começaram a parar e olhar na mesma direção. Também pararam. Também se imobilizaram. Bastou um se ajoelhar e os outros fizeram o mesmo. Foi então que alguém disse que aquilo era um milagre, que um anjo tinha por ali entrado para abençoar a todos e ao templo. Ele então viu uma pomba pousar no telhado vizinho e, logo em seguida, um macho. Este rodopiou, se achegou e subiu na fêmea.
segunda-feira, 28 de abril de 2014
Esporte porreta
O porrete estava na vitrine de uma loja de antiguidades. Trancado a chave. Ele entrou e nem perguntou o preço. Comprou, para espanto do comerciante. De madeira, datado do início do século passado. Ele lembrou de alguns filmes do Chaplin, com o policial sempre manuseando o cassetete à espera de um erro alheio. O primeiro a quem mostrou a peça sacou logo a ironia e foi atirando: "Muito sangue deve ter banhado a sua compra". Ele riu e pensou: se não fosse isso este animal não estaria aqui no bem bom usufruindo as benesses de uma nação civilizada. Levou então o porrete para o lugar onde coleciona armamentos. Colocou-o ao lado de uma borduna e de uma bimba de boi. Agora procura um taco de beisebol utilizado pelos italianos do Bronx. Ele gosta deste esporte.
domingo, 27 de abril de 2014
sábado, 26 de abril de 2014
Boemia
Eu voltei, como Nelson Gonçalves na boate da avenida São João - mas sem brilho, sem álcool, só com a boemia e o radar limpo para ver as almas tristes, alegres, atormentadas, esfuziantes... enfim, se ver.
sexta-feira, 28 de março de 2014
quinta-feira, 27 de março de 2014
Livre
Uma despedida sem palavras. Era o que queria. Mas, de repente, eles foram se juntando naquele pátio e ficaram em silêncio esperando as palavras. Porque durante todo o tempo em que ficou ali - e foram anos, conversou, acalmou, orientou, enfim, levou a palavra, sem ser pastor, padre ou monge. Quando entrou ali era um jovem que sabia ter perdido o futuro imediato. Iria pagar seu pecado por um bom tempo. Trancado, começou a pensar em si mesmo. Tirar todas os entulhos foi penoso. Até o dia em que se sentiu ele mesmo. Assim começou a falar com os outros. Não contava dias, horas, nada. Até quando lhe falaram que podia ir embora. Ele olhou-os nos olhos e começou a chorar. Não falou nada - e todos entenderam. Saiu da prisão com a certeza de que ali dentro finalmente tinha alcançado a liberdade.
quarta-feira, 26 de março de 2014
Longe da vaca preta
Era pobre. Mas limpinho, como dizem por aí. Lembra que um dia conheceu os carrinhos do autorama da Estrela na casa de um amigo classe média. Ele achou demais o brinquedo e o lugar onde estava. O polaco tinha um quarto só para ele. Depois foi este mesmo amigo que o apresentou ao hambúrguer e à vaca preta. . Ele não ficou pensando se um dia teria dinheiro suficiente para essas coisas. Não pensava. Tocava o barco, ou melhor, a bicicleta que um dia comprou. Mas ele queria uma moto e um Puma amarelo-canário. Amor à primeira vista. Anos mais tarde, profissional mediano, comprou a moto, que não sabe dirigir, um autorama, que fica dentro da caixa. Mas viciou em comer hambúrguer, tanto nas lanchonetes como os que ele mesmo fazia. Hoje lamenta a pança - que poderia ser maior se entrasse na vaca preta, mas ele não gosta do nome.
Capacidade
De Paulo Leminski
Transar bem todas as ondas
a Papai do Céu pertence,
fazer as luas redondas
ou me nascer paranaense
A nós, gente, só foi dada
essa maldita capacidade,
transformar amor em nada.
Transar bem todas as ondas
a Papai do Céu pertence,
fazer as luas redondas
ou me nascer paranaense
A nós, gente, só foi dada
essa maldita capacidade,
transformar amor em nada.
terça-feira, 25 de março de 2014
No terceiro andar do outro lado do mundo
Do outro lado da linha, do outro lado do oceano, do outro lado do mundo, a menina dizia que a mãe estava brigando com ela. E estava mesmo! Ele ouvia a voz da mulher ao fundo - e o som que recebia era o de uma dupla em dissonância. As duas, pelo jeito, se amavam - e se odiavam muito em momentos como aquele. Quem estava ao telefone disse que a mãe tinha ameaçado se jogar pela janela. Ele perguntou em que andar estavam. Terceiro. Ele, tranquilo, bem humorado, contou que, se a que tentava despencar não morresse, ia dar um trabalho danado na sequência - porque iria se quebrar toda. "Você não conhece minha mãe?", disse a voz bonita e aparentando segurança, querendo insinuar que pai e mãe tinham ficado juntos o tempo suficiente para conhecerem os defeitos do outro.Ele então respondeu que não conhecia mesmo, até porque nunca tinha casado - e não tinha filhos. O telefone foi desligado abruptamente. Ele nunca soube nem o nome de quem estava falando lá do desconhecido.
segunda-feira, 24 de março de 2014
queima
De Paulo Leminski
A quem me queima
e, queimando, reina,
valha esta teima.
Um dia, melhor me queira.
A quem me queima
e, queimando, reina,
valha esta teima.
Um dia, melhor me queira.
Patinete Rosebud
Quando viu o trenó do Cidadão Kane ele entendeu tudo. Rosebud para ele não tinha nada a ver com genitália da amante do poderoso Hearst. Era o patinete que construiu no tempo em que morava no quarto e cozinha da rua de terra que era o caminho para a longa descida de asfalto. Pirambeira. Lembrou do nome que todos os meninos da rua davam para aquela ladeira. Só então se deu conta da quantidade de crianças que havia naquele canto pobre da cidade grande. Todos eram criativos para as brincadeiras. Que, sim, tinham sua temporada marcada no calendário. A dos patinetes ele não recordava quando era, mas fazer o veículo exigia talento e uma boa dose de sorte para achar a madeira - aquela que ladeia qualquer cama normal. Uma sola de sapato velho fazia a junção entre as duas partes - e rolimãs azeitadas eram as rodas. A velocidade da máquina era incrível e a descidona interminável. Duro era subir tudo de volta para chegar de novo ao topo... e descer. Não faltava energia. Rosebud. Ninguém dava nome aos patinetes, mas eles acompanharam para sempre todos aqueles meninos que se dispersaram por aí.
quinta-feira, 20 de março de 2014
quarta-feira, 19 de março de 2014
Cavalo na chuva
Uma hora e meia depois daquele sacrifício de pesos, esteira, etc, ele saiu trôpego da academia sonhando com o banho quente para curtir o melhor momento dessas coisas: o depois. Foi aí que viu o asfalto molhado e a chuva forte caindo do céu escuro. Reflexos das luzes dos carros bailavam na língua escura da rua e só então se deu conta que nunca tinha pilotado assim. Olhou a moto azul e lembrou do cavalo de aço de um tempo qualquer. As drogas naturais do corpo circulavam no cérebro como se bailassem numa sinfonia que só dava prazer. Ele montou, apertou o botão de partida, primeira engatada e entrou na experiência inédita. De calção, camiseta, um tênis velho de cadarço esgarçado e capacete com viseira aberta. Os pingos pareciam setas endereçadas do nada a entrar na alma com a suavidade dos deuses. Frias, sim, mas quentes o suficiente para fazer o coração descompassar. Ele então soltou um grito tão forte que logo um relâmpago cortou o céu no horizonte e o trovão veio depois para responder que, sim, era isso mesmo.
Na cara
De Paulo Leminski
Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
Só existe um segredo,
Tudo está na cara.
Eu, hoje, acordei mais cedo
e, azul, tive uma ideia clara.
Só existe um segredo,
Tudo está na cara.
terça-feira, 18 de março de 2014
Para matar
Alguém um dia falou que levar um tiro é como se fosse um soco. Isso no primeiro momento e, claro, dependendo de onde a bala entra. Ser for na cabeça ou direto no coração, não dá para pensar se é soco ou sopro. Já era. Apaga para sempre e não vai encontrar São Pedro na porta de entrada como nas piadas. Ele pensava nisso enquanto limpava a Walter P38 que herdou de um soldado que lutou na Segunda Guerra Mundial. Nove milímetros, perfeita no seu encaixe, coisa de alemão. Colocou o pente cheio de balas e saiu na noite querendo uma encrenca para ver se a na prática a teoria é essa mesmo - ou outra. Lembrou do personagem de Feliz Ano Velho tentando pregar alguém na parede com tiro de calibre 12. Não era o caso. Um bêbado esbarrou no carro. Ele saiu de arma em punho fazendo mira num ponto abaixo da clavícula direita da vítima. O dedo no gatilho parecia pegar fogo, a respiração se alterou, mas ele não atirou. Aquele rosto ele conhecia, mas não sabia de onde. Talvez do seu tempo de bebedeiras monumentais. Talvez do seu tempo de morador de rua, largado da vida. Guardou o canhão, deu uma nota de cem para o amigo, foi para casa. Ligou a tv. Charles Bronson atirava. Desligou. Sonhou com um campo de girassóis.
sossegue coração
De Paulo Leminski
sossegue coração
ainda não é agora
a confusão prossegue
sonhos a fora
calma calma
logo mais a gente goza
perto do osso
a carne é mais gostosa
segunda-feira, 17 de março de 2014
Uma camisa vermelha, 45 anos depois
Abriram um álbum antigo, pesado, daqueles em que as fotos ficam presas por cantoneiras. Era festa de turma, turma que se reuniu há quarenta e cinco anos num colégio público. Ele estava lá numa das imagens que aquela senhora guardara com devoção durante todo tempo. No colorido desbotado, ele ainda tinha cabelo no alto da cabeça, repartido ao meio e de onde saíam pequenas ondas para os lados. A camisa era vermelha e a calça de tergal marrom, onde se destacava o passador largo. Magro. Tinha uns quarenta quilos a menos. Olhou e enxergou o filho, hoje com 35 anos. Na retrato era adolescente de 15 anos - e não sabia o que fazer da vida. Hoje continua sem saber, mas se conformou com o que a vida lhe deu na procura. Seus amigos estavam todos naquele salão de festas de prédio classe média. Um bandeja com espetinhos vários circulava e um enorme bolo de chocolate esperava a hora do parabéns nesta data querida de 60 anos de um dos amigos. Descobriu que todos eram os mesmos de quase meio século atrás. Guris que se divertiam e ainda se divertem na gozação mútua. Um deles brincou a sério dizendo que o bom mesmo era que estavam todos vivos - e que não vai ser legal quando os encontros começarem a ser realizados em velórios. Será? Ele olhou de novo a foto e pensou neste desfecho natural. E ficou feliz porque até aquele momento todos tinham cumprido a trajetória normalmente, ou seja, acima da média - e sem saber ou pensar muito no por quê.
sexta-feira, 14 de março de 2014
quinta-feira, 13 de março de 2014
Cobre
Cobre o cobre. Ele não entendeu. Cobre o cobre repetiu o sujeito que que tinha barriga grande e se abanava com um leque comprado no Paraguai. O calor no ambiente era infernal. Teto de zinco, baixo, pouca ventilação naquele mocó na favela horizontal. Jogaram uma Colt 45 na sua mão, ele sentiu pelo peso que estava carregada e, sem querer perguntar mais, pediu o endereço. Foi. Era uma casa com varanda, plantinhas, florzinhas, um cachorro amarrado num fio. Bateu palma. O senhor que saiu forçou a vista para enxergar a visita. Perguntou o que queria. Ele disse que veio cobrar o cobre. O velhinho só disse que tinha pouco, estava fraco para o roubo. Ao ver o outro levantar a camisa para mostrar o cabo da arma, disse que iria lá dentro e voltaria. Foi. Logo em seguida ouviu-se um tiro. Foi na cabeça. A visita entrou e viu o crânio estourado do velho vertendo um sangue escuro que formava uma poça no piso de cimento queimado. Ao lado, um rolo de fio grosso. O cobre. Ele pegou e foi embora antes de a polícia chegar. Entregou para o barrigudo e contou o que aconteceu. O chefe cuspiu de lado e disse que o cobrado não rendia mais como no passado - e que tinham economizado uma bala.
mao
De Paulo Leminski
um pouco de mao
em todo poema que ensina
quanto menor
mais do tamanho da china
um pouco de mao
em todo poema que ensina
quanto menor
mais do tamanho da china
quarta-feira, 12 de março de 2014
Pedras
Pintava pedras. Era escolhido por elas, dizia, sempre que andava pelas ruas do bairro. Tinha uma teoria para isso: contava que elas eram muito desprezadas e que o máximo de atenção que recebiam era um bico de algum moleque ou adulto nervoso. Levava as pedras para casa, dava um banho no tanque, deixava secar e depois pintava em várias cores. Guardava. Quando achava que alguém merecia, presenteava e pedia para guardá-la com carinho por toda vida. Numa festa do final de ano da empresa em que trabalhava, levou algumas delas para dar a seus colegas. Porque gostava muito deles e do ambiente formado. Fez discurso, apesar da timidez. Todo mundo gostou. Anos depois, encontrou por acaso um daqueles ex-companheiros. Lembrava até qual pedra tinha dado a ele.Perguntou por ela. O outro fez cara de espanto e disse que tinha jogado na cabeça do Paolo Rossi quando o Brasil perdeu para a Itália no estádio Sarriá na Copa de 82.
terça-feira, 11 de março de 2014
TV verdade
A primeira televisão ele nunca esqueceu. Era um caixotão quase do tamanho de uma cômoda, importada, usada durante muito tempo por alguma família de bacanas e que foi parar naquela sala da casinha nos fundos do quintal como uma maravilha do mundo. A imagem era de uma tela enfraquecida pelo uso, mas para o menino de oito anos a magia era até maior do que os vôos de Peter Pan e Sininho no álbum colorido que uma freguesa da mãe costureira lhe deu. Até o dia em que, sozinho na sala, viu primeiro uma fumacinha sair da parte de trás do aparelho, a imagem desaparecer em seguida e o fogo tomar conta. Saiu gritando desesperado pelo quintal e os vizinhos socorreram. A TV foi levada para fora da casa. Alguém queria jogar água. Disseram que, assim, iria explodir o tubo. Usaram então areia de uma obra vizinha. O menino chorou como nunca. Achava que o pai, quando chegasse do trabalho, iria brigar, pensar que ele era o culpado. O velho chegou e acalmou o filho. Prometeu que logo compraria outra televisão. Foi o que fez tempos depois. Essa, menor, mas também usada, tinha a vantagem de ser colorida. Um plástico com faixas em várias cores estava fixado na frente da tela. Era o progresso chegando à vila.
palavra minha
De Paulo Leminski
Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
Vim pelo caminho difícil,
a linha que nunca termina,
a linha bate na pedra,
a palavra quebra uma esquina,
mínima linha vazia,
a linha, uma vida inteira,
palavra, palavra minha.
segunda-feira, 10 de março de 2014
A dos sensatos
Não queria mais a estranheza, o olhar pelo avesso, a dificuldade. Estava cansado porque tudo era muito pesado. Ao tomar água, por exemplo, ouvia o som de cacos de vidros sendo moídos e o grito interno dos órgãos sendo cortados. Ele sabia que não acontecia, mas sabia tanbém que acontecia - porque sentia. Uma benção com água benta aspergida lhe queimava a pele como chuva ácida. Ele pedia paz e o Cristo lhe dava uma piscadela sacana. Até o dia em que viu o filme do diretor doidão que resolveu fazer a coisa mais simples e linear possível, ou seja, a loucura em sua forma plena. Aquele pequeno trator cortador de grama o arrastou para uma realidade plena e plana, como um extenso campo de golfe. Ele caminhou assim por muito tempo até o dia em que ouviu uma voz saindo de um dos buracos. Resolveu olhar e então foi tragado para dentro da embarcação imóvel dos sensatos.
sexta-feira, 7 de março de 2014
quinta-feira, 6 de março de 2014
Merda
De Paulo Leminski
Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam pobres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da mulher amada.
Merda é veneno.
No entanto, não há nada
que seja mais bonito
que uma bela cagada.
Cagam ricos, cagam pobres,
cagam reis e cagam fadas.
Não há merda que se compare
à bosta da mulher amada.
Um pires com romeu e julieta
Ainda não dá, porque peguei uma ressaca de vida e estou com o gosto amargo a me achatar na cama. Ligo a televisão e procuro filmes - o resto é comédia horripilante da vida real. Tristeza tem fim, felicidade não pois sempre se busca a fim de evitar o desgosto do caminho da morte em vida. Era para não escrever, mas me ordenam como se isso fosse a penitência em moto-perpétuo. Claro que lembro de Edu da Gaita, mas ele era tão magro... e esses meus quilos a mais não querem sair, sempre estão convocando outros mais através de doces e massas e carnes e lactose, que é bom de comer e beber até o nome. Beijo e queijo. Poderia ser o prêmio pelo esforço neste dia onde as lâminas da persiana ficam parecidas com grades contra a luz do fim de tarde. Será que pirei ou quero apenas um pires para não comer romeu e julieta? A caixa da goiabada cascão cai na memória. Tenho que me cuidar.
quarta-feira, 5 de março de 2014
sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014
É carnaval
É carnaval, é hora de sambar
Peço licença, ao sofrimento,
Depois eu volto pro meu lugar.
(Batatinha)
quinta-feira, 27 de fevereiro de 2014
quarta-feira, 26 de fevereiro de 2014
Tiros para decifrar
O professor apresentou um desenho com algumas marcas, um corpo caído no chão, alguém do lado, sentado, os dois furados de bala, etc. Deu os calibres dos cartuchos encontrados e as armas usadas. Explicou que a casa era de um traficante, um dos personagens fugiu e na cena também havia um policial que deu um tiro de fora da casa, pela janela. Pediu para que estudassem tudo e explicassem o que teria acontecido ali. A menina olhou aquilo, pesquisou as armas, como as cápsulas saíam das automáticas depois de deflagradas, enfim, fez o trabalho técnico e partiu para a elaboração da tese. Em tempo: o corpo que estava morto tinha a cabeça furada por três balaços mas, antes, tentaram enforcá-lo. O ferido que estava ao seu levou dois tiros e estava vivo quando a polícia chegou. Na véspera de entregar o trabalho, a estudante fundiu a cuca, se ajoelhou e pediu ajuda. Qualquer uma, para escrever em 1.500 palavras sua teoria. Dormiu assim. Acordou e o texto estava escrito com o melhor do inglês. Ela frequentava, como visitante, uma universidade no país de Shakespeare. Não havia assinatura, mas ao lado, dois livros que nunca tinha visto antes estavam autografados por Raymond Chandler e Dashiell Hammett.
terça-feira, 25 de fevereiro de 2014
Rico e mijado
Me levaram para ver o homem mais rico da família. Ele morava numa casa caindo aos pedaços. A mulher dele parecia saída de um conto de fadas - ela era a bruxa, de tão acabada, coitada. Em volta do casebre as terras dele eram imensas, tanto que não se enxergavam os limites para qualquer lado que se olhava. E havia gado, muito gado. Ele tinha os olhos de um verde-mar impressionantes. Barba por fazer, um chapéu de couro bem velho, uma camisa desbotada e sem botões, e uma calça de pijama do tempo da guerra da Coréia. Estava todo mijado. Nunca tinha ido à cidade para se consultar com médicos. Não acreditava nisso. Para se curar de qualquer dor, tomava garrafadas de uma curandeira da região. Seu prazer era olhar o que tinha. Era o mais avarento de toda sua raça. Quando morreu, anos mais tarde, os filhos destruíram em pouco tempo todo o patrimônio. Mas enquanto ele estava vivo, tudo aquilo era dele - e era isso que o sustentava.
deslumbramento
De Paulo Leminski
isso sim me assombra e deslumbra
como é que o som penetra na sombra
e a pena sai da penumbra?
segunda-feira, 24 de fevereiro de 2014
Coca na madruga
Fatal. Acordava no meio da noite com aquela vontade corroendo a alma. Tentava ficar pregado na cama. Impossível. Tateava no escuro e andava devagar porque o piso antigo de madeira fazia barulho e poderia acordar a mulher. Abria a geladeira. A luz ofuscava os olhos. Ele então abria a garrafa e virava no bico, tomando tudo num gole só. O líquido descia rasgando suavemente a garganta. Era aquilo que o fazia delirar. Quando não encontrava a garrafa no lugar de sempre, saía de casa no meio da madrugada e rodava a cidade a te procurar - e sempre a encontrar. Coca! Coca-Cola! Era capaz de derrubar dois litros de uma vez. Depois... bem, depois era depois. A barriga cheia, os arrotos sonoros cortando o silêncio, tudo era nada diante daqueles momentos fugazes de prazer. Até que um dia parou de beber, porque a coisa estava ficando complicada. Foram três anos até a recaída. Quando tomou de novo sentiu um gosto horrível, como se tivesse engolido um xarope de punição. Foi o suficiente para deixar de lado o refrigerante que vendem como se fosse a razão de viver. Agora, toda vez que olha aquelas montanhas de garrafas gigantes no supermercado, ele ri e vai direto comprar água mineral com gás - porque sem as bolinhas não tem graça.
sexta-feira, 21 de fevereiro de 2014
quinta-feira, 20 de fevereiro de 2014
Ao volante
Quantos eu poderia ter matado? Não lembro. Porque muitas vezes cheguei em casa sem saber como. Dirigindo. O possante era branco. Trafegava como um fantasma na madrugada. Se tivesse cheiro, além do da fumaça poluente, seria o da morte. Subiu barrancos, caiu em valetas, perdeu uma roda andando, atravessou sinais vermelhos, morreu num poste depois que o piloto, eu mesmo, saí do último boteco da via-sacra daquela noite. Era a Toca - e só não fui direto para o túmulo porque... Há um deus, santo protetor, anjo, nisso? Eu sabia e não sabia o que poderia acontecer. Quem bebe para morrer da vida presente não pensa nessas coisas. Nem nos outros, os que não matei e os que vejo morrer assassinados por bêbados de toda espécie. Esses loucos não sabem que são assim de nascença, no bom sentido, e que não precisam de nenhuma gota de álcool para alucinar sem colocar em risco existências, inclusive a própria. Hoje meu coração aperta quando penso em tudo que fiz. Ao mesmo tempo fico alegre porque não matei. E não morri. Deve ser porque era preciso contar para alguém, antes que este se transforme em assassino.
quarta-feira, 19 de fevereiro de 2014
barro
De Paulo Leminski
o barro
toma a forma
que você quiser
você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer
o barro
toma a forma
que você quiser
você nem sabe
estar fazendo apenas
o que o barro quer
Comemoração de velho
Estava velho, mas não cansado. Próstata inchada, mas sem o bichinho do ran ran. Fazia dois mil xixis por dia. Alguns na cueca, calça, calção, bermuda. O pior é que, com o tempo, tinha dificuldades de expelir o líquido. Aí, forçava - e junto saía um pum. Isso virou rotina. Em casa não tinha problema, mas em outros locais, com banheiros coletivos, sofria feito um condenado na manobra de forçar na frente sem soltar atrás. Decadência. Ainda não se acostumara a ser chamado de senhor, apesar da vasta cabeleira branca. Durante um tempo, chegava a brigar e inventar que pintava os cabelos de branco para parecer mais velho. Ria de si mesmo. Agora, chorava escondido. Não, não pensava na morte porque tinha certeza de que ela é igual ao antes de nascer. Sim, tinha cumprido à risca parte da definição de alguém que não lembrava mais (outro problema normal), que resumia assim a existência humana: nascer, foder e morrer. Mas imaginava que queimaria lenha até os cem anos, se nenhuma tragédia acontecesse. Por isso, começou a pensar para trás, no que tinha feito. Aí ficou feliz, de repente, pois o que lhe vinha na memória eram só os capítulos bons. Dito isso, foi ao banheiro. Fez xixi e soltou um poderoso. Em comemoração.
terça-feira, 18 de fevereiro de 2014
Loucuras de loucos
Ele estava acuado no canto de uma salinha. Babava, mas o mais impressionante eram os olhos - esbugalhados. Segurava uma cadeira acima da cabeça. Se chegassem perto, gritava que ia rachar a cabeça do primeiro que encostasse. Dez minutos antes chamaram os mais loucos ali no pátio do Pinel. Para segurar o outro que chegava. Disseram que ele estava louco. Os mais loucos se olharam e começaram a rir. Foram lá. Ficaram na porta até ele dar a primeira piscada. Um baixinho voou no peito dele, outro segurou a cadeira, o resto cercou, deitaram o louco no chão e o imobilizaram segurando pernas, braços, ombros. Ele olhava dentro da alma de cada um e dizia que ia matar. Os que estavam ali não se incomodaram porque tinham passado anos desafiando a morte - e ela não os fez desparecer. Aplicaram uma injeção de amansa louco. Levaram, amarraram numa cama e, poucos dias depois, ele estava no pátio ao lado dos outros, esperando a hora de ir embora - porque louco que é louco é logo solto.
à margem
De Paulo Leminski
Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
Marginal é quem escreve à margem,
deixando branca a página
para que a paisagem passe
e deixe tudo claro à sua passagem.
Marginal, escrever na entrelinha
sem nunca saber direito
quem veio primeiro,
o ovo ou a galinha.
segunda-feira, 17 de fevereiro de 2014
Não
Não. Fim de papo. Não tem conversa. Fechado pra balanço. Nem vem que não tem. Se insistir, dou um coice e pico a mula. Essa merda de vida é assim. Estou naqueles dias. Vai encarar? Me deixe em paz no meu canto. Este, onde estou largado no mundo, sozinho com os erros, as culpas. Eu pedi para nascer. Meus pais não têm nada com isso. O problema foi depois. Ou na hora. Me arrancaram a fórceps. Comprimiram minha cabeça. Quase afundaram a moleira. Fiquei com isso lá dentro. O que é isso? De vez em quando me inunda a desesperança no ser humano. Eu, claro. O proscrito, o bandido, o fora da lei - como na canção. Que puta que pariu esse mundo? Um sorriso de vez em quando e um mar de lágrimas de sangue. Não. Fim de papo. Me procure quando me olhar e ver um sim.
domingo, 16 de fevereiro de 2014
sexta-feira, 14 de fevereiro de 2014
quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014
Chicabon
Comprou um Chicabon e logo que tirou a embalagem foi atropelado. Não morreu, mas quebrou-se todo. No hospital, com as duas pernas engessadas e levantadas na direção do teto, recebeu a visita de um metido a intelectual que começou a rir sem parar quando ele contou o sucedido. Riu tanto que começou a rolar no chão e o paciente ali sem achar a menor graça. Melhor: estava puto da vida porque aquele palhaço nem conseguia explicar o motivo do ataque de risos. Doía-lhe tudo, principalmente algumas das costelas fraturadas que lhe furavam a alma quando respirava. Muito tempo depois o imbecil conseguiu se controlar e lhe contou que no dia anterior tinha lido a famosa frase de Nelson Rodrigues. Qual? Aquela: "Sem sorte, não se chupa nem um Chicabon - Você pode engasgar com o palito ou ser atropelado pela carrocinha". O paciente cravou-lhe os olhos e o chamou para perto. Então, disse, baixinho, em tom de súplica: "Então vai lá fora e compre um sorvete pra mim. Mas agora eu quero picolé de coco".
quarta-feira, 12 de fevereiro de 2014
De capacete
Colocou o capacete, fez uma pose para a câmera e, depois do clique, distribuiu a foto na rede. De vez em quando olhava e se sentia o máximo. Não sabia que aquilo tinha deflagrado uma operação silenciosa de busca de dados sobre sua pessoa, levantamento da ficha de todos os familiares mais próximos, etc. Era mais um nome entre milhares num dos mais poderosos e eficientes serviços secretos do mundo. Ele continuava rindo com cara de bobo e, do outro lado dos seus telefones, grampeados, estavam agentes que viam aquele símbolo na testa do capacete com o ódio de gerações. A pesquisa e a campana durou anos, até que chegaram à conclusão de que aquele primeiro informe visual não levava a nada. O artista que colocou o capacete alemão na cabeça com o símbolo do exército e uma suástica no meio era apenas mais um idiota que não sabia o que estava fazendo. Então, apagaram tudo, ou seja, o alvo ficou do tamanho que sempre foi.
terça-feira, 11 de fevereiro de 2014
Disparos no funeral
No cemitério a família acompanhava em prantos o caixão baixar a sepultura. Perto dali, sorrateiro, um grupo foi chegando como se estivesse morrendo de curiosidade. Adolescentes. De repente, mais perto, sacaram o que parecia ser uma arma e começaram a disparar. Era uma máquina fotográfica. E eles iam passando de mão em mão a câmera. Cada um tentava um ângulo diferente. Teve quem quase caiu na cova. Os parentes do morto ficaram atônitos - e nada falaram. O grupo partiu pelas alamedas e desapareceu naquele fim de tarde do meio de uma semana qualquer. Depois de revelado o filme, as fotos se mostraram horrorosas. Era o começo de uma paixão e os sete meninos não sabiam dominar o equipamento e não tinham olhar de fotógrafo. Mas continuaram. A máquina era como uma deusa a guiá-los pelas mãos em aventuras onde capturariam o tempo. Foi o que fizeram desde que ela foi esquecida no banco de trás de um táxi DKW do irmão de um integrante daquela turma. Os negativos? Sumiram no tempo, assim como o equipamento. Mas o registro ficou, assim como o silêncio daquele funeral invadido.
segunda-feira, 10 de fevereiro de 2014
João e Maria na cama de Philip Marlowe
João e Maria na cama que foi de Philip Marlowe e da loira ricaça com quem casou e foi a Poodle Springs pelas letras de Raymond Chandler. O colchão era maior que uma quadra de basquete e Dalton Trevisan poderia escrever oito mil romances de uma linha no lençol que a cobria. Chega de saudade ao som do din-don do João. O calor parecia estar fazendo mal ao poeta que queria ser mais absurdo que Zé Limeira. Ele viu um raio cair em câmera lenta e então pegar a Pentax 6x7 que não tinha filme. Clicou e o barulho da engrenagem lembrou Carlitos passeando dentro da máquina em Tempos Modernos. O que vem depois da internet? Ele foi atropelado por tudo isso só porque puxou fumo para ouvir Pink Floyd, tomou ácido para seguir a canhota de Hendrix e cachaça para saber que Tonico e Tinoco fizeram um programa de rádio na beira da tuia. Agora falam uma língua que ele não entende e grudam os olhos em telas, telinhas e telões. Ele foi ao saravá e fez um descarrego. Aí pegou tudo e colocou na bolsa boliviana que usava nos anos 70. Abriu e desmaiou.
sina
De Paulo Leminski
quem chega tarde
deve andar devagar
andar como quem parte
para nenhum lugar
vida que me venta
sina que me brisa
só te inventa
quem te precisa
quem chega tarde
deve andar devagar
andar como quem parte
para nenhum lugar
vida que me venta
sina que me brisa
só te inventa
quem te precisa
sábado, 8 de fevereiro de 2014
quinta-feira, 6 de fevereiro de 2014
Parada cardíaca
De Paulo Leminski
Essa minha secura
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
essa falta de sentimento
não tem ninguém que segure,
vem de dentro.
Vem da zona escura
donde vem o que sinto.
Sinto muito,
sentir é muito lento.
Redemoinho
Matava os bichos, ateava fogo às plantas e árvores, martelava, cortava, massacrava o que achava ser vivo. Cinco anos de idade. Pouco tempo depois começou a andar de bicicleta, acelerava a moto do pai, dirigia o carro. Trocou de colégio várias vezes porque não conseguia parar para prestar atenção - e uma rebeldia incontrolável ia se formando dentro do corpo que começava a tomar forma no judô e na natação. Não baixou o fogo e se gabava do tamanho do pinto. Quando a família se deu conta não conseguiam mais controlá-lo. Bateu na mãe, no pai, enganou meninas sonhadoras com uma conversa mansa, odiava gays, amava carros e motos, menosprezava as mulheres. Quase morreu num acidente de moto. Ficou com um braço paralisado, mas não ligou. Fugiu como o diabo da cruz do psiquiatra. Incendiou um colégio interno. Era um caso perdido até que descobriram o motivo para tudo. Um redemoinho no cabelo - bem na frente da cabeça, acima da testa. Era a imagem do furacão. Mandaram raspar a zero e passaram navalha para fazer desaparecer. Então o anjo de verdade que ele tinha trancado, tomou conta de tudo.
quarta-feira, 5 de fevereiro de 2014
Bacia de pecados
Acordou e sentiu que algo apertava o tornozelo na perna direita. Puxou e só sentiu dor. Foi olhar e viu que estava amarrado a uma bacia gigantesca onde revia vários episódios do passado. Todos ruins e que lhe feriam o coração. Mas se antes eles vinham de tempos em tempos, de leve, ali, não! E como na tela de tv, havia entre um capítulo e outro uma espécie de propaganda. Letras luminosas piscavam e ele lia, mesmo sem querer: culpa, culpa, culpa. Achou que sonhava, olhou em volta e não havia mais quarto, não havia mais móveis, não havia teto ou piso. Só a cama onde estava deitado - e aquela bacia. Quantos erros, quantas cagadas, quantos ferimentos distribuídos em quem estava perto ou longe... E aquilo acontecendo logo agora! Logo com ele, que achava ter se redimido, que vivia tranquilo há muitos anos, que imaginava ter se descoberto depois de velho... Então aconteceu: um letreiro reluzente e móvel, como os das fachadas das sedes de jornais, ordenou: beba! Ele pegou a bacia - e ela não tinha peso nenhum. Colocou a boca aberta na borda e virou. Tudo entrou para dentro dele num flash. Então sentiu sono e dormiu. Ao acordar o quarto estava como no dia anterior. Notou que se sentia muito leve e tranquilo. Então sorriu ao entender que não podia mudar nada do que tinha feito - mas sim do que ainda ia fazer.
Trato feito
De Paulo Leminski
Fiz um trato com meu corpo.
Nunca fique doente.
Quando você quiser morrer,
eu deixo.
Fiz um trato com meu corpo.
Nunca fique doente.
Quando você quiser morrer,
eu deixo.
terça-feira, 4 de fevereiro de 2014
Je T'aime Moi Non Plus
Um desceu correndo e apareceu no apartamento com a jovem que rodava bolsinha na rua. Oito marmanjos a olharam com fome. Um deles, artista, teve a ideia. Jogou um lenço sobre um abajur, apagou a luz do teto e colocou um disco na vitrola. Era um compacto simples. Jane Birkin começou a sussurrar Je T'aime Moi Non Plus e garota imediatamente iniciou o show no meio do círculo formado pelos devassos. Tirava cada peça da roupa com movimentos estudados e no compasso da melodia. Os oito homens urravam e ninguém tinha bebido ou se drogado com outras substâncias. Quando a música terminou e se fez silêncio, ela estava nua. De repente, um da plateia gritou: "É minha!" Fez isso e imediatamente a pegou e colocou no ombro, feito um homem das cavernas. Correu então para o seu quarto. No dia seguinte ele acordou e ela tinha ido embora. Como nas histórias tradicionais, levou também todo o dinheiro da carteira do mané. Na capa do disco que fez sucesso na noite anterior, Jane Birkin parecia rir de tudo aquilo.
segunda-feira, 3 de fevereiro de 2014
A paixão de Maria
Maria morava sozinha em dois dos cômodos daquela casa que, dividida, abrigava toda sua família. Os filhos e filhas casados e netos. O marido há muito tinha morrido. Os vizinhos nunca o viram. Havia um mistério ali, porque o que se comentava é que tinha sido morto na guerra. Maria era iugoslava. Ninguém sabia o sobrenome, mesmo porque provavelmente não saberiam pronunciar. Maria usava vestidos compridos e estampados, mas sempre discretos. Era uma mulher grande, de cabelos longos, lisos, grisalhos, sempre enfeixados numa longa trança. Era amada por todas as crianças do local. Porque ela tinha uma paixão antiga e fazia questão de passar isso para a garotada: o cinema. Todo domingo, durante anos, Maria reunia todos no início da tarde e os levava para assistir a matinê no cinema do bairro. Fez isso sempre, como um ritual religioso. Quando foi embora, àqueles meninos e meninas parecia que ela tinha entrado na tela e desaparecido antes do the end. Ficou a paixão para muitos deles. E até hoje, no escuro das salas nos shoppings, eles continuam no encantamento e dona Maria sempre está presente.
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